Screaming escrita por caiquedelbuono


Capítulo 14
Amizades trocadas.




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Helena tinha acordado há alguns minutos e estava no banheiro do dormitório, se vestindo para encarar a segunda-feira que acabara de se iniciar. Os pássaros cantavam já nos primeiros instantes daquela manhã e tudo indicava que aquele era um lindo dia de sol, mas ela ainda não tinha aberto nenhuma janela para ter certeza.

A garota parou para analisar seu reflexo no espelho assim que terminou de amarrar o tênis. Os cabelos ruivos estavam soltos e molhados, escorrendo sobre os ombros como se fossem uma cascata ardente. Ela não estava com a mínima vontade de secá-los, apenas tinha passado levemente a toalha para retirar o excesso de água. Os ferimentos do rosto ainda estavam incomodando-a e Mel lhe dera um pouco de gaze e esparadrapo para ela continuar cobrindo-os até que estivessem completamente cicatrizados. Notou que seus olhos estavam murchos e leves manchas roxas podiam ser vistas sob as pálpebras inferiores. Dormir estava sendo meio complicado depois de tudo o que vinha acontecendo desde que as férias terminaram. Tinha sonhos horríveis, pesadelos os quais incluíam zumbis sanguinários arrancando seu coração, corpos mortos transformando-se nas pessoas as quais amava, o rosto de Fanny transformando-se na podridão que era Sheeva e atacando-lhe com suas unhas e dentes vorazes. Mas talvez o pior pesadelo dentre todos fora Tommy e Kelsey se beijando bem na sua frente.

Apesar dos sonhos, ela tinha parado de pensar tanto assim em Tommy. A ferida em seu coração ainda era gigantesca, mas ela tinha percebido que ficar chorando pelos cantos só seria útil para torná-la cada vez mais fraca. Na verdade, quem a fizera perceber isso foi Mel. Agora ela entendia o motivo de Logan ter praticamente trocado todos os seus amigos só para ficar ao lado dela. Mel era uma pessoa incrível, não podia negar. Dava para ver em seus olhos que ela não deixava os próprios medos e fantasmas interiores tomarem conta de sua essência. Ela era mais forte do que tudo. Jamais seria capaz de recompensá-la inteiramente por ter salvado sua vida e o melhor que podia fazer era oferecer a própria amizade em troca.

Um clique na porta fez ela se desconectar do devaneio. Pensou que era alguém entrando no banheiro, mas ela rapidamente percebeu que a porta que se abriu foi a do dormitório. Deu alguns passos para o lado e colou o ouvido na porta do banheiro. Ouviu uma voz conhecida dizer algo:

— Pronto. Está entregue.

Helena sentiu o sangue subir até sua cabeça e fazer seu cérebro efervescer. Seu rosto devia estar mais vermelho do que os próprios fios de cabelo. Conhecia mais do que nunca aquela maldita voz. Rouca e forte, totalmente opressora.

Kelsey.

Não podia imaginar o que a garota estava fazendo dentro do próprio dormitório. Será que estava lá apenas para deixar Helena furiosa? Apenas para provocá-la como se fosse uma criança de cinco anos de idade? Seria típico dela. Já estava girando a maçaneta da porta para voar no pescoço de Kelsey, mas ela congelou quando ouviu outra voz, também conhecida. Essa mais doce e suave, tão serena quanto uma brisa de inverno.

— Obrigada. — disse Sophia — Tem certeza que não quer descer e tomar café da manhã conosco?

A mente de Helena parecia girar e ela tentava forçar si mesma a acreditar que talvez ainda estivesse sonhando. Sophia e Kelsey? Juntas? Que diabo estava acontecendo?

Ela ouviu Kelsey dar uma risadinha.

— Não. Eu vou é capotar agora. Depois de tanto álcool nas minhas veias, eu mereço passar o dia todo na cama.

— Não vai nem para a aula? — a voz de Sophia estava um pouco desesperada demais, fora do tom que Helena sempre estava acostumada a ouvir.

Kelsey riu novamente.

— Não, tolinha. Tommy disse que ficaria me esperando na porta do meu dormitório assim que chegamos.

Naquele momento, Helena sentiu tudo voltando à mente. Lembrou-se de todas as brigas que tivera com Tommy por motivos tão toscos — agora ela sentia vergonha por ter sido sempre a precursora. Lembrou-se dos olhos piedosos do garoto quando ela se mantinha rija como uma pedra, de todas as vezes em que ele tentou demonstrar que a amava, de todas as vezes em que ele se arrastou aos seus pés. Lembrou-se do beijo maluco que Paul lhe dera e como tudo ruiu depois daquele dia. Tommy a odiava, ela não significava mais nada para ele e não conseguia se conformar com o quão fácil foi para ele tê-la trocado por Kelsey. Ele estava lá, esperando por ela, para fazer coisas pervertidas depois de terem passado a noite toda fumando, bebendo, se drogando e jogando ambas as vidas no lixo.

A primeira lágrima daquele dia escapou de seus olhos, mas foram lágrimas raivosas. Ela sentiu uma explosão de ira acontecer dentro dela e abriu a porta do banheiro com tanta fúria que se surpreendeu pelo objeto não ter sido arrancado.

— Sua vaca! — Helena berrou tão alto que as duas garotas se assustaram a ponto de emitirem gritinhos — Eu te odeio, te odeio, te odeio! — ela repetiu tantas vezes que as palavras pararam de fazer sentido e tornaram-se apenas letras jogadas ao vento.

Ela estava cega, berrando e xingando ao mesmo tempo em que corria na direção de Kelsey. Só queria apertar o pescoço dela até que ela sufocasse. Queria vê-la implorando para que parasse, expelindo lágrimas de dor, do mesmo modo que sempre fazia quando pensava em Tommy.

— Helena, pare! — Sophia se posicionou entre as duas e impediu que Helena avançasse. A garota loira segurou a amiga pelos ombros e a chacoalhou como se fosse uma boneca de pano. — O que foi isso? E onde você estava?

Helena parou de se movimentar e respirou fundo. Olhou para Kelsey, que estava parada ao lado da cama que outrora fora de Fanny, rindo e olhando para Helena com deleite. Ela sentiu ainda mais raiva, mas não mexeu nenhum músculo. As lágrimas desciam sem controle e pingavam salgadas em sua boca. Sophia levantou as mãos para secá-las, mas Helena recuou, impedindo que a menina a tocasse.

— Esse dormitório ainda é meu, não sei se você se recorda. — ela disse amargamente — Só quero saber o que essa vagabunda está fazendo aqui.

Kelsey acenou para Helena com um sorriso irônico preso ao seu rosto estúpido.

— Ela só veio me trazer até aqui. — disse Sophia, aparentemente não sabendo se deveria se aproximar mais de Helena ou se manter a uma distância considerável. Helena torceu para que ela fosse sensata o suficiente para não dar mais nenhum passo em sua direção. — Passamos a noite em uma festa na casa de um dos amigos de Kelsey. Só conseguimos chegar agora.

— Eu não me lembro de ter perguntado nada sobre isso. — Helena disse com a voz raivosa.

Não podia se conformar com o que Sophia havia feito. Não conseguia entender qual motivo seria forte o suficiente para fazer com que ela sequer pensasse em começar a manter uma aproximação íntima de Kelsey. Ela tinha a plena consciência de que Kelsey era a pessoa que Helena mais odiava dentro daquele colégio. Sabia que Kelsey tinha roubado Tommy dela, sabia que tinha lhe ameaçado com um canivete, sabia que ela era uma péssima companhia. E agora estava lá, indo a festas com ela.

— Na verdade, fui eu quem quis vir aqui. — revelou Kelsey, olhando fixamente para Helena. A garota sustentou o olhar, com fúria e ódio escorrendo como se fossem lágrimas de sangue — Apenas para ver como estaria a ruivinha derrotada.

O sorriso que Kelsey exibiu fez o sangue de Helena ferver ainda mais, se é que isso era possível. Olhou para Sophia, que parecia não saber o que fazer. Seu rosto estava inexpressível e machucava profundamente o interior de Helena não estar mais conseguindo decifrar a amiga, algo que há dias atrás era algo tão fácil.

— Eu não me importo com o seu sarcasmo. — Helena começou a mentir — Você pode fazer o que quiser com Tommy. Pode destruir a vida dele do mesmo jeito que você faz com a sua. Não quero mais saber. Cansei de ficar chorando pelos cantos e me sentindo uma pessoa inferior, sendo que não há mais nada que eu possa fazer.

O cérebro de Helena dizia o contrário. Queria salvar Tommy das garras de Kelsey, queria libertá-lo das algemas que o prendiam à garota manipuladora e maquiavélica, mas a consciência de que realmente não havia mais nada a se fazer era gritante. Não podia mudar a mente das pessoas e implantar ideias naquilo que já estava maduro.

— É uma pena seus olhos contradizerem todas as suas palavras falsas. — o comentário de Kelsey foi como uma flecha acertando bem o centro do coração de Helena. Odiava profundamente o fato de não estar conseguindo esconder suas emoções. Deveria ser forte, deveria ocultar tudo o que estava sentindo em uma máscara de indiferença — Bem, eu já vou indo. Sophia, caso quiser me ver mais tarde, pode ir ao meu dormitório durante a noite. Meu corpo exige pelo menos dez horas de sono.

Kelsey emitiu um sorriso tão falso quanto uma nota de três reais. Olhou para Helena uma última vez, destilando veneno e provocando-a com o brilho que escapava de seus olhos escuros. Girou a maçaneta da porta e saiu do cômodo, deixando Helena e Sophia em um silêncio incômodo.

Pensou no que falar agora que estava sozinha com a amiga. Queria entender o que estava acontecendo, queria saber por que ela estava andando com Kelsey, queria contar para ela tudo o que estava acontecendo em relação aos zumbis antropomórficos, queria perguntar sobre o seu relacionamento com Logan, que já tinha notado que estava abalado demais, bem próximo de ir à ruína exatamente do mesmo modo que o seu. Várias perguntas passaram-se pela sua mente, mas foi a menina loira quem quebrou o silêncio.

— Tudo bem. Pode gritar comigo. — ela disse tão calmamente que Helena se surpreendeu. — Não é isso que você está morrendo de vontade de fazer?

Helena lançou as mãos para o alto, completamente exacerbada. Jogou-se na cama de Fanny, ainda pensando no que falar. A mente estava acelerada demais, vários pensamentos atropelando uns aos outros. Ela respirou fundo e encarou o rosto pálido de Sophia, que ainda mantinha-se de pé, os braços cruzados frente ao corpo.

— Não quero gritar com você. — disse, finalmente — Apenas quero entender porque você me traiu.

A última palavra dita ecoou pelo dormitório como se fosse uma brisa gélida. Aquilo perturbou Sophia visivelmente, cujos olhos arregalaram-se e transformaram-se em um poço de indignação.

— Traição? Do que é que você está falando?

Helena revirou os olhos.

— Eu sempre soube que você nunca escondeu de ninguém sua lerdeza, mas você também não precisa exagerar. — ela viu quando o rosto de Sophia ardeu em escarlate — Por que você está andando com Kelsey?

Helena viu um rio de imagens se formar atrás das pálpebras de Sophia quando ela fechou os olhos. Os joelhos da garota cederam e ela sentou ao lado de Helena na cama fria de Fanny. Ela abriu os olhos e eles estavam úmidos, uma grande lágrima escorrendo e lhe mostrando toda a mágoa que estava acumulada dentro da garota frágil.

— Sophia, o que está acontecendo?

A voz desesperada de Helena fez a garota chorar ainda mais. As lágrimas desciam sem controle e Sophia estava abraçando Helena como se ela fosse a coisa mais valiosa que possuía. Se estava sentindo raiva momentânea da amiga, naquele momento o sentimento foi substituído por compaixão. Não podia odiá-la quando tudo o que ela mais precisava era de um ombro ao qual se apoiar.

— Logan... — ela ainda estava soluçando e Helena teve que se esforçar para entender que ela estava dizendo o nome do namorado — Eu o vi na festa... Ele estava beijando outra pessoa...

As garotas se desvencilharam naquele momento e Helena enxugou com as mãos as lágrimas que ainda escorriam dos olhos de Sophia. Ela respirou fundo e encarou Helena, os olhos avermelhados e inchados.

— E por causa disso você começou a andar com Kelsey? — Helena perguntou, com algo tedioso preso em seu tom de voz.

Sophia balançou a cabeça.

— Você não entenderia.

— É claro que não. Não faz sentido algum você ver seu namorado beijando outra pessoa e por causa disso começar a andar com a pior inimiga da sua melhor amiga. — Helena deu de ombros — Será que só eu vejo que são duas coisas completamente antagônicas?

— Você está dizendo como se eu estivesse fazendo isso para atingi-la. — argumentou Sophia, com o tom de voz neutro. Helena novamente não conseguia captar nada de diferente na voz dela, como se ela estivesse tentando camuflar os sentimentos. — Mas entenda que eu estou fazendo isso por mim. Cansei de ser aquela garotinha boba e frágil que você está acostumada a conhecer.

Helena pensou em todas as coisas que se passaram pela sua cabeça desde que Sophia tinha desaparecido. Pensava que estava nas garras de Sheeva, sofrendo ameaças e torturas, mas ela simplesmente estava se divertindo com a pessoa que mais odiava.

— Pode não ter feito para me atingir, mas você me deixou preocupada. — Helena jogou as palavras como se fossem corrosivas — E Logan também. Você pode estar com raiva dele, mas ele ainda é seu namorado. Vocês não terminaram oficialmente, não é? Pensei que pudessem ter acontecido as piores coisas. Você sabe que novamente estamos enfrentando épocas sombrias.

Helena viu a pele fina do pescoço de Sophia se mexendo quando ela engoliu em seco. Seus dedos brincavam no lençol da cama.

— Desculpe. Eu não queria preocupar vocês.

— Mas preocupou. — disse Helena. Depois de uma longa pausa, ela acrescentou: — Só me dê um motivo forte o suficiente para estar andando com ela. É só isso que eu quero saber.

Sophia trocou de posição na cama e agora olhou seriamente para Helena. Ela enxergou algo parecido com determinação naquelas piscinas cristalinas. Temeu de que o que iria ouvir agora não a agradasse.

— Você ficará furiosa comigo, mas já que insiste tanto em saber... — permitiu que litros de ar entrassem em seus pulmões antes de prosseguir — Eu entendi o que aconteceu com Tommy. Entendi o modo como ele ficou quando seu coração foi estraçalhado e ele precisava encontrar algum modo para estancar toda a dor. Eu também precisei. Quis me libertar, sair deste corpo que não me deixava ar para respirar, que me sufocava e me prendia em um turbilhão de angústia e sentimentos reprimidos. Não quero ser para sempre a garota que vê o mundo como um conto de fadas, Helena. E Tommy, Kelsey e eu temos isso em comum: nós três já tivemos um coração partido.

Naquele momento, Helena sentiu que havia algo terrivelmente errado. Não conseguia acreditar que tais palavras pudessem estar saindo da boca da amiga. Não fazia o menor sentido, não era verdade. Estava começando a acreditar cada vez mais piamente de que Kelsey era perita em realizar lavagem cerebral nas pessoas que ela amava.

Nós três já tivemos um coração partido.

E o coração dela? Será que ninguém conseguia enxergar o quão destruído estava? Será que ela era a única que não tinha direito de sofrer por amor sem ser julgada? Como Sophia podia ser tão influenciável, tão fácil de ser levada por pessoas que visivelmente não estavam querendo o bem dela? Ela tinha que salvar a amiga enquanto fosse tempo. Não queria que ela rumasse o mesmo caminho de Tommy: obscuro, tortuoso e completamente sem volta.

— Sophia! Está ouvindo o que está dizendo? — a garota ruiva estava quase suplicando — Eu também tenho um coração partido e nem por isso eu saio por aí fazendo coisas erradas e ilegais!

O sorriso de Sophia foi terrível. Ela nunca tinha visto a amiga sorrir daquele jeito irônico e sarcástico. Um sorriso que só Kelsey saberia dar.

— É diferente. Você não viu Tommy beijando outra pessoa. Você não perdeu a confiança de quem mais amava. — Sophia mordeu os lábios — E você sabe que foi você a responsável por ir destruindo seu relacionamento aos poucos.

Helena não conseguiu controlar a explosão de suas palavras.

Eu? Como pode estar falando comigo desse jeito? Será que você não percebe que não bastou nem ao menos um dia para Tommy ir correndo aos braços de Kelsey, como se o que construímos nunca tivesse significado nada? Como se ele nunca tivesse precisado de mim, como se eu tivesse sido apenas uma brincadeira, uma distração. Será que você não consegue entender o meu lado?

— Não há a necessidade de procurar culpados. — disse Sophia sombriamente — Já aconteceu e nada vai mudar o que está feito. Apenas temos que nos acostumarmos a ficar sem aquilo que amamos.

— Você não deveria tentar se acostumar bebendo vodka e fumando cigarros.

Sophia estreitou o olhar, franzindo o cenho.

— Eu não fumei nenhum cigarro. Apenas fui a uma festa com Kelsey e Tommy. O que há de errado nisso?

O rosto de Helena voltou a ficar vermelho de raiva. Ela cerrou os punhos e deu um soco no colchão, o que fez Sophia dar um pulo.

O que há de errado? — gritou — Você está saindo com a pessoa que eu mais odeio, a pessoa que roubou o meu namorado! Não acha isso um tanto quanto injusto?

Sophia apenas deu de ombros.

— Você está equivocada em relação à Kelsey. Ela não é o monstro que você diz ser. Você apenas não a conhece suficientemente bem. Não sabe como ela realmente é.

— Eu sei bem como ela é! Uma cobra peçonhenta, repleta de falsidade e más intenções. Ela só quer as pessoas ao redor dela para poder destrui-las, exatamente do modo que está fazendo com Tommy.

— Bem, ela ainda não me destruiu.

Helena não estava mais aguentando toda aquela cena. Se Sophia queria ser uma ignorante ao não enxergar o que estava bem diante dos próprios olhos, ela não podia fazer mais nada. Queria que a amiga fosse esperta o suficiente para perceber, mas talvez ela tivesse que passar pela experiência. A vida mostraria a ela a verdadeira face de Kelsey na hora certa.

Levantou-se da cama, encarando Sophia com olhos repreensivos. Deu um último indício de que ainda queria salvá-la, mas ela não pareceu notar.

— Mas vai destruir. Só quero que saiba que existem outros modos de você deixar de ser a menina tola que sempre foi. Ninguém nunca se importou por você ser desse jeito e muito menos quis que você mudasse. Se você quiser continuar saindo com Kelsey, tentando levar a vida maluca que ela leva, tudo bem. É uma escolha sua. Mas saiba que isso trará consequências que talvez você possa não gostar e uma delas implica o fato de que você não precisa mais falar comigo. Já tem uma amiga nova esplêndida! Espero que consiga usufruir muito bem dessa nova amizade, mas nunca se esqueça de que antes de tudo ir à ruína, eu estava aqui ao seu lado, te alertando.

Sem dizer mais nenhuma palavra e sem olhar a reação de Sophia, Helena saiu do quarto, batendo a porta com toda a força que conseguiu encontrar.

Ian tinha acabado de almoçar e estava sozinho na sala de estar. A comida não estava descendo e ele comeu apenas o necessário para não desmaiar de fome. Não conseguia fazer nada decentemente desde a conversa com Logan.

Pensar no garoto o fazia ter várias cobiças internas. Apesar de ter dito que ele não deveria se esforçar para ajudá-lo a satisfazer seus desejos, que deveria ir atrás da namorada e tentar consertar toda a balbúrdia que causara, Ian queria que ele estivesse ali ao seu lado. Estava se sentindo sozinho, imerso em um poço de solidão profundo e completamente escuro.

Estar em Shavely já fora difícil desde o começo — preso naquele internato durante cinco dias por semana, sem poder sair, sem poder ver o rosto de ninguém que não fossem dos outros alunos problemáticos —, mas agora estava ficando quase insuportável. Seu único amigo era Logan e agora tinha estragado tudo, tinha voltado à sua incrível marca de não possuir mais nenhum. Arrependia-se de ter posto tantas gotas de álcool na boca naquela noite. Deveria ter permanecido em silêncio, bebendo só refrigerante e comendo pedaços de marshmallow, e assim evitaria todo o escândalo. Não teria revelado seus reais sentimentos daquela maneira ridícula e ainda poderia tentar desfrutar alguma coisa, mesmo que indiretamente.

Tinha ido falar com Mary durante os intervalos das aulas matinais para ver se era possível trocá-lo de dormitório. Por mais que quisesse ficar perto de Logan, não aguentaria viver no mesmo ambiente que ele todos os dias e não poder tocá-lo, abraçá-lo ou simplesmente olhá-lo com um pouco mais de ternura e afeto. Entretanto, a diretora dissera que seu pedido era inviável, visto que todos os dormitórios já estavam ocupados e lotados e que ninguém quereria ceder um lugar que fora tão difícil de encontrar. Por mais que ele soubesse desde o início que a notícia não seria positiva, ele ficara desolado e completamente sem nenhuma perspectiva que o animasse a continuar vivendo.

Ian olhou para a porta da sala de estar e viu que tinha uma pessoa se aproximando. Enxergou os cabelos loiros e brilhantes esvoaçarem-se quando virou a cabeça. Os olhos verdes estavam levemente arregalados e piscavam repetidas vezes, como se tivesse uma partícula de poeira grudada em seus cílios. A pele da bochecha estava corada e olhava para todos os lados, parecendo procurar freneticamente por algo. Quando viu Ian, seus olhos acenderam predatoriamente.

Paul foi se aproximando, ficando cada vez mais fácil notar os detalhes do rosto dele. Ian não podia negar que ele era um garoto muito bonito, com um porte físico que daria inveja em várias pessoas. Suas feições eram levemente delicadas, mas ao mesmo tempo ele tinha um quê de bruto, como se ele fosse capaz de tocar em qualquer coisa e destrui-la sem o menor esforço. Secretamente, no espaço mais profundo de sua alma, aquilo o agradava.

— Ah, não. — Ian reclamou. Apesar de estar bêbado, ele lembrava-se perfeitamente de Paul na festa, tentando de qualquer modo roubar um beijo dele — Você.

Paul agora já estava suficientemente perto e ele parou em frente ao sofá. Cruzou os braços e deu um sorriso entretido. Ian continuou sentado, sem mover nenhum músculo.

— Ah, sim. — disse Paul, rindo — Eu.

Ian só conseguiu revirar os olhos.

— Escute aqui, se você veio aqui para tentar fazer alguma gracinha do mesmo modo que você fez naquela maldita festa, eu sinto muito em lhe informar, mas você perdeu o seu tempo.

Paul estalou todos os dedos da mão. O barulho fez Ian se retesar ao sofá. Odiava quando as pessoas faziam isso. Tinha a incômoda sensação de que os ossos estavam se quebrando em pequenos farelos.

— E eis que o garoto mais bêbado da festa consegue se lembrar dos detalhes mais sórdidos! — a ironia na voz de Paul estava lhe irritando.

Ian mudou de posição no sofá, visivelmente desconfortável. Olhou de um lado para o outro, apenas para se certificar de que não tinha ninguém ali para observá-lo e julgá-lo mais tarde por estar conversando com outro garoto.

— Engraçadinho. — fez uma careta — Por que você não vai atrás de Helena? Não foi você mesmo quem me disse que estava tentando algo com ela?

A pergunta pareceu neutralizar as reações de Paul. Ele deu de ombros, tentando soar indiferente. Ian percebeu que tinha tocado em um assunto um tanto quanto delicado.

— Ela não quer nada comigo. Ela me odeia porque eu destruí o relacionamento dela com aquele cara que parece o integrante mais gay de uma banda emo.

Ian prendeu a respiração quando a naturalidade da voz de Paul eriçou os pelos de seu braço. Se Tommy parece ser gay, então eu não sei o que eu pareço. Ele comemorou mentalmente pelo pensamento ter se mantido silencioso.

— Ah, não me surpreende o fato dela odiá-lo. Eu também odiaria.

Paul colocou as mãos atrás do corpo e deu um passo para frente. A distância entre ele e o sofá diminuiu e Ian sentiu algo subindo à garganta.

— Já me odeia por natureza, não?

Ian balançou a cabeça.

— Você queria que eu o amasse depois que tentou me agarrar à força, completamente do nada, sem ao menos nos conhecermos?

— Sim, queria. — disse Paul, erguendo as sobrancelhas como se estivesse chamando Ian para um desafio — Aliás, não entendo por que você está indignado com isso sendo que você fez a mesma coisa com aquele garoto. Você acha que eu não vi?

Toda a cor que existia no rosto de Ian deve ter se esvaído no mesmo instante. Ele engasgou com a própria saliva e tossiu mais vezes do que podia contar. Paul se ofereceu para dar alguns tapinhas em suas costas, mas ele retirou a mão do outro grosseiramente.

— É diferente! — Ian exclamou, recompondo-se do recente ataque — Eu... Eu gosto de Logan. Eu sinto algo por ele que você nunca entenderia. Aparentemente, você só gosta de brincar com as pessoas.

Paul começou a rir, um som desprovido de humor e repleto de algo que poderia ser maldade, se o garoto fosse parecido com um vilão de cinema. Era difícil para Ian decifrá-lo, talvez por não conhecê-lo tão bem quanto conhecia Logan ou por ele usar uma máscara que era responsável por cobrir toda e qualquer emoção que poderia esbanjar.

— Gosta? Você o conheceu na semana passada e gosta dele? Sério? — Paul jogou as mãos para o alto como se estivesse completamente indignado. A risada se misturava ao seu tom de voz. — A adolescência de hoje em dia está terrivelmente perdida mesmo!

— Ah, cale a boca. Você não sabe nada sobre mim para estar afirmando isso. — Ian repreendeu, esticando as pernas frente ao corpo na fracassada tentativa de afastá-lo. Paul não se moveu nem um milímetro.

— Se você está dizendo...

O garoto se manteve em silêncio e Ian observou atentamente o rosto dele. Os cílios mexiam-se enquanto ele revirava freneticamente os olhos, parecendo checar o ambiente. Olhando assim para ele, não parecia ser um garoto que gostava de brincar com os sentimentos alheios. Parecia sereno, desprovido de qualquer atitude que poderia considerar indelicada. Pensou em Paul correndo atrás de Helena pelos corredores do colégio e não conseguiu evitar a risadinha que escapou de seus lábios. Talvez Paul fosse apenas louco, visto que agora estava aqui, pegando no pé de Ian como se ele fosse Helena.

— Agora eu fiquei intrigado. — revelou Ian, coçando o queixo — Você estava dando em cima de Helena, percebeu que ela não queria nada com você e resolveu dar em cima de mim. Afinal, você gosta de meninos ou de meninas?

Ian se arrependeu imediatamente de ter feito aquela pergunta insana. Uma faísca predatória se acendeu nos olhos de Paul e ele avançou freneticamente, segurando nas pernas de Ian e o encarando como se o pudesse devorar a qualquer momento. O garoto engoliu em seco e queria levantar de lá e sair correndo, mas estava completamente paralisado. Era como se o olhar de Paul fosse capaz de arrancar todos os seus movimentos e o obrigasse a ficar ali, apenas observando-o.

— Eu gosto é de sexo.

Paul avançou ainda mais, dessa vez subindo com as mãos na barriga de Ian. Ele soltou uma exclamação de indignação e segurou nos braços de Paul, tentando arrancá-los de lá.

Pare! — exigiu Ian — O que pensa que está fazendo?

Os lábios de Paul estavam úmidos e salivando. Ian podia muito bem descrevê-lo como um cachorro sedento, com a língua para fora e com um olhar pidão. Ian e Paul travavam uma luta equilibrada com os braços, o garoto de cabelos castanhos tentando empurrar para trás o garoto de cabelos loiros. Ambos não saíam do lugar.

— Eu sei que você provavelmente não entenderia o que eu quero. — disse Paul, agora parecendo terrivelmente triste — Ninguém nunca entende, mas é uma necessidade que fala mais alto que eu mesmo. Eu sei que você pode me dar o que irá me acalmar.

O queixo de Ian caiu e ele não conseguiu exprimir nenhuma reação que não fosse espanto. O que Paul estava insinuando? E o que ele estava achando que Ian era? Alguém que estaria à sua disposição quando sua taxa hormonal estivesse alta o suficiente a ponto de não conseguir se controlar? Ele mordeu os lábios e reuniu toda a raiva e a indignação que sentiu naquele momento. Unindo-as com sua força, conseguiu empurrar Paul para trás, que caiu com os glúteos no chão. Ele emitiu um choramingo parecido com o de um cachorro abandonado.

Rapidamente, Ian levantou do sofá e estava correndo em direção à porta da sala de estar, tentando não olhar para trás. Não queria ver Paul caído no chão e se permitir sentir pena dele. Aqueles olhos verdes e tristes estavam dentro de sua mente, o encarando e retirando toda a sua sanidade, a pouca paz interior que ainda restava desde que sua dignidade fora estraçalhada naquela fatídica noite...

Não resistiu. Parou de correr e deu uma leve olhada para trás. Paul ainda continuava sentado, só que ele parecia estar um pouco mais calmo. Olhou para Ian e os olhos esbanjavam tristeza e solidão.

— Desculpe-me. — seu tom de voz estava carregado de súplica — Quando isso acontece, é mais forte do que eu.

Ian apenas acenou com a cabeça, como se aquele gesto indicasse que ele estava aceitando as desculpas do garoto, porém ele sabia que não era suficiente. Não pôde fazer mais nada por ele. Queria avançar e perguntar o motivo de ele estar assim, quais eram as circunstâncias que o levaram a ser desse jeito, desesperado por uma coisa tão banal, uma coisa que se conquista com carinho, compreensão e que deve ser realizada por dois corpos em que há o compartilhamento de amor. Mas ele sabia que não podia. Não naquele momento, quando Paul parecia tão debilitado.

Não conseguiu fazer nada além de esbanjar um mínimo sorriso, que torceu para que fosse suficiente para Paul notar que compartilhava de seu sofrimento e que queria ajudá-lo. Ian virou o corpo e saiu da sala de estar, não sem antes notar que uma lágrima fina escapara dos olhos verdes de Paul.

— Qual é o nome do mestre de vocês? — perguntou Pierre, entretido, como se fosse um aluno curioso em uma aula que despertara sua atenção.

Os dois zumbis antropomórficos já estavam dentro das dependências de Shavely, só que se mantinham escondidos do lado de fora, embrenhados no pomar gigantesco do colégio, sob uma árvore frutífera um pouco distante da quadra de esportes. Era impossível de notá-los caso alguém resolvesse sair do prédio durante aquela noite um tanto quanto fria, a não ser se a pessoa perdesse a sanidade mental e resolvesse dar um passeio no meio daquelas árvores ameaçadoras.

Sheeva só conseguiu revirar os olhos negros. Às vezes, Pierre era tão irritante que ela tinha vontade de esfregar a cara cinzenta dele na casca de umas das árvores só para ver seu sangue negro escorrendo.

— Não é o “mestre de vocês”. — ela disse cuspindo as palavras — Agora deve chamá-lo de “nosso mestre” já que faz parte do bando. E quanto ao nome dele... Ele é o zumbi mais velho do bando. Com certeza possui mais de dois séculos de vida e seu nome se transformou em algo tão sem importância em relação ao respeito que temos a ele, que não conseguimos chamá-lo de outra coisa que não seja mestre.

— Dois séculos? — Pierre parecia suficientemente espantado — Não vai me dizer que zumbis antropomórficos são imortais!

Sheeva mostrou os dentes pontiagudos em uma risada que Pierre talvez considerasse maligna.

— Não somos imortais, tolinho. Mas nosso tempo de vida é maior do que o dos humanos. O mais velho dos zumbis de que se tem notícia viveu até os quatrocentos anos. Nosso mestre está apenas na metade da vida, se esse ancião zumbi pudesse ser considerado como uma regra.

O olhar de Pierre passou de entretido para impressionado. Sheeva estava pensando em como estava sendo para ele, de uma hora para outra, deixar de ser humano e se transformar em um zumbi antropomórfico. Não entendia como ele ainda não tinha sucumbido à loucura, visto que tinha que abandonar tudo o que ele era, para se tornar aquilo que provavelmente repudiara ao longo de toda a sua vida.

— E você? — ele perguntou, para a surpresa de Sheeva — Você tem quantos anos?

Sheeva não tinha muito tempo para pensar no passado. Sua vida se resumia na busca incessante de alimento, na gana de manter a raça zumbi com seu prestígio elevado no grau mais alto, nas inúmeras tentativas de conseguir manter a própria sobrevivência. Tinha perdido a capacidade de contar os anos, de acumular conhecimento o suficiente para formar uma memória condizente ao seu passado.

— Não sei muito bem. Nós, zumbis, não nos preocupamos com isso. Não somos como os humanos. Não comemoramos aniversários, não trocamos presentes e elogios, não possuímos datas festivas. Somos uma tribo de guerreiros, Pierre, e a única coisa que prezamos é pelo bem estar da nossa raça e pela nossa sobrevivência. Você precisa entender isso se agora vai ser um dos nossos.

O recém-zumbi desviou o olhar, grunhindo algo inaudível. Ele parecia estar triste, e Sheeva talvez pudesse sentir um pouco de compaixão por ele se baixasse alguns centímetros a barreira que construiu dentro de si mesma.

— Você acha que é fácil para mim? — ele resmungou como se fosse uma criança birrenta — Ter que abandonar tudo aquilo que eu sempre fui quando sinto esse instinto selvagem rasgando o meu peito? — Pierre mostrou os dentes, pontiagudos e brilhosos, sedentos para mergulharem em corações tenros e fresquinhos — Ora quero voltar a ser humano, ora quero me entregar de cabeça ao que é ser um zumbi antropomórfico de verdade. Só que eu não sei como fazer isso. Não sei ser um zumbi.

— Sinto muito, mas você nunca mais voltará a ser um humano. A transformação é irreversível.

Pierre olhou para Sheeva com desdém.

— Eu sei, mas eu duvido que você seja capaz de sentir muito por isso.

O sorriso de Sheeva mostrou a Pierre que, com aquele comentário, ele estava começando a trilhar o caminho certo.

— É assim que eu gosto! — ela exclamou — Esse é o tipo de comentário que um antropomórfico faria.

Pierre forçou um sorriso falso e voltou sua atenção para qualquer coisa que não fosse Sheeva. Um pássaro que dormia dentro de um ninho em um dos galhos retorcidos de uma árvore parecia mais interessante para ele.

Sheeva permaneceu algum tempo imersa em seus pensamentos. Estava olhando para o braço decepado, para o lugar vazio que outrora pertencera à sua mão. Aquilo não havia a abatido por completo, mas não podia negar que a enfraquecera. Seria difícil lutar e matar aqueles quatro adolescentes (cinco, na verdade, se ela incluísse a maldita caçadora de zumbis que fora responsável por aquela fatalidade) com apenas uma mão. Por isso, ela tinha que agir logo. O mestre lhe dera apenas dez dias para cumprir a missão. Tinha que recrutar o máximo de zumbis que pudesse e incitá-los em sua ajuda. Acabara de perceber que seu grande erro foi ter tentado matar um por vez. Seria mais fácil se conseguisse matá-los todos de uma só vez, em algum acidente insólito que pudesse destrui-los para sempre.

Os olhos negros brilharam e uma chama acendeu dentro dela. Estava sedenta novamente, os dentes pontiagudos roçando seus lábios inferiores. Olhou para o céu e a lua estava bem no centro, enviando seus raios pálidos, os únicos responsáveis por iluminar o pomar. Devia ser exatamente meia-noite e aquele era o momento perfeito.

Sheeva segurou na mão ossuda de Pierre e começou a puxá-lo com força.

— Vamos! Seu treinamento começará agora. Você descobrirá como ser um zumbi e ainda experimentará pela primeira vez o gosto do sangue e do sofrimento alheio. Garanto que você jamais conseguirá esquecer.


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