Screaming escrita por caiquedelbuono


Capítulo 13
Os segredos dos antropomórficos.




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/298051/chapter/13

A manhã de domingo estendia-se e Logan estava angustiado. Vagava pelo colégio e a cabeça era uma sucessão de pensamentos malignos. Dormir tinha sido uma tarefa impossível por dois motivos aparentemente antagônicos: a preocupação com os eventos da noite anterior e os roncos incessantes de Ian.

Saíra do quarto, convencido de que não adiantaria ficar rolando de um lado para o outro da cama esperando o sono chegar, mais ou menos no mesmo instante em que o sol resolveu aparecer por detrás das montanhas. Ian dormia profundamente, enrolado parcialmente em um cobertor branco, as pernas descobertas e nuas. Logan supôs que o garoto dormiria até o cérebro dizer chega, já que precisaria de muitas horas de sono para curar a bebedeira da noite anterior. Notou também, sem muita surpresa, que Tommy não dormira no quarto.

Tinha tomado um café preto e amargo quando passara pela cantina e agora estava parado em um dos corredores do colégio, olhando fixamente para as paredes de pedra. Pouca iluminação entrava pelas janelas abertas e ele imaginou que o sol talvez não estivesse tão forte. Estava tentando escolher dentre os arquivos de sua mente, aquele que parecia o menos desconcertante para se pensar, mas eram tantas coisas desconexas que foi praticamente impossível. Acabou escolhendo Sophia.

Estava sem coragem de ir atrás dela e tentar explicar tudo o que aconteceu. Odiava-se cada vez mais por ter permitido que aquele beijo tornasse realidade. Tinha vontade de estapear a própria face quando pensava que seus lábios tinham tocado os de outro garoto. Por mais que forçasse si mesmo a acreditar que aquilo tinha sido algo sem valor nenhum, sua mente voltava àquele momento. Não sabia o que falaria se ficasse cara a cara com Ian. Será que ele ao menos se lembrava? Logan torcia para que não, só que sabia que Sophia lembrava e ela devia estar furiosa.

Balançando a cabeça repetidas vezes para tentar afastar os pensamentos insólitos, Logan viu duas pessoas se aproximando no fundo do corredor. Não precisou se esforçar muito para imediatamente reconhecê-las: Helena e Mel. A ruiva estava com os cabelos levemente molhados e o rosto ligeiramente pálido, com visíveis manchas roxas sob os olhos e alguns curativos grudados na pele da face. Mel trajava uma roupa simples e casual e acenou com a mão quando viu Logan, ao mesmo tempo em que esboçava um sorriso. Elas apressaram o passo na direção do garoto, Mel parecendo ter que arrastar Helena para que a garota conseguisse acompanhá-la.

— Eu preciso falar com você! — Logan e Mel disseram ao mesmo tempo, em uma sincronia tão impressionante que fez Helena arregalar os olhos.

— Alguém tem um castiçal para eu ficar segurando enquanto vocês dois conversam? — perguntou ela, entediada.

Mel a olhou com olhos repressores.

— Eu não faço ideia do que você esteja falando. E, aliás, Logan, eu duvido que o que você tenha para dizer seja tão assustador quanto o que Helena e eu presenciamos.

Pela primeira vez desde que conheceu Mel, ele teve que discordar com a garota. Não seria possível existir coisa mais assustadora do que enxergar uma pessoa normal e comum se transformando em um zumbi antropomórfico bem na sua frente.

— Receio que você esteja errada. — ele disse — Mas, tudo bem. Vá em frente. Assuste-me com o que quer que seja que você tem a me dizer. Eu duvido que alguém conseguirá me deixar mais amedrontado do que já estou.

Mel esboçou um pequeno sorriso e começou a falar. As palavras tropeçavam umas às outras ou talvez a mente de Logan não estivesse querendo acreditar no que a garota dizia. No final, tudo que ele ouviu foi uma desconcertante história que incluía uma Helena quase morta, uma Fanny que na verdade era um zumbi antropomórfico metamorfoseado, cujo nome real era Sheeva, uma mão decepada e uma ameaça aterrorizante de que aquilo era só o início de uma guerra.

Bem, ela conseguiu.

Sheeva. — sussurrou Logan e imediatamente lembrou-se da letra sanguinária estampada no quadro de avisos daquele corredor insólito. — A letra S! Foi ela quem atacou Pierre. Como eu pude por algum minuto da minha vida ter pensado que aquele S pudesse ser a inicial do nome da minha namorada...

Ele se interrompeu imediatamente e desejou que tivesse mordido a língua. Já não era sem tempo de parar de pensar em Sophia como se ela ainda fosse sua namorada. Ele olhou para Helena, cujos olhos estavam curiosos, e percebeu que ela estava se esforçando para não fazer algumas perguntas indiscretas para aquele momento.

— Pierre? — a pergunta que Helena fez foi totalmente diferente da qual Logan pensou que faria — Não é aquele garoto que desapareceu e que está nos cartazes que Mary espalhou pelo colégio?

Logan anuiu com a cabeça.

— Esse mesmo. Ontem, eu me afastei um pouco da festa porque estava precisando tomar um ar e acabei me aproximando do pomar. Eu o vi por lá, todo esfarrapado, machucado e sujo de sangue. Ele foi mordido por Fanny... quero dizer, Sheeva, naquela noite em que eu encontrei a poça de sangue no chão do corredor. Estava recluso no pomar porque estava se transformando em um zumbi antropomórfico. A transformação se concluiu bem na minha frente.

— Então quer dizer que agora temos mais de um zumbi nas dependências do colégio? — a voz de Helena estava absurdamente alta — É o fim dos tempos!

Logan queria poder discordar da amiga, mas ele sabia que aquelas palavras esboçavam a dura realidade.

— Espere um momento, Logan. — disse Mel, que estava parada coçando o queixo, com os olhares reflexivos fitando nenhum ponto específico — Você disse que Sheeva mordeu Pierre? Mas não estou entendendo como ele pode ter se transformado, se os antropomórficos não têm a capacidade de transmitir o vírus através da saliva.

— É exatamente essa a pergunta que estou me fazendo desde que eu vi a transformação! — exclamou Logan — Eu mesmo já fui mordido por Kofuf e continuo um humano.

— Será que não há a possibilidade de não ter sido exatamente a mordida que o transformou? — perguntou Helena, olhando fixamente para as unhas das mãos, as quais estavam sem ver um esmalte por algumas boas semanas — Sei lá, Sheeva pode ter feito algum ritual sobrenatural que desconheçamos. — ela deu de ombros — Não podemos descartar nenhuma possibilidade!

De repente, faíscas saíram dos olhos de Mel e uma lâmpada pareceu surgiu sobre sua cabeça.

— Puxa, como não pensei nisso antes? Eu tenho um palpite. Venham comigo, quero lhes mostrar uma coisa.

Logan e Helena se entreolharam com uma aparente insegurança. Mel começou a caminhar em direção ao final do corredor, fazendo um sinal com a mão direita que indicava que eles deveriam acompanhá-la. A garota dava passos largos e seguir seu ritmo estava ficando difícil. Helena aproveitou a situação para segurar no pulso de Logan e trazê-lo mais perto, com o óbvio intuito de sussurrar algo em seus ouvidos.

— Você, por um acaso, tem alguma notícia de Sophia? — ela perguntou, com um tom de preocupação em sua voz — Mel ficou no meu quarto esta noite, zelando pelo meu sono e disse que ela aparentemente não dormiu por lá.

Com isso, o estômago de Logan embrulhou. Sentiu um misto de preocupação, desespero e culpa. Não seria de se estranhar se Sophia desaparecesse por alguns instantes depois de ter o coração dilacerado ao ver o namorado beijando outro garoto, mas daí a não dormir no próprio quarto e não dar notícias desde então? Era motivo de sobra para ele ficar extremamente preocupado, visto que o possível causador do aparente sumiço de Sophia era ele próprio.

— Eu... — as palavras sumiram de sua boca, embolando-se em uma completa indigestão. Se tivesse posto alguma coisa no estômago além do café preto pela manhã, teria vomitado tudo ali mesmo.

— Que bela hora para ficar sem palavras! — Helena bufou e soltou o pulso de Logan, ignorando o amigo e começando a caminhar mais rapidamente. Mel já estava bem à frente e acabara de desaparecer ao virar pelo corredor.

Logan considerou a possibilidade de abrir o jogo para Helena e contar à amiga tudo o que estava acontecendo e a tragédia que tinha ocasionado, mas tomou a consciência de que aquele não era o momento oportuno. Engoliu a angústia e respirou fundo, tentando controlar os próprios batimentos cardíacos. Sentia o coração pulsando na mesma velocidade que o de um beija-flor e temeu que aquele momento pudesse ser propício para que tivesse um colapso nervoso.

Onde poderia estar Sophia? O garoto sabia que ela jamais ficaria sem dormir no próprio quarto se não tivesse um motivo realmente forte, como daquela vez em que fora sequestrada por Kofuf. Ele não gostava de se lembrar do pânico avassalador que sentira ao se imaginar sem a pessoa que ele mais amava. No entanto, aquele pânico estava voltando a dominar o seu interior, fazendo um arrepio ártico atravessar o seu estômago.

— Andem logo! — gritou Mel lá na frente. Logan percebeu que já tinha andado uns bons três corredores e a garota estava parada diante da porta da biblioteca. Helena chegou logo atrás, colocando uma mecha do cabelo ruivo atrás da orelha e tocando de leve no curativo em sua bochecha, que provavelmente deveria estar incomodando.

— Por que nos trouxe até a biblioteca? — perguntou a menina, com curiosidade oculta em seu tom de voz.

Mel abriu a porta e deu espaço para que Logan e Helena pudessem entrar. O ambiente estava ligeiramente vazio, exceto pelas poucas pessoas que estavam sentadas nas mesas que existiam no centro do recinto, com as caras enfiadas atrás de livros grossos e de capas duras, e pela Sra. Strauss, que estava com seu corpo velho e gordo atrás da bancada, logo na entrada, com o grande caderno vermelho aberto e uma caneta repousada atrás da orelha. Ela fez uma careta quando os três passaram por ela e foram em direção à última prateleira de livros que reluzia como ouro. Mel se esticou nas pontas dos pés e pegou um dos livros que estavam repousados no ponto mais alto. Um pequeno fio de poeira escapou da capa e ela assoprou-o. Jogou o livro sobre a mesa mais próxima e chamou os outros dois para que pudessem dar uma olhada.

— Essa é a sessão de livros cujas histórias são sobrenaturais. — disse a garota, com os olhos ligeiramente brilhantes. — Eu o achei certo dia quando vim aqui procurar algo para me distrair e acabei encontrando um capítulo inteiro dedicado aos zumbis antropomórficos.

Logan e Helena se entreolharam, um arrepio percorrendo a espinha do garoto. Mel abriu o livro e pulou algumas páginas amareladas até que chegou a uma onde estava estampado um desenho que ilustrava com precisão a aparência real de um antropomórfico. O título do capítulo reluziu nos olhos de Logan: Carnívoros sanguinários: os segredos ocultos dos antropomórficos.

— Por que há um livro sobre zumbis antropomórficos na biblioteca do colégio? — perguntou Helena.

— Não é sobre antropomórficos, mas sim sobre criaturas sobrenaturais. — explicou Mel — Há muitas literaturas que relatam fatos ocasionados por criaturas das sombras, mas elas são muito pouco exploradas porque as pessoas acham que isso são apenas histórias inventadas por mentes brilhantes. Esses livros espalham-se pelo mundo, já que ninguém dá a devida atenção a eles, e acabam com o mesmo destino deste: abandonado e empoeirado dentro da biblioteca de algum colégio. E, quem sabe por ironia do destino, esta belezinha aqui veio parar justamente em Shavely.

Logan não pôde deixar de notar que Mel parecia uma enciclopédia humana quando o assunto era zumbis antropomórficos. Ele sentou-se à mesma no exato momento em que os outros dois fizeram o mesmo. Mel apontou o dedo para a página que estava aberta.

— Há uma parte que me chamou a atenção. — ela disse — Eu já estudei e pesquisei tanto sobre essas criaturas, mas a informação que lerei agora é completamente nova para mim.

E Mel começou a ler:

O que destaca os zumbis antropomórficos de seus parentes genéticos é o fato deles possuírem uma inteligência fora do comum. Tantos fatos os afastam de seus irmãos sem cérebros racionais, mas merece uma atenção especial a impossível transmissão do vírus zumbi através de saliva antropomórfica. Entretanto, há casos em que essa contaminação pode ser possível, visto que há relatos de pessoas humanas que enlouqueceram e sucumbiram ao antropomorfismo depois de serem mordidas pelos zumbis superinteligentes.

Segundo estudos recentes, a transmissão do vírus se dá através do DNA zumbi contido na saliva, no sangue e em regiões que possam expelir qualquer tipo de muco. Contudo, o poder que emana nas veias dos antropomórficos capaz de absorver a energia vital de qualquer coração humano impede que o DNA seja transmitido às vítimas, inibindo assim a possível contaminação. Mas o sangue de um zumbi antropomórfico é parcialmente dominante e caso haja um cruzamento entre um zumbi normal e um zumbi antropomórfico é possível que o descendente dessa união possua uma mistura dos dois sangues e adquira a capacidade de transmissão, já que houve uma combinação passível de ácidos nucleicos oriundos de diferentes espécies. O problema é que o zumbi que nasce deste cruzamento é excepcionalmente fraco e não consegue sobreviver por muito tempo.

Também há relatos de antropomórficos que possuem ambos os pais da mesma espécie e mesmo assim conseguem transmitir o vírus através da mordida. Acredita-se que, neste caso, possa ter acontecido algum incidente que altere a carga cromossômica e permita a mutação do DNA, tornando-o maleável e suscetível à transmissão. Os estudiosos, entretanto, ainda não possuem nenhum conhecimento a cerca dessa segunda possibilidade e estão investindo pesado para tentar descobrir e controlar essa possível praga.

Mel terminou de ler e o único ruído que pôde ser ouvido foi o das pessoas virando as páginas dos livros que liam. Logan olhou para Helena, que fingia estar interessada em qualquer outra coisa que não fosse às informações que acabara de receber, e logo em seguida para Mel, que estava elevando as sobrancelhas como se esperasse por alguma reação dos outros.

— Incrível! — disse Helena, revirando os olhos. — Mesmo não entendendo 80% das palavras contidas nesse texto, suponho que agora é hora de eu sair correndo, apavorada, e gritando: “Corram paras as colinas! Mulheres, crianças e Helenas primeiro!”.

Logan ignorou o comentário da amiga e sustentou o olhar de Mel.

— Bem, acho que podemos excluir a primeira possibilidade. Sheeva está bem longe de ser excepcionalmente fraca.

Mel balançou a cabeça.

— Talvez, mas estou muito intrigada com o fato de que Sheeva possa ter sofrido algum incidente que a fez ter a capacidade de transmitir o vírus. Isso me parece muito raro. Um caso em um milhão.

— Será que podemos mesmo confiar nesse livro? — perguntou Logan — Qualquer um pode ter escrito. E se for tudo mentira?

Helena jogou as mãos para o alto, soando completamente indignada.

— Acho que vocês estão se preocupando com o que não deveriam. Pouco importa o que fez com que Sheeva tivesse esse poder. O importante é que sabemos que ela o possui e temos que redobrar a atenção. Não podemos permitir que ela transforme todo o colégio em um exército de zumbis antropomórficos.

Mel suspirou. Por um momento, Logan notou que ela estava extremamente cansada. Talvez não dormisse decentemente há dias.

— Você tem razão. Mas seria interessante se pudéssemos saber as origens disso. Não sabemos se Pierre também adquirirá o poder de contaminar os outros, já que foi mordido por uma zumbi que o detém.

Se aquela possibilidade pudesse ser real, Logan sabia que seria o fim. O colégio estaria domado pelos zumbis em questão de poucos dias e já não teria mais nada que pudesse ser feito. De repente, ele percebeu que estava perdendo tudo o que mais estimava: a namorada, os amigos, o colégio e, aquilo que ele mais lutava para preservar ilesa — a própria vida.

Ele ia abrir a boca para responder o comentário de Mel, mas Helena foi mais rápida. A garota tinha levantado da mesa e arrastara a cadeira, fazendo um barulho imenso. Várias pessoas olharam furiosas, mas ela apenas as descartou com um gesto manual.

— Chega! — ela exigiu — Não adianta nada ficarmos aqui analisando as milhares de maneiras pelas quais poderemos morrer. Eu gostaria de poder aproveitar meus últimos dias de vida dando um mergulho na piscina, já que o calor está tão insuportável quanto esta agonia de a qualquer momento poder ser atacada por um zumbi disposto a devorar o meu coração.

Mel e Logan se encararam, ambos tentando camuflar o sorriso oculto que se formou em seus lábios. Eles suspiraram e assentiram para Helena, enquanto a garota começava a andar em direção à porta da biblioteca. Mel fechou o livro, abrigou-o ao peito e seguiu a menina ruiva. Uma voz rouca interrompeu o andar dos três amigos.

— Aonde pensa que vai com esse livro atado às suas mãos, mocinha? — Era a Sra. Strauss, que estava olhando predatoriamente para Mel, como se o livro que segurasse fosse um de seus bens mais preciosos.

— Oh, desculpe-me. — ela disse, com a voz um pouco tímida — Eu só queria levá-lo para o meu dormitório. Ainda não terminei de lê-lo.

A Sra. Strauss grunhiu algo inaudível e virou algumas páginas do caderno vermelho. Pegou a caneta da orelha e apontou-a para Mel.

— Mostre-me o título do livro para que eu possa anotá-lo no meu registro. E também me diga o seu nome.

Mel esticou as mãos, colocou o livro a alguns centímetros da cara enrugada da bibliotecária e disse seu nome completo. Ela franziu o cenho e anotou o título com o punho cerrado, com uma força que fez Logan se perguntar como ela não conseguira rasgar a página do caderno.

— Não sei como vocês conseguem se interessar por livros sobrenaturais — A Sra. Strauss resmungou, fechando o caderno e colocando a caneta de volta na orelha. Seus olhos passearam por Logan e permaneceram tempo demais o encarando — Espero que isso não o inspire a cometer mais um assassinato dentro da minha biblioteca.

O queixo de Logan caiu. Olhou novamente para a Sra. Strauss e teve a impetuosa sensação de estar vendo Janeth. O modo como ela disse tais palavras era exatamente igual ao modo com que a diretora lhe dirigia a palavra quando estava lhe aplicando uma punição ou jogando em sua cara fatos que não eram verídicos. Ele sabia que a Sra. Strauss, por muito tempo, assim como todos os outros alunos daquele colégio, fora envenenada pelas sandices de Janeth, mas não podia imaginar que perdurasse até hoje, depois de meses da morte da antiga diretora.

— Eu... — as palavras saíram emboladas de sua boca — Pensei que essa história estivesse resolvida...

Foi a vez de Helena resmungar.

— Essa mulher está ficando tão velha e rabugenta que os pelos de sua orelha estão se espalhando pelo seu cérebro — ela se colocou no meio de Logan e Mel e puxou os braços de ambos, empurrando-os para o lado de fora da biblioteca. — Vamos, não deem ouvidos a essa múmia do Antigo Egito.

Eles já estavam do lado de fora e mesmo assim conseguiram ouvir a Sra. Strauss gritando:

— A múmia do Antigo Egito quer o livro de volta em três dias ou irei relatar à Mary que estão destratando os funcionários do colégio!

Helena não respondeu. Apenas fez um gesto obsceno para a bibliotecária e continuou puxando, dessa vez mais forte, a mão de Logan e Mel.

A mente de Logan estava trabalhando rápido demais. As palavras da Sra. Strauss fizeram-no se lembrar de todo o terror que passara no ano passado e tudo estava tão próximo de se repetir que ele começava a sentir um desespero tão gigantesco que temia que seu coração ruísse. Não queria ver as pessoas que ele amava sofrendo, sendo mortas e dilaceradas, tendo seus próprios corações arrancados, tudo em prol de uma raça que desejava a dominação mundial.

— Que história é essa de assassinato? — A mente de Logan desconectou-se dos pensamentos e ouviu Mel perguntando.

— É uma longa história. — Helena suspirou, andando cada vez mais rápido, parecendo desesperada para sair de dentro do colégio — Foi na época que Kofuf estava por aqui. Ele acabou matando um cara com o qual Logan não se dava muito bem e a culpa recaiu sobre ele. Foi um caos só, porque esse cara era o filho perdido da antiga diretora e ela pretendia contar para ele que era sua verdadeira mãe. Como não conseguiu fazer isso, perseguiu Logan o tempo todo e o fez passar por várias punições humilhantes. Acho que toda essa história a deixou louca, visto que ela começou a culpar Logan de todos os assassinatos que se seguiram depois do de seu filho.

— É isso que zumbis antropomórficos fazem: — respondeu Mel, calmamente — enlouquecem as pessoas até que toda sua sanidade mental seja consumida e não reste nada delas.

Logan sentiu um arrepio cortando sua espinha, eriçando todos os pelos de seu corpo e transportando à sua garganta um gosto amargo, semelhante ao que se sente quando você está prestes a morrer e vê que não há nada além de escuridão no final do túnel. Sentia-se encurralado, completamente sem saída, como se a qualquer momento as paredes de pedra do colégio ruíssem e uma legião de zumbis sanguinários aparecesse disposta a devorar tudo aquilo que ele mais amava. Ele sabia que aquele momento não estava tão distante e imaginar que uma guerra estava prestes a irromper o assustava de uma maneira que ele não conseguia explicar. Entretanto, a única coisa que podia fazer era aguardar e torcer para que os rumos daquela história seguissem um caminho totalmente diferente da completa destruição.

O sol já estava alto e Logan não tinha feito nada de especial naquele fatídico dia de domingo. Tinha ido à piscina com Mel e Helena, mas não entrara na água. Permanecera sentado em uma das cadeiras de plástico, observando enquanto a menina ruiva mergulhava periodicamente e nadava como se fosse uma sereia. Mel pegara uma toalha de banho, esticara-a no deque e deitara de barriga para cima, com o claro objetivo de tomar sol. Logan não entendia o motivo, já que a garota era morena o suficiente e aparentemente não precisava pegar um bronzeado. Meninas, ele pensara.

Depois de algumas horas, os três amigos se despediram e cada um rumou para o próprio dormitório. No caminho, Logan se pegou pensando no sumiço de Sophia. Não tinha visto a garota durante todo o dia e não conseguia imaginar onde ela tinha se metido. A preocupação ia e voltava à sua mente e a culpa se tornava cada vez mais lancinante. Às vezes, achava que ela queria apenas curtir sozinha a dor de ter sido traída pelo garoto que ela confiava e amava. O coração de Logan parecia sangrar porque ele sabia que se ele não tivesse beijado Ian, ela estaria ali ao lado dele, banhando-se na piscina e presenteando-o com beijos e abraços. Só que ele também pensava em Sheeva. E se ela tivesse feito alguma coisa com Sophia? Podia muito bem ter se frustrado na fracassada tentativa de matar Helena e ter partido para outra. A zumbi não parecia muito disposta a abandonar a ameaça que deixara implantada no quarto das garotas e algo no fundo da mente dele dizia que Sophia estava correndo o maior dos perigos.

Depois de subir os degraus das escadas até chegar ao terceiro andar, foi fácil para Logan encontrar a porta do próprio dormitório. Respirando fundo, ele girou a maçaneta e um frio rapidamente surgiu em seu estômago quando enxergou Ian sentado na beira da cama. A janela estava parcialmente aberta e a luz do sol entrava fracamente através do vão. O garoto ainda estava usando pijamas e os pés estavam descalços e balançavam alguns centímetros acima do chão. Ele estava com os olhos vermelhos e úmidos e Logan teve a plena certeza de que ele passara o dia todo trancado ali, chorando e se sentindo a última pessoa do mundo.

— Ian? — ele chamou o garoto. Apertou o interruptor e o cômodo foi banhado pela luz da lâmpada presa ao lustre. — Você está bem?

A pergunta aparentemente idiota não precisou de uma resposta óbvia. Ian olhou para Logan de um jeito estranho, como se implorasse silenciosamente para que ele estivesse em qualquer lugar, exceto ali. O garoto enterrou a cabeça no travesseiro e começou a soluçar desesperadamente. Logan se sentiu com apenas alguns centímetros de tamanho. O que estava acontecendo? Seria possível que fosse tão horrível a ponto de destruir tudo que tocava? Primeiro seu relacionamento com Sophia e agora Ian, que chorava de um modo que estava partindo o seu coração. Espantou-se pelas lágrimas não escorrerem da cama e não inundarem o dormitório.

— Ei, não chore. — ele tentou consolá-lo desajeitadamente, andando em direção à cama e sentando ao lado dos pés de Ian. — A gente pode conversar, se você quiser.

Logan lembrou-se do estado em que Ian se encontrava na noite anterior. Apesar de estar completamente bêbado, notou a luz que irradiava de seu olhar quando abordava o garoto. Ele estava feliz, apesar de tudo.

— Eu não quero conversar. — a voz de Ian estava abafada e chorosa — Por favor, vá embora. Deixe-me sozinho.

Logan escolheu meticulosamente as palavras que disse em seguida.

— O que aconteceu ontem... Eu não teria vergonha se estivesse em seu lugar. Você precisou de muita coragem para fazer o que fez. E, apesar de tudo, eu não consigo culpá-lo por nada.

Ian levantou a cabeça e sentou-se ereto. Duas lágrimas grossas escorriam de seus olhos, mas ele já tinha parado de chorar. Seu olhar tornou-se sério.

— Coragem? — ele perguntou ironicamente — Na verdade, acho que só precisei de alguns miligramas de álcool.

— Você pode não ter percebido ou não se dar conta, mas eu consegui enxergar felicidade no seu olhar. O garoto de ontem é o seu eu interior, que você sempre faz questão de esconder de todos os outros.

Os ombros de Ian pareciam sustentar um peso de quinhentos quilos. Algo parecido com culpa estampou-se em suas pupilas dilatadas.

— Eu sinto muito, Logan. O que aconteceu ontem foi um erro, uma fatalidade, e eu sei que isso vai lhe trazer muitos problemas, principalmente em relação à sua namorada. — ele suspirou — Eu planejava ficar o dia inteiro trancado neste quarto quando acordei e me dei conta do que eu tinha feito. Só que a dor de cabeça estava corroendo o meu cérebro e eu precisava tomar algum remédio. No instante em que eu saí para pedir um comprimido na enfermaria, eu descobri que o colégio inteiro estava sabendo e só eu sei o quão envergonhado eu fiquei quando eu vi as pessoas apontando o dedo na minha cara e me julgando só porque eu não sou como os outros garotos.

Logan surpreendeu-se com aquela notícia, principalmente porque ele não tinha ouvido nenhum comentário sobre esse assunto saindo da boca de nenhuma pessoa. Talvez porque não fosse ele quem estava bêbado e precisara ser carregado até o dormitório ao término da festa. Naquele momento, ele teve mais uma prova de que as pessoas eram cruéis e sempre usavam o ponto mais fraco da pessoa para transformá-la em algo pior do que um monte de entulhos.

— As pessoas não têm o direito de julgá-lo só porque você não é como os outros garotos. Aliás, se você me permite, eu arriscaria dizer que você é mil vezes melhor do que muitos outros garotos espalhados por aí.

O rosto de Ian ficou completamente vermelho e ele não disse nada durante alguns segundos. Os olhos transformaram-se em uma piscina brilhante e ele encarou o rosto de Logan, parecendo maravilhado e encantado.

— Eu... eu preciso sair deste dormitório. — ele disse de repente — Acho que vou conversar com Mary para ver se ela consegue me trocar com alguém.

— O quê? — a voz de Logan soava espantada — Mas por quê?

Ian trocou de posição na cama, visivelmente desconfortável. Ele desviou o olhar e transportou-o para qualquer outra coisa que não fosse Logan. Os dedos brincavam na fronha do travesseiro e ele conseguiu enxergar o peito de Ian subindo e descendo rapidamente.

— Não posso me permitir ficar aqui depois do que aconteceu. Eu... — ele se retesou à cama, respirando fundo e ficando cada vez mais vermelho — Eu não suportaria olhar para você todos os dias e não poder fazer novamente o que eu fiz na festa.

Aquilo deixou Logan sem palavras. Ele não sabia o que responder e o que pensar. Estava torcendo para que aquele beijo fosse apenas resultado do álcool excessivo e não carregasse nenhum tipo de sentimento. Era estranho, ele pensou, um menino dizendo coisas que ele estava acostumado a ouvir somente de meninas.

— Está vendo? — disse Ian, tristemente. — Você nem ao menos consegue me responder.

Logan suspirou.

— Eu não entendo o que você viu em mim. Eu sou alguém tão comum.

— Ah, mas não é mesmo! — Ian disse com uma certeza tão grande que Logan ficou novamente sem palavras — Você é tão incrível. Desde o dia em que nos esbarramos na entrada da cantina, eu não consegui mais parar de pensar em você. Eu vejo o modo como os outros falam de você, descrevendo-o como um grande amigo, uma pessoa que está sempre disposta a ajudar quem precisa. Quando Helena disse aquelas coisas horríveis de mim na frente de todo mundo, você foi o único que não esboçou nenhum tipo de reação que pudesse me diminuir. Você me consolou depois. Eu sempre senti que eu podia confiar em você, mesmo eu sabendo que você tinha uma namorada e que você a amava. Mas ninguém me podia impedir de sonhar de que um dia eu conseguiria...

Ian parou de falar e começou a chorar novamente. As lágrimas desciam suavemente pelos seus olhos arregalados, toda a angústia sendo lavada e indo embora com o líquido salgado que escorria.

— Desculpe. — ele disse, esfregando os olhos com o dorso da mão — Já estou acostumado a sempre desejar aquilo que eu não posso ter.

O coração de Logan começou a ficar acelerado. Ele sentiu o sangue correndo nas veias e o momento em que tocou os lábios de Ian veio quente à sua mente. Enxergou o rosto do garoto imerso em sorrisos, cheio de expectativas e esperanças que não sabia se eram possíveis de se tornarem reais. Sabia que ele não tinha medo de tentar, mesmo utilizando o álcool como catalisador. Não receava se jogar de cabeça, dar tudo o que ele podia e tentar fazer com que seus desejos mais profundos se tornassem realidade. Logan sentiu orgulho de Ian e foi por causa disso que ele esticou a mão e repousou-a sobre a do garoto choroso.

Sentiu o calor de sua mão, o suor rapidamente escapando pelos poros da pele. Ian o encarou, com várias perguntas ocultas em seus olhos. Logan sabia que não poderia responder a todas elas e muito menos satisfazer os desejos daquele pobre garoto confuso. Mas ele arriscou dizer uma coisa:

— Você sabe que se eu pudesse, eu não hesitaria nenhum segundo em tentar fazer você se sentir melhor.

Ian apertou a mão de Logan, as ondas caloríferas se tornando cada vez maiores. Os olhos arregalados do garoto esbanjavam anseios desesperados, mas ele se conteve em apenas emitir um sorriso fraco, tão fraco que seus lábios se elevaram apenas alguns milímetros.

— Não quero que você faça nada por mim só porque está com pena do meu estado deplorável. — Ian puxou a mão para trás e repousou-a ao lado do corpo, em um lugar que Logan não conseguiria alcançar — Não quero ficar implorando aos seus pés.

Logan pensou no dia em que conheceu Sophia, saindo da biblioteca de Shavely, falando pelos cotovelos, levando o garoto para fazer um tour pelo colégio. Naquele dia, ele entendeu o que o brilho dos olhos dela significava e ele conseguia ver o mesmo brilho toda vez que olhava para Ian. Era algo tão irradiante que ele tinha medo do ofuscamento.

— Eu sinto muito. — lamentou-se Logan. Queria encontrar mais alguma coisa para dizer, mas as palavras afogaram-se no mar revolto que eram os seus pensamentos.

Ian afastou-se de Logan e novamente enterrou a cabeça no travesseiro. Ajeitou o corpo para que nenhuma parte pudesse tocar o outro garoto e abraçou o lençol que envolvia o colchão do mesmo modo que abraçaria alguém especial.

— Não sinta. Já me conformei de que não há nada que você possa fazer.

Logan estava se sentindo a última pessoa do mundo. Ele assentiu com a cabeça, mesmo sabendo que Ian não estava vendo. O cérebro demorava para processar qualquer pensamento e ele demorou alguns segundos para levantar da cama e ir em direção à porta, absorto demais pensando em Ian caído no chão, rindo depois dos lábios deles se tocarem.

Logan já tinha girado a maçaneta e estava pronto para sair do quarto, quando conseguiu ouvir novamente a voz abafada de Ian:

— Vá atrás de sua namorada. Eu sei que a relação de vocês não está nada boa e ela deve estar sofrendo. Não a deixe para trás para ficar consolando algo que já está fora de qualquer salvação.

Os raios lunares eram os únicos responsáveis por iluminar aquele ambiente negro e sombrio. Os galhos das árvores farfalhavam com a brisa gelada e as folhas secas caídas ao chão estalavam com os passos da zumbi furiosa. A floresta estava escura, mas Sheeva não precisava de iluminação. Conhecia exatamente onde pisar, por onde cortar caminho e de quais obstáculos deveria desviar. Entretanto, não pôde usar de tal destreza para chegar rapidamente ao seu objetivo, já que tinha que guiar um zumbi lamentavelmente tedioso.

Pierre andava ao encalço de Sheeva, já completamente transformado. Até a pouco era apenas um humano que tinha tido a infelicidade de ir estudar em Shavely — o colégio tenebroso que logo se transformaria em um refúgio de zumbis —, mas Sheeva tratou de trazê-lo para o lado selvagem. Agora era um antropomórfico, ainda meio desorientado e sem perspectivas sanguinárias, mas ela faria com que se endireitasse. Era apenas uma questão de tempo para que ele adquirisse a essência de ser um verdadeiro zumbi.

Naquela noite, um integrante de seu bando tinha ido até Shavely para informá-la de que o mestre solicitava sua presença com urgência. Achou melhor levar Pierre junto, para que ele pudesse ser apresentado e se tornar parte integrante do bando. Caminhavam em direção à clareira onde os zumbis sempre realizavam reuniões nas quais discutiam maneiras e estratégias de aumentar o prestígio da raça. Já se passara uma semana desde que fora enviada à Shavely e o mestre provavelmente devia querer algum relatório de como estava a situação no colégio. Sua saliva estava ainda mais espessa porque, incrivelmente, ela estava nervosa. O mestre era o zumbi mais respeitado de todo o seu bando e ele provavelmente não ficaria feliz em saber que ela não tinha completado nem metade da missão que ele lhe propusera.

— Onde estamos indo? — ela ouviu Pierre resmungando, com a voz rouca e metálica. Lembrava-se da voz amedrontada do garoto quando o atacou no corredor do colégio. A boca até encheu-se de água ao lembrar-se do cheiro de medo dele. — Você me obriga a te acompanhar, mas nunca me explica nada.

Sheeva olhou para ele com olhos incisivos e rosnou uma resposta:

— Você vai conhecer o mestre do nosso bando, criatura tediosa. E, antes de ficar exigindo coisas, é bom que se lembre de que enquanto estivermos em Shavely você terá que me obedecer sem me questionar e também terá que aceitar que não é mais um humano.

Era tão mais fácil para ela, que já tinha nascido uma antropomórfica nata. Não tinha que aceitar a essência de ser um zumbi, tinha apenas que sobreviver e caçar. E ela até podia sentir uma pontada de culpa por Pierre ter se transformado graças à mordida que ela lhe aplicara, mas definitivamente não carregava sentimentos como esse. Era uma honra trazer mais um integrante à sua própria espécie, ser a responsável por aumentar aquilo que ela mais prezava na vida. Só tinha que agradecer ao incidente que a fez ter esse maravilhoso poder.

— Estamos chegando. — ela disse, apontando com a mão decepada para a clareira que estava ao fundo.

Sheeva percebeu que Pierre olhou para o lugar vazio onde antes estava sua mão e isso a fez se lembrar de que estava com raiva da maldita caçadora de zumbis. Não havia se esquecido dela e não fazia a mínima ideia de que ela tinha ido parar em Shavely. Ainda conseguia se deleitar ao lembrar-se do quanto o seu próprio bando se divertira utilizando as pessoas que ela mais amava para amedrontá-la. Era uma pena que ela não tivesse participado de todo o teatro, mas tinha que se gabar por ter assistido tudo de camarote. E a sessão de sofrimento não pararia por aí, porque a garota ainda ia pagar por ter sido a responsável por dilacerar sua mão. Não teria pena em acrescentar mais um nome à lista das pessoas que ela mataria dentro daquele colégio, sem dó nem piedade.

A quantidade de árvores tinha cessado e Sheeva deu o primeiro passo sobre a terra batida da clareira. O mestre já estava lá, sentado em cima do toco de árvore cortada onde ele sempre subia para declamar seus discursos. Ela se aproximou até que conseguisse enxergar com clareza o seu rosto cinzento. Ele ficou de pé e esticou um dos dedos, um claro sinal para que Sheeva não desse mais nenhum passo. Pierre estava ao seu lado e ele também parou, encarando o mestre com os olhos negros esbugalhados e cheios de perguntas ocultas. Sheeva fez uma rápida reverência, que foi totalmente ignorada pelo mestre. Ele estava observando Pierre, que não tinha mexido nenhum músculo do próprio corpo.

— Apresente-se. — disse o mestre, com a voz ríspida o suficiente para que qualquer outra pessoa saísse correndo de medo ao ouvi-la. Sheeva olhou para Pierre e ele estava engolindo em seco.

— Meu nome é Pierre. Recém-transformado em zumbi antropomórfico.

O mestre torceu o nariz podre.

— É um péssimo nome para um zumbi. Sugiro que o troque por um codinome. — ele olhou para Sheeva como se estivesse esperando por mais alguma coisa. — Onde estão os outros?

Ela franziu o cenho.

— Outros?

— Claro! Você já teve uma semana dentro daquele colégio e só conseguiu transformar uma única pessoa em zumbi? — o mestre estreitou o olhar, olhando para ela com mais atenção, e enxergou a mão decepada de Sheeva. Ele ardeu em fúria — O que aconteceu com a sua mão?

Sheeva queria cavar um buraco na terra e se enterrar. Por mais incrível que pudesse parecer, ela estava se sentindo envergonhada.

— Mestre, eu... Foi um acidente.

O mestre saltou do toco da árvore e foi em direção à Sheeva. Seus olhos estavam vermelhos em ira e ele agarrou o pescoço da zumbi, apertando-o com muita força. Com o canto do olho, percebeu que Pierre deu alguns passos para trás, aparentemente assustado com a atitude do mestre.

— Sua incompetente! Pensei que estava mandando a minha zumbi mais poderosa, mas pelo visto mandei alguém tão imprestável como Kofuf. — ele apertava cada vez mais forte e ela já estava começando a ficar sem ar — Como pôde ter perdido uma das mãos? Explique-me!

— Caçadora... — As mãos ásperas do mestre impediam que ela falasse com precisão. Aquilo parecia apenas o divertir, visto que ele já estava raspando as unhas afiadas na pele do pescoço dela, pronto para a qualquer momento perfurá-lo — Há uma caçadora de zumbis lá dentro... Ela ateou fogo à minha mão enquanto eu tentava matar aquela menina ruiva arrogante.

O mestre explodiu e empurrou Sheeva com toda a sua força. Ela caiu de costas no chão e teria fraturado todos os ossos da costela se fosse frágil como os seres humanos. O mestre estava afagando os cabelos desgrenhados, andando em círculos, visivelmente irritado e transtornado.

— Como você deixa um simples humano quase lhe destruir? — ele gritou tão alto que alguns pássaros que dormiam nas árvores ao fundo levantaram voo — Você é mais forte que todos eles. Tem que ser. Deveria ter matado essa caçadora com as próprias mãos, destroçado seu corpo e drenado seu sangue até que não restasse nada além da pele imunda que veste. Vou lhe dar mais dez dias. Esse é o prazo para você matar todos aqueles adolescentes malditos e construir um exército de zumbis decente. Caso contrário, eu interferirei na missão e você terá o mesmo destino que Kofuf. Está me ouvindo?

Sheeva ainda estava caída ao chão, mas ela acenou afirmativamente com a cabeça. O mestre ainda continuava com seu olhar incisivo, a mandíbula tremendo de tanta raiva.

— Agora vá. Treine esse seu novo zumbi para que ele seja tão sanguinário quanto os outros. E espero que da próxima vez que eu lhe chamar, você me traga boas notícias.

O mestre cuspiu no chão ao lado de Sheeva antes de virar o corpo e se retirar. Ela enxergou a mão de Pierre esticada ao lado de seu corpo quando ela virou a cabeça. Dispensou-a com um aceno de mão e levantou sozinha do chão. Passou pelo outro zumbi esbarrando propositalmente em seu ombro.

— Zumbis não devem ser gentis, nem mesmo com aqueles da própria espécie.

O tom amargo em sua voz chegou a incomodá-la. Ela já estava a milhares de passos na frente de Pierre e tentou se esforçar ao máximo para esconder que naquele momento a sua única vontade era de se desmanchar em lágrimas.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Screaming" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.