Trauma escrita por Aluada


Capítulo 2
O passado


Notas iniciais do capítulo

Bom, visto que meu amado Sidney Sheldon faleceu nos últimos dias, gostaria que esse texto ficasse como uma homenagem a este escritor que tanto me influenciou e me divertiu ^^

Esta fic está sendo betada, então poderão haver futuras alterações ^^
(arigatou, hotarubi-san ^^)



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            — Mana, me leva no shopping?

            Ainda podia ver a pequena Bia correndo de um lado do outro para o outro dentro de casa, interrompendo-a a cada segundo com o mesmo pedido. Não conseguia estudar – e, no fundo, também não queria. Tinha acabado de tirar a carteira de motorista e aceitava qualquer desculpa para poder dar uma voltinha.

            — Tato, empresta o carro pra eu levar a Bia no shopping?

            Ricardo somente jogou as chaves na mão do irmã, sem levantar a cabeça da tela do computador. Tinha seis anos a mais que Catarina e outras preocupações na cabeça. Teoricamente, era o responsável pela casa enquanto os pais viajavam a negócios – na prática, preocupava-se apenas com a monografia da faculdade.

            Com um sorriso de orelha a orelha, entraram no Audi do irmão e pagaram a estrada que levava à cidade vizinha. O rádio tocava animadamente Happy Day enquanto elas cantavam, felizes.

            Mas quando o caminhão veio, a cantoria foi substituída por gritos de susto e dor.

            — Meu Deus..!

            Foi rápido demais para raciocinar.  Tudo o pôde fazer foi desviar.

            O carro saiu da pista, entrou no gramado, capotou três vezes. O fluxo parou.

            A garganta de Catarina explodiu de medo ao ver tudo girar, tudo quebrar, tudo lhe atravessar, tudo doer, tudo ficar num vivo tom de vermelho que gradativamente enegrescia até total escuridão.

            Perdeu os sentidos.




            Não era possível. Estava viva! Viva!

            Ouviu uma voz falando, muito distante, muito grave, muito surreal.

            — É um milagre que ela tenha sobrevivido... ela é uma pessoa muito iluminada...

            Oh, sim, era um milagre!

            Cada gole de ar frio que respirava enchia seus pulmões de nova vitalidade, esclarescia sua mente. Abrir a boca e soltar a voz doía. Não conseguia controlar os movimentos. Tentou se mexer mas não conseguiu. Seu corpo estava coberto por hematomas. Sua cabeça, envolta por fachas, parecia estar a ponto de explodir.

            Mesmo assim, estava feliz.

            “Meu Senhor”,  pensava todos os dias, “Obrigada por me dar uma nova chance. Obrigada. Ela será inteiramente sua. Obrigada. Obrigada”.

            Semanas depois, sentia que voltava à normalidade. Já podia sentar-se na cama para comer, e completar as frases não era mais tão exaustivo.

            — E a Bia? Eu preciso vê-la, por favor...

            — Não até que você tenha melhorado — disse o médico, uma vez — Vamos falar sobre isso quando você puder sair desta cama.

            Encheu o quarto e imagens, de rezas, de louvores. Agradecia por sua vida, pela vida de sua irmã, pela nova chance que Deus lhe dava todos os dias. Oh, e como ele era misericordioso...

            A cabeça, por vezes, doía. Mergulhava em enxaquecas por horas, por ias, perdia a noção do tempo e do espaço. Uma vez, chegou a esquecer quem era; lembrava da ocasião com o mesmo desespero da hora. Naqueles momentos, orava, e acreditava ser guiada para o caminho certo.

            Trancou seu coração, e deu a chave somente a Deus.

            Das suas lembranças do hospital, a mais viva era a presença do irmão. Via-o sentado no sofá ao lado, na maior parte do tempo dormindo, cansado, desgastado, profundas olheiras envoltas em seus olhos. Rezava por ele também, mesmo que ele não acreditasse em sua nova religião.

            — E a Bia?

            Quando Catarina lhe perguntava assim, encontrava-se encarando o olhar castanho e distante de Ricardo, desanimado e triste. Tentava não se preocupar. Afastava os dizeres dos médicos sobre ela com rezas de sua cura e muita dor de cabeça.

           


 

            E então, quando os exames finalmente chegaram, ela recebeu alta.

            — Obrigada, Senhor... obrigada...

            Chegou em casa, apoiada pelos ombros do irmão.

            — Onde está Bia, ela já chegou?

            — Calma, Ca, vamos pro quarto primeiro, você deve estar cansad —

            Mas ela não lhe deu mais ouvidos; escapando com astúcia dos braços que a rodeavam, ela subiu as escadas correndo em direção ao quarto da irmã. Ouvia os passos apressados de Ricardo, que gritava coisas ininteligíveis. Mas, oh, Senhor, nada mais lhe importava a não ser amor e religião.

            A porta estava entreaberta, a luz apagada. Entrou devagarzinho e se postou ao lado da cama com colcha cor-de-rosa. Suspirou aliviada.

            Lá estava ela, afundada em sonhos bons, numa respiração suave e ritmada. Seus cabelos castanhos muito finos caiam-lhe sobre o rosto, como se tentassem esconder seu sorriso delicado. Catarina fez-lhe um carinho de leve e saiu nas pontas dos pés, fechando a porta atrás de si.

            — Catarina, não —

            — Sshh, ela tá dormindo.

            Os dias que se seguiram foram de muita alegria. Nos intervalos de estudo – ou sempre que sentia vontade –, Catarina escapava para o quarto de Bianca, perdendo horas e mesmo dias inteiros brincando com a irmã, lendo e orando. Dava-lhe agora mais valor, seu inocente sorriso de criança alegrava sua vida, como nunca.

            Às vezes, ia até o escritório do irmão para chama-lo para que participasse das brincadeiras. Mas ele sempre estava ocupado, desinteressado. Suas preocupações eram outras.

            Um dia, os papéis se inverteram. Ele foi chama-la.

            — Catarina, pode me ajudar num exercício?

            Elas estavam no quarto de Bianca, lendo em voz alta uma passagem da Bíblia.

            — Será que você ainda se lembra que eu existo? — falou mais alto, ao ser ignorado.

            — Esse é o nosso momento pra Deus, aquele que —

            — Largue esse livro, largue essa religião! Pelo amor de Deus, se você o ama tanto assim, CHEGA!

            — Mas a Bia e eu —

            — E também pare de pensar na Bia! Não é saudável, Catarina!

            — Ri, é pecado —

            — Pecado é isso que você está fazendo! Por favor, volte a ser o que era! CHEGA!

            Com força, ele bateu a porta.

            Descobriu. Não era indiferença. Era ciúmes.



 

            Os meses passaram. Enquanto Catarina levava Bianca à Igreja, Ricardo mantinha-se preso ao computador, a cara amarrada, cada vez mais distante da caçula, até chegar o momento em que tivesse um acesso de raiva ao simples mencionar de seu nome.

            Quando chegou seu aniversário, Catarina comprou-lhe um terço de porcelana; Ricardo, pelo contrário, fez questão de sair com os amigos. Ao voltar, encontrou Catarina dormindo no carpete do quarto de Bianca, envolta em coberta e segurando um travesseiro. Adotara o lugar como seu novo quarto.

            — Saia daqui! — berrou ele, empurrando-a com o pé para acorda-la — Você não pode esquecer, por um minuto, a sua irmã?! Esquece ela, caramba!

            Os olhos de Catarina voaram para fora das órbitas. Como ousava falar isso, na frente da pequena?!

            — Olha — ele segurou ambas suas mãos, agachando ao seu lado —, lembra-se de quando éramos pequenos, só eu e você? Sem escola, sem Deus, sem Bia? Lembra como era bom? Vamos repetir isso. Vamos nos livrar de tudo isso, de uma vez por todas.

            Livrar-se de Bia..?

            No dia seguinte, foi logo de manhã falar com o padre da paróquia que freqüentava todos os dias. Contou-lhe toda a história.

            — Ah, minha filha — repetia a cada frase —, minha filha, minha filha.

            O padre lhe esclaresceu. Não era somente ciúmes. Era loucura.

 

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