Screaming escrita por caiquedelbuono


Capítulo 12
Aumentar a espécie.




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Sophia estava correndo o mais rápido que podia. Por mais que estivesse curtindo o som peculiar que fazia seu corpo remexer de uma maneira engraçada, não suportaria ficar nem mais um segundo nos confins daquela festa. As lágrimas escorriam descontroladamente de seus olhos e ela sentia o gosto salgado do líquido caindo em seus lábios secos. A brisa que batia em seu rosto estava gélida e os pelos finos e louros de seu braço estavam levemente eriçados.

Não sabia onde estava e talvez estivesse perdida pelos corredores labirínticos de Shavely, mas ela não se importava. Apenas queria estancar a própria dor. Parou de correr e encostou as costas à parede. O corredor parecia vazio e qualquer barulho emitia ecos sonoros gigantescos.

A mente girava e ela não conseguia parar de pensar no beijo que presenciara. Não sabia se aquilo era fruto do álcool ou se realmente aconteceu porque ambas as partes desejaram. Cansou de pensar nas milhões de vezes em que se sentiu enciumada, mas jamais pensou que o ato carnal fosse acontecer com aquele que ela jamais suspeitou. Passou a semana inteira alerta com Mel — a menina que fazia companhia a Logan por horas a fio; a menina com a qual Logan tomou café da manhã, deixando Sophia sozinha; a menina cujo quarto Logan já conhecia —, porém ele tinha tocado os lábios de Ian.

Ian.

O fato parecia não corresponder à realidade. Sophia não sabia se Logan tinha lhe visto em meio à multidão de rostos boquiabertos, não sabia se ele tinha enxergado a lágrima grossa que rolou de seus olhos; provavelmente não, ele estava ocupado demais beijando Ian. Ocupado demais se relacionando com outras pessoas, com novatos, deixando a namorada de lado diversas vezes, preferindo a companhia daqueles que não significavam nada para ele.

Sophia sabia que tudo tinha sido um erro. Não deveria ter se apaixonado por Logan desde o primeiro dia que o viu, quando o levou para fazer um tour pelo colégio. Era o primeiro dia dele em Shavely, ela se lembrava com precisão. Ele estava tão confuso e desorientado, achando que tinha acabado de entrar no pior lugar do mundo. Talvez ele tivesse toda a razão. Não deveria tê-lo perseguido por todos os cantos, só porque queria permanecer mais tempo com ele. Não deveria ter se envolvido, ter se entregado aos lábios dele naquela festa à fantasia. Mas ela estava tão vulnerável. Janeth tinha espalhado o segredo que guardou durante anos para o colégio inteiro e ela se sentiu a menor pessoa do mundo. Logan também estava fragilizado, sendo acusado por um crime que não cometera e tendo que passar por punições injustas. Agora ela via o que a fraqueza acarretava. Talvez se fosse uma pessoa mais forte... Talvez se fosse um pouco mais como Helena...

O último soluço escapou de sua garganta e ela decidiu que não ia mais chorar. Não valia a pena. Se Logan queria se esfregar com outro garoto, se queria trocá-la por qualquer outra coisa, por pessoas que ele mal conhecia, o problema era dele. Já tinha passado por tanta coisa mais séria na vida, que um relacionamento malsucedido não seria o fim do mundo.

Respirando fundo, ela decidiu voltar para a festa. Queria encontrar Helena e contar para a amiga tudo o que acabara de presenciar, queria saber o que ela faria se estivesse em seu lugar. Mas ela congelou quando deu o primeiro passo. Ouviu vozes sussurrando à distância. Não conseguia distinguir se eram vozes masculinas ou femininas, mas sabia que as pessoas estavam próximas demais. Ouviu um gemido suave. Sophia olhou para trás, mas não enxergou nada além da fraca luz pálida da lua iluminando através das janelas, o que não era suficiente para que conseguisse formar uma imagem nítida. Mais um gemido, seguido de uma risadinha.

— Quem está aí? — perguntou Sophia, com o coração acelerado.

A primeira coisa que pensou era que ali pudesse estar um zumbi antropomórfico. Lembrou-se do bilhete encontrado no dormitório e da ameaça que pairava no ar. Ela sabia que um ataque era muito provável e não queria que acontecesse justamente com ela, bem quando estava chateada e sozinha em um corredor escuro.

Outro gemido.

Será que zumbis antropomórficos também gemem?

Dessa vez, a voz ficou mais elevada e ela conseguiu parcialmente reconhecê-la. Era masculina, pelo menos.

— Sophia? — disse a voz — É você?

Franzindo o cenho, Sophia quase teve vontade de gargalhar. E então, respirou aliviada, por finalmente ter reconhecido quem era o dono da voz.

— Tommy?

Dando alguns passos para frente e forçando os olhos ao olhar para o canto da parede do outro lado, Sophia conseguiu enxergar a silhueta do menino. Na luz pálida do luar, seus traços eram finos e bem definidos, com destaque para uma pequena iluminação que emanava em meio aos seus dedos.

— Você está fumando? — perguntou Sophia, olhando com mais atenção para o cigarro que ele segurava.

Seus olhos estavam se acostumando com a escuridão e ela viu que tinha outra pessoa ao lado dele. A figura deu alguns passos para frente e um corpo feminino ficou à mostra. Sophia viu as botas pretas e pesadas, as roupas também negras, a tatuagem esquisita no braço e o piercing no nariz pulsando à medida que Kelsey piscava os olhos com força.

— Olá, cerejeira. — disse a menina, fazendo questão de olhar para os peitos de Sophia. Ela agradeceu por estar escuro o suficiente para ninguém vê-la enrubescer. — Quer um cigarro também?

— Não, obrigada.

Kelsey revirou os olhos.

— Tinha me esquecido de que você é careta demais para isso.

Sophia pensou em contra argumentar, mas sabia que não tinha chance alguma quando se tratava de Kelsey. Ao invés disso, olhou com mais precisão para as pessoas à sua frente. Notou que a roupa de ambos estava ligeiramente amassada e que o cabelo de Tommy estava bagunçado, como se ele tivesse passado a mão por entre os fios mais de duzentas vezes. Os lábios de Kelsey estavam mais vermelhos que o normal e sabia muito bem que ela não tinha passado batom.

— Vocês estão se pegando mesmo? — perguntou Sophia, temendo que sua voz soasse inocente demais.

Kelsey e Tommy se entreolharam com um riso oculto nos lábios. A garota soluçou antes de responder.

— Acho que “se pegar” é um termo muito fraco — ela fez uma pausa e estendeu a mão para pegar o cigarro que Tommy segurava. Deu um trago antes de continuar falando. — Nossa relação vai muito além, se é que você me entende, loirinha.

— Mas vocês se conhecem há tão pouco tempo.

Kelsey soltou a fumaça e devolveu o cigarro a Tommy.

— Acho que não devemos satisfação das nossas vidas pessoais a você. Aliás, nem sei por que estamos aqui conversando com você. Beijar Tommy estava muito mais interessante.

De certo modo, ouvir Kelsey falando daquele jeito fez uma leve dor surgir em seu coração. Até na semana anterior, Tommy era namorado de Helena e agora ele estava beijando Kelsey pelos cantos escuros do colégio, como se o que tivessem construído antes não significasse nada para ele. Tudo bem que ambos viviam brigando, terminando e reatando constantemente, e mesmo que o amor estivesse se desgastando no pouco tempo de relacionamento, era impossível que tivesse acabado. Ainda havia resquícios. Sophia sabia disso porque presenciou o quanto Helena estava sofrendo e tal sofrimento indicava que agora ela tinha uma amiga que não se assemelhava em nada à Helena que conhecera há mais de sete anos. Tudo estava tão diferente...

— Como você pode beijar Kelsey sabendo que Helena está sofrendo? — Sophia perguntou involuntariamente. De um jeito ou de outro, a pergunta pegou ambos de surpresa, porque até mesmo Kelsey arregalou os olhos.

Tommy estudou o olhar de Sophia. Ele não disse nada até que desse a última tragada no cigarro e jogasse a guimba apagada no chão.

— Do mesmo modo que ela foi capaz de beijar Paul na minha frente. — ele deu de ombros — Bem, acho que agora estamos quites.

— Você sabe que aquele beijo foi artificial. — argumentou Sophia — Ela cansou de me contar que foi Paul quem a beijou e frisou mais de oitocentas vezes que ele tem problemas psicóticos.

Tommy bufou.

— Sophia, largue de ser ingênua. Me diga o que você faria se visse Logan beijando outra pessoa...

Ele não precisou terminar de dizer a frase para tudo voltar em sua mente. Naquele momento, ela sentiu o coração trincando e rachando em centenas de minúsculos pedaços. Ela jamais conseguiria colá-los novamente. A ferida da decepção era sempre a que demorava mais tempo para cicatrizar.

— Eu...

Uma lágrima grossa escapou dos olhos da garota alva.

— Ai, mas que papo chato. — Kelsey resmungou.

Tommy estava olhando com mais cuidado para a amiga. Embora o ambiente não estivesse iluminado o suficiente, ele talvez tenha visto o inchaço e a vermelhidão dos olhos.

— Sophia? Você está chorando?

Sophia enxugou as lágrimas que agora já escapavam descontroladamente com as costas da mão. Tudo estava fazendo sentido. Compreendeu o motivo de Tommy estar ao lado de Kelsey. Entendeu os fatos que o levaram a agir de um modo completamente oposto ao que ele sempre foi. Não foi tão difícil assim de enxergar. Bastou apenas um deslize mais sério, como a última gota de água necessária para fazer um recipiente transbordar. E foi naquele momento que a angústia de seu coração escorreu como uma cachoeira revolta.

— Helena tem razão. Relacionamentos não são para pessoas normais. Agora sei o que você sentiu quando a viu beijando Paul. Entendi o modo pelo qual seu coração foi estraçalhado. — ela fez uma pausa quando notou que Tommy não estava entendendo o que ela dizia. Respirou fundo antes de continuar — Vi Logan beijando outra pessoa.

Kelsey enfiou a mão no bolso e tirou um maço de cigarros de dentro dele. Escolheu um e acendeu-o com o isqueiro. Havia entretenimento em sua expressão facial.

— Bem-vinda ao clube das decepções amorosas. Bem, já temos três integrantes.

Tommy parecia espantado. Kelsey entregou a ele o cigarro e ele deu um trago. Estranhamente, Sophia desejou que a garota tivesse entregado o cigarro a ela.

— Logan fez isso? Mas ele ama você.

— Era o que eu costumava pensar desde que começamos a namorar. — Sophia suspirou — É incrível como as pessoas se enganam facilmente...

— Isso não faz sentido. — disse Tommy — Deve ter acontecido algum tipo de engano. Tenho certeza que Logan não faria isso se estivesse em seu juízo perfeito.

O único engano ali era que Logan nunca foi apaixonado de fato por Sophia. Foi tudo uma ilusão de sua mente. Já havia notado há muito tempo. Ela se lembrou do dia em que ele não conseguia parar de olhar para duas garotas avantajadas que estavam na piscina; ela via o jeito que ele olhava para os peitos de Fanny, percebia o jeito que ele olhava dentro dos olhos de Mel. Mas o que mais estava doendo dentro de seu coração era que ele tinha beijado outro garoto. Aquilo soava como traição em dose dupla. Sentiu raiva crescendo dentro de seu peito e algo que ela nunca sentira antes estava fazendo seus punhos cerrarem: estava com vontade de acertar um soco na cara de alguém.

Kelsey deu um passo à frente e estendeu a palma da mão de modo a ficar bem na frente do rosto de Sophia.

— Desconte a sua raiva. — ela disse — Pode dar o soco mais forte que conseguir.

Sophia olhou para a pele grossa da palma da mão de Kelsey. Em sua mente, as linhas da mão formavam perfeitamente o rosto de Logan. Ela enxergou o namorado ali, os olhos castanhos brilhando de deleite, o sorriso sarcástico no rosto, o cabelo desarrumado... Não pensou duas vezes. Cerrou as mãos, impulsionou-as para trás e acertou a mão de Kelsey em cheio. Sentiu os ossos dos dedos doerem, mas Kelsey se moveu apenas alguns milímetros para trás.

— É, razoável. — disse Kelsey, olhando com certa desaprovação para Sophia — Se eu tivesse dado esse mesmo soco na sua mão, teria lhe desmontado inteira.

Sophia não disse nada. Ela estava desajeitada, na verdade. Não tivera uma boa impressão de Kelsey na primeira vez em que a vira. Utilizava sempre dos piores adjetivos para caracterizá-la, mas agora parecia haver alguns resquícios de generosidade dentro daquele coração amargo. Forçou um sorriso de leve, que não soube se foi percebido pelos outros dois.

— Acho que a festa acabou. — disse Sophia, percorrendo o olhar de Kelsey a Tommy, que estava encostado na parede, relaxado, ainda fumando o que já parecia ser o terceiro cigarro.

— Eu não diria o mesmo. — entoou Kelsey — Já que está conosco, não vou permitir que vá para o seu dormitório se sentindo uma fracassada. Nunca é tarde para fazer um careta se transformar em um descolado.

Sophia franziu o cenho.

— O que está insinuando?

— Não deixe que decepções amorosas façam com que você fique do mesmo jeito que Helena. Sabe, eu odeio essa garota e eu mesmo quero vê-la sofrendo, mas quero que ela sofra por minha causa e não por causa de Tommy. Ninguém merece sofrer por um amor, nem mesmo ela.

— Não vou andar com alguém que quer ver minha amiga sofrendo. — Sophia estava indignada.

Kelsey bufou.

— Esqueça um pouco os outros, Sophia. Você realmente quer ficar chorando pelos cantos porque viu Logan beijando outra pessoa? Erga essa cabeça. Finja que não há mais nada nesse mundo além de você mesma.

Por tempo demais, Sophia foi essa pessoa que Kelsey acabara de descrever. A garota mimada e frágil, que ficava escondida pelos cantos chorando as frustrações da vida e rezando para que um milagre divino, qualquer que fosse, pudesse mudar suas dúvidas e incertezas. Ela tinha consciência de que tinha que agir e tomar uma iniciativa, mas nunca sabia por onde começar. Tudo parecia uma página em branco. Agora ela tinha o empurrãozinho que precisava...

— E como eu faço isso? — ela perguntou.

Kelsey sorriu e segurou na mão de Sophia, puxando-a levemente. Olhou para Tommy, que piscou para ela e acenou com a cabeça. O cigarro já estava apagado entre seus dedos e ele jogou-o no chão.

— Venha conosco. — disse Kelsey, alegremente — Vamos lhe mostrar o verdadeiro significado da palavra “diversão”.

Logan já perdera a conta de quantas vezes tinha passado o dedo pelos próprios lábios. Sua mente era uma conexão de pensamentos confusos e que não faziam sentido. A coisa que mais queria naquele momento era nunca ter ido àquela festa. Deveria ter ficado trancado no quarto escuro, deitado na própria cama e protegido do mundo traiçoeiro que sempre era responsável por lhe pregar peças desastrosas. Entretanto, ele não sabia o que estava sentindo. O exato momento em que Ian lhe tocara os lábios não saía de sua cabeça. Esfregou as têmporas com força para aliviar a dor de cabeça que se alastrava em seu cérebro, mas de nada adiantou.

Talvez fosse apenas o choque da situação. Era muita coisa para absorver. Ele não podia ter gostado daquele beijo. Fora completamente artificial e não durara nem mesmo dez segundos. Nem ao menos colocou a língua para fora. Mas, mesmo assim, aconteceu. Ele deixou-se levar por um impulso que não deveria existir. Tentou ao máximo resistir, tentou enrijecer o próprio corpo até ficar duro feito uma estátua, mas a força e a vontade de Ian o arrastara direto para aquele beijo. O garoto era tão determinado que Logan sentiu inveja dele. Por mais que estivesse bêbado, ele lutava com unhas e dentes para conseguir o que queria. Uma atitude invejável, na maioria dos casos.

Sabia que Sophia tinha visto tudo. Por mais que ele não tivesse certeza absoluta, ele vira a namorada (ou ex-namorada, ele já não sabia de mais nada) correndo em direção à porta dos fundos, fugindo desesperada da festa. Tinha plena consciência de que estava decepcionando-a desde que começara uma amizade com Mel, mas agora tinha destruído o pouco da confiança que restava dentro da menina. Ela não sabia dos motivos que o levaram a se aproximar de Mel, não tinha conhecimento de que a menina sabia mais sobre zumbis antropomórficos do que qualquer outra pessoa dentro daquele internato, e mesmo que soubesse, Logan não acreditava que ela podia se sentir menos enciumada; Sophia era irredutível. Logan pensou no que ela estava sentindo, em quão arrasada ela devia estar.

Ela me viu beijando outro garoto. Meu Deus, eu sou um monstro.

Estava se afastando da festa, a música tornando-se distante. Já devia ser alta madrugada e uma brisa gélida de inverno esfriava seu corpo, eriçando os pelos de seu braço. Andava sem rumo pelo exterior do colégio, não se importando com mais nada. Precisava arejar a cabeça, pensar com calma no que tinha acabado de acontecer.

O pomar estava próximo e ele percorreu uma trilha de folhas secas iluminadas pela pálida luz da lua cheia. Atravessou duas árvores cujos galhos quase se entrelaçavam e lembrou-se de ter visto o corpo morto de Janeth escondido sob as folhas caídas daquelas mesmas árvores. Sentiu um arrepio na espinha e percebeu que aquele lugar era extremamente insólito. Qualquer lugar tornava-se sombrio à luz da lua, ainda mais aqueles que foram palcos de um assassinato.

Já estava virando o corpo com o intuito de voltar para a festa, quando ouviu um barulho. Passos fizeram as folhas ao chão farfalharem. Ele olhou para trás e não viu nada, nenhum indício de movimento. Dando de ombros, convenceu a si mesmo de que era sua imaginação. Estava muito abalado com o beijo e com a ideia de que um ataque zumbi poderia acontecer a qualquer momento. Se nada tinha acontecido ainda, não seria justamente agora que a criatura escolheria atacar. Não podia ser novamente com ele. Estava cansado de todos os eventos sobrenaturais daquele colégio tê-lo como testemunha.

Respirando fundo, deu um passo em direção à festa. A fogueira estava muito menor se comparada ao início do evento e ele conseguia enxergá-la como um ponto de alguns centímetros, bem distante. Ouviu um estalo de galho quebrando e ficou paralisado. Virou o corpo novamente e encarou a sombra da árvore que estava bem a sua frente. Tinha algo lá. Os arbustos ao lado estavam se movimentando. Com as mãos trêmulas, Logan avançou.

— Olá? — ele chamou, em um tom de voz semelhante a um sussurro.

A sombra começou a se mexer e, quando ele levantou a cabeça, viu uma silhueta. Não era a sombra da árvore, afinal, e sim de algo humanoide. A princípio, achou que fosse um zumbi, mas percebeu que a criatura usava roupas humanas. Olhando com mais precisão, Logan notou que era um garoto. Mesmo à luz do luar, conseguiu notar suas feições físicas: era bem alto e poderia muito bem ter quase dois metros de altura. Os cabelos eram espetados, a pele bronzeada, tinha um piercing na sobrancelha e um alargador na orelha. As roupas estavam rasgadas em vários pontos e seu rosto estava sujo de terra, sangue e fuligem. A cor do líquido era anormalmente mais escura do que o normal — aproximava-se do negro. O suor havia colado os cabelos na têmpora e os fios pareciam extremamente duros.

Logan reconheceu-o na hora. Lembrou-se dos cartazes que estavam anexados por todos os cantos do colégio e do desespero de Mary na procura do garoto que estava desaparecido desde o dia em que deveria ter ido a uma aula particular de matemática com a diretora.

— Pierre? — chamou Logan, aumentando o tom de voz para que ele pudesse ouvir.

O olhar de Pierre estava desesperado. Os olhos negros do garoto estavam tão escuros quanto o interior daquele pomar. Ele deu alguns passos para trás, como se estivesse com medo de Logan.

— O que você está fazendo aqui, não deveria estar naquela festa? — ele disse em um tom calmo, mas logo depois começou a berrar: — Não me ataque! Não quero ver os seus dentes pontiagudos! Saia daqui!

Logan deu alguns passos para frente e estendeu os braços em um gesto solidário, como se fosse abraçar o garoto quando estivesse perto o suficiente.

— Fique calmo. Eu não vou machucar você e não tenho dentes pontiagudos. Apenas quero saber por que está todo esfarrapado. Você sabia que Mary está a sua procura? Ela está tão preocupada com o seu sumiço que até espalhou por todo o colégio cartazes com o seu rosto estampado.

Suor começou a escorrer da testa de Pierre. Os olhos foram inundados por uma expressão de terror e suas mãos estavam trêmulas. Parecia desesperado para encontrar algo que pudesse segurar.

— Não me importo. Não é um assunto que eu gostaria de falar. — Ele estava arfando e com dificuldades para falar — Por favor... Vá embora. Eu não quero... que ninguém me veja assim.

Logan já estava tão próximo do garoto que conseguiria tocá-lo se esticasse o braço. Preferiu não fazê-lo. Apenas analisou Pierre com mais precisão.

— Assim como? Além do fato de estar todo sujo e com as roupas rasgadas, não há nada de anormal em sua aparência.

Os joelhos de Pierre cederam e ele caiu ao chão. Jogou a cabeça para trás e Logan viu a expressão de dor em seu rosto. Estava mordendo os lábios com tanta força que sangue vermelho-escuro começou a escorrer.

— Fica mais forte durante a noite. — ele estava se contorcendo ao chão, fazendo força para não cair ainda mais, ainda apoiado nos joelhos — Não sei por mais quanto tempo vou conseguir resistir.

O sangue agora praticamente jorrava do ferimento labial. Era mais espesso e mais escuro que o normal, tão escuro que parecia nanquim. Os músculos de Pierre sofriam espasmos sob sua pele frágil. As costas enrijeceram e ele caiu ao chão, deitado com a barriga para cima. O peito subia e descia rapidamente e Logan esticou a cabeça para poder ver o rosto do garoto lá embaixo. Agora entendera porque os lábios rasgaram-se: presas pontiagudas tomaram o lugar de seus dentes caninos.

— Seus dentes... — disse Logan, completamente espantado — São exatamente iguais aos dos...

Ele não conseguiu terminar de dizer. Estava completamente sem forças. A mente queria acreditar que tudo aquilo não passava de uma miragem. Pierre estava se transformando em um zumbi? Mas ele sabia que aquilo era impossível, já que um zumbi antropomórfico não tinha a capacidade de transmitir o vírus através de uma mordida. Ele mesmo já havia sido mordido por Kofuf e jamais se transformara em zumbi. Então por que os dentes de Pierre estavam tão grandes daquele jeito e por que seu sangue estava tão escuro?

— Estou me transformando. — disse Pierre, deitado no chão em posição fetal. Ainda sofria leves espasmos, mas ele não estava mais se contorcendo com tanta intensidade. Talvez tivesse aceitado o princípio da transformação. — Aconteceu algumas noites atrás. — ele prosseguiu, a voz trêmula — Já era tarde e eu tinha saído do dormitório porque esquecera de encher minha garrafa de água que sempre deixo na cabeceira ao lado da minha cama. O corredor do bebedouro estava escuro e eu não estava enxergando direito. A garrafa estava quase cheia, quando eu senti algo batendo com força na minha cabeça. Eu perdi o equilíbrio e minhas mãos empurraram o bebedouro, que caiu junto comigo ao chão. Olhei com mais precisão para ver o que tinha acertado a minha cabeça e vi algo que eu jamais pensei que pudesse existir. Era cinza, tinha dentes e unhas pontiagudos, olhos negros e profundos, ferimentos expostos com sangue negro escorrendo. Eu fiquei com vontade de vomitar porque o cheiro daquela criatura era pior do que qualquer outra coisa.

“Eu queria fugir, mas minhas pernas estavam paralisadas. O terror em meus olhos era mais do que evidente e aquilo parecia somente diverti-la. Eu tentei levantar, mas a criatura foi mais rápida e arranhou o meu rosto. Eu caí novamente no chão e ela subiu sobre o meu corpo. Lembro-me dela sussurrando algo relacionado a aumentar a espécie, a me transformar em um dos dela. Eu não consegui fazer nada quando ela enfiou os dentes no meu peito e me mordeu. Sangue espirrou para todos os lados e eu não entendi quando ela simplesmente levantou e me disse que agora eu entenderia o verdadeiro significado de uma raça. Não compreendi porque ela me deixou viver. Mas, eu decididamente preferia que ela tivesse me matado a me obrigado a viver com isso.”

Quando Pierre terminou de falar, Logan percebeu que “isso” era o fardo de se transformar em um zumbi antropomórfico. Era muito pior do que nascer um. Pierre tinha consciência do significado de humanidade e agora tinha perdido tudo. A única coisa que teria consciência era da morte, porque mesmo estando vivo, tinha morrido. Sua parte humana esvaíra-se e ele agora era um monstro.

Apesar de ter encontrado a primeira peça do quebra-cabeça, Logan ainda tinha algumas perguntas. Agora sabia que o sangue que encontrou no corredor era de Pierre e sabia também que havia sido mordido e que agora estava se transformando em um zumbi antropomórfico. Precisava entender o motivo disso. E também queria esclarecimentos sobre a letra S no quadro de avisos.

— Você não viu a criatura em sua forma humana? — perguntou Logan.

Pierre parecia não ter forças para falar.

— Não. Ela já era aquela coisa podre quando me acertou na cabeça.

— Você precisa se lembrar de mais detalhes! — Logan quase suplicou — A criatura não te disse nenhuma informação que pudesse explicar o motivo de você estar se transformando? A saliva desses seres não é contagiosa, você não deveria estar se tornando um deles.

— Eu... Eu não lembro. É como se os detalhes tivessem sido apagados da minha memória.

Logan estava completamente frustrado. Precisava de mais pistas, precisava encontrar mais peças para finalmente formar o quebra-cabeça. O enigma parecia cada vez mais complicado.

Só que Logan não foi capaz de perguntar mais nada quando um ruído horrível escapou dos lábios de Pierre e ele encolheu o próprio corpo. Seu rosto era um depósito indiscutível de dor.

— A transformação está se completando. — disse Pierre — Depois de três dias vivendo semitransformado e recluso nesse pomar, tomando o maior cuidado para não ser notado por ninguém, pensei que poderia viver na forma híbrida. Pensei que ainda pudesse guardar resquícios de como é...

Ele não conseguiu terminar de dizer. Naquele momento, foi como se um raio tivesse caído do céu e lhe acertado em cheio. A brisa transformou-se em um imenso vendaval e as folhas das árvores começaram a balançar com muita força. Logan escutava o uivo do vento. Um clarão escapou do céu e uma fumaça acinzentada começou a percorrer o corpo de Pierre. O garoto levantou e ficou de pé, ainda contorcendo-se incessantemente. Seus olhos estavam arregalados e pareciam hipnóticos. A única cor que escapava deles era negra. A roupa começou a rasgar ainda mais, até que se transformaram em vários farrapos. Diversos riscos esbranquiçados começaram a surgir em sua pele, traçando todo o contorno de seu corpo e dividindo todas as partes exatamente ao meio. Quando estava completamente envolto por eles, um estalo os fez separarem-se e ouviu quando o tecido se rasgou e a pele do garoto caiu ao chão. Por uma fração de segundos conseguiu enxergar todos os músculos que formavam o corpo de Pierre, mas a pele foi rapidamente substituída por outra que começou a brotar de seu interior. Calombos acinzentados surgiam em todas as regiões de seu corpo e a pele escura ia se moldando à sua silhueta.

— Fuja... — sussurrou Pierre, a voz se tornando mais grossa que o usual.

Logan não conseguia se mover. A fumaça que embalava Pierre tornou-se mais densa e envolveu sua cabeça. A pele recém-formada do pescoço rasgou-se novamente, e dessa vez sangue negro escapou do ferimento. Aconteceu o mesmo procedimento em outras partes do corpo, até que ele ficasse completamente ensopado e sujo de sangue.

— Avise aos outros... — A consciência humana de Pierre que ainda restava implorava para Logan — Sou só o começo de tudo...

Os dentes afiados estavam à mostra. Os olhos negros e terrivelmente infinitos não captavam nenhum ponto específico, mas Logan sabia que estava olhando para ele. Mais alguns segundos e não sobraria mais nada.

— Vá...

O ruído que escapou dos lábios do garoto foi horrível. Ele estava eriçando a boca, como se fosse um animal selvagem. Logan não permaneceu para ver o que aconteceria em seguida. Ele virou o corpo e saiu correndo, deixando o recém-zumbi sozinho no pomar escuro.

Helena estava com dificuldades para abrir os olhos. Estava acordada há alguns segundos, mas as pálpebras pareciam estar grudadas. Uma enorme dor de cabeça apossava-se de seu cérebro e ela sentia como se milhares de abelhas estivessem zunindo dentro de seu crânio. Estava de ressaca? Mas ela não se lembrava de ter colocado nenhuma gota de álcool na noite anterior. Os pensamentos eram desconexos e ela não conseguia se lembrar com precisão do que acontecera. Estava consciente do horror que passara e da sensação aterrorizante daquela droga queimando por dentro de seu corpo, mas ainda rezava para que tudo não tivesse passado de um sonho.

Quando uma imagem nítida do ambiente finalmente se formou diante de seus olhos, ela esfregou o rosto com as mãos e sentou na cama. Sentiu uma dor aguda e, pelo tato, percebeu algo áspero colado em suas bochechas. Eram curativos. Olhou para o próprio corpo e notou que estava com a calça que usara para ir à festa, porém a camiseta estava ausente. Trajava só um sutiã e também havia curativos em seu peito. Os lençóis brancos estavam úmidos de suor e o próprio corpo estava quente. Começou a sentir uma pontada de desespero, já que ela não se lembrava de como foi parar no quarto.

Com certa dificuldade, colocou as pernas para fora do beliche e olhou para baixo. Queria contar tudo o que aconteceu para Sophia e dizer para a amiga tomar cuidado, que ela poderia ser a próxima a sofrer um atentado sobrenatural. Porém, a cama dela estava vazia e perfeitamente arrumada. Ou ela acordara muito cedo naquela manhã de domingo e já estava do lado de fora do colégio, tomando café-da-manhã ou dando um mergulho na piscina, ou não tinha dormido no quarto. Seu coração começou a acelerar.

— Sophia? — ela sussurrou o nome da amiga.

Ninguém respondeu.

Helena olhou para a cama de Fanny, do outro lado do quarto, e levou um susto. Havia uma garota sentada lá, com as pernas cruzadas sobre o colchão. Imediatamente pensou que pudesse ser a própria Fanny, mas ela notou que a pele da garota era mais escura. Mel estava descalça e trajava pijamas de um tecido bem leve. Grossas olheiras destacavam-se sob seus olhos.

— Ah, finalmente acordou! — ela disse, levantando os braços na altura dos ombros. — Pensei que dormiria o dia inteiro.

Helena tentou respirar fundo, mas o peito instantaneamente doeu. Talvez ainda estivesse com um pouco da fumaça da droga correndo pelos seus pulmões. Ou talvez tudo não passasse de paranoia de sua cabeça. Não sabia explicar com precisão.

— Onde está Sophia? — ela perguntou, com a voz ainda sonolenta.

— Ela não dormiu nesse quarto. — disse Mel, levemente preocupada. — Quando você desmaiou, eu a trouxe aqui e fiquei velando o seu sono a noite inteira. Não vi nenhum indício de que ela tenha entrado, a menos que eu tenha pegado no sono por alguns segundos e não tenha percebido.

Helena bufou. Será possível que Sophia podia ter desaparecido de novo? Será que Sheeva tinha lhe sequestrado, do mesmo jeito que Kofuf fizera? Não, não era possível. Aquele pensamento era apenas fruto do medo que estava sentindo. A mente apenas queria pregar mais uma peça para podê-la assustá-la ainda mais.

Olhou para Mel e lembrou-se do momento em que ela apareceu na cozinha do colégio, segurando uma tocha improvisada nas mãos. Pensou na coragem da garota em atirá-la na direção de Sheeva, sabendo que ela poderia destruí-la com uma simples mordida. Queria poder ter tido a força de Mel, queria poder ter encarado a zumbi do mesmo jeito, mas estava tão fragilizada que praticamente não conseguia raciocinar direito. Não podia se culpar desse jeito, mas também não podia negar o estranho sentimento que exalou de seu peito, sufocando-a como se fosse a pessoa menos digna do mundo. Estava se sentindo envergonhada.

— Por que me salvou? — ela perguntou, com a voz fraca — Você nem ao menos me conhece.

Mel a encarou, os olhos negros piscando repetidas vezes.

— Não é uma questão de conhecê-la ou não. — ela fez uma pausa, como se estivesse escolhendo as melhores palavras a se dizer. Helena notou que ela mexia os pés inconscientemente. — Este colégio está prestes a ser palco de uma grande guerra sobrenatural. Os antropomórficos não estão para brincadeira. Estou aqui para proteger Logan, mas também sou sensata o suficiente para tentar proteger as pessoas que ele ama.

A cabeça de Helena estava girando. A noite anterior ainda parecia um borrão dentro da própria mente e as palavras de Mel apenas contribuíam para que a névoa obscura pairasse ainda mais sobre seus pensamentos.

— Proteger Logan? Você não o conhecia antes de entrar aqui, conhecia?

— Não. Há certas coisas que você ainda não precisa entender, Helena. Apenas precisa confiar em mim. Acredite, eu sou uma pessoa que entende muito bem do que zumbis antropomórficos são capazes de fazer. E estou aqui para ajudá-los.

Uma coisa ainda martelava na cabeça de Helena. Lembrava-se claramente de Sheeva chamando Mel de caçadorazinha. Não sabia se existiam de fato caçadores de zumbis, não sabia nem ao menos se as pessoas que não moravam naquele internato sabiam da existência daquelas criaturas. Parecia algo tão fora da realidade, tão distante. Mas ela tinha que perguntar, mesmo que soasse inocente demais.

— Você é uma caçadora de zumbis?

Mel acenou afirmativamente com a cabeça.

— Não há muitos de nós espalhados por aí. Aliás, acho que eu sou a única caçadora de zumbis deste país. Algumas circunstâncias do passado me levaram a ser o que eu sou hoje. Estudei muito, pesquisei sobre eles em todos os lugares imagináveis. Deixei minha vida inteira para trás para me dedicar somente a isso. Tenho um vasto conhecimento e isso me ajudou a preparar um equipamento invejável. Se tiver algum tempo, posso levá-la ao porão do colégio e lhe mostrar o meu arsenal. Tenho engenhocas que variam de galões de produtos inflamáveis até um lança-chamas moderno totalmente prateado.

— Como você tem tudo isso guardado no porão do colégio? — Helena estava boquiaberta — Quero dizer, Mary lhe deu permissão ou ela sequer imagina sobre tudo isso?

Mel deu uma risadinha que deixou Helena um tanto quanto desconfortável. Teve a estranha sensação de que a garota estava mais por dentro dos acontecimentos maléficos de Shavely do que ela própria. E só fazia parte do corpo discente há praticamente uma semana!

— Não vim a este colégio para estudar. O bando de zumbis antropomórficos que residem nas florestas das redondezas foram os mesmos responsáveis por... — ela se interrompeu, percebendo que falaria algo que não deveria. Rapidamente, mudou de assunto — Eu sabia que eles atacavam as residências e habitações próximas às florestas. Aqui seria um bom lugar para eu me instalar e me preparar para a caça. Eu me apresentei à tia de Logan e ela estava desesperada. Contou-me sobre os atentados que aconteceram no ano passado e eu me propus a ajudá-la a proteger seu sobrinho e, em troca, ela deixou que eu me hospedasse aqui e escondesse meu material no porão do colégio.

— Bom, é uma linda história de superação e extremamente comovente, mas se você tinha um lança-chamas, por que simplesmente utilizou um pedaço de pau com um pano incendiado ontem à noite? Você podia ter destruído Sheeva em um piscar de olhos!

— Eu não tinha muito tempo. Logan me mostrou o bilhete ameaçador que vocês receberam. A festa já tinha começado e eu sabia que o zumbi ia atacar. Ele também me disse que vocês estavam desconfiando de Fanny e me contou sobre as meninas com crise de insônia. Ela era a prioridade. Vi vocês duas saindo da festa e as segui. Quando entraram na cantina, eu tinha de ser rápida. Voltei correndo e a única coisa que consegui fazer naquele momento foi pegar um pedaço de pau, rasgar uma parte do meu casaco e incendiá-lo na fogueira. Quando voltei, você já estava sendo atacada e eu parti para o meu trabalho.

Helena estava entorpecida. Lembrou-se de ter visto algo sombrio, momentos antes de entrar na cantina. Pensara que fosse uma coruja, um inseto ou apenas um vulto negro comumente fácil de encontrar em corredores escuros. Jamais pensou que pudesse ser Mel tomando conta dela. Não soube explicar, mas sentiu uma gratidão gigantesca passando por seu peito. Se não fosse por ela, tinha a plena certeza de que estaria morta.

— Mas devo repreendê-la por ser tão imprudente. — prosseguiu Mel, em um tom que parecia o de uma mãe dando uma bronca no filho que acabara de quebrar um vaso com plantas — Como pôde sair da festa sozinha com aquela que você acreditava ser um zumbi antropomórfico?

Helena sentiu a face queimar em escarlate.

— Não era uma certeza. — ela deu de ombros — E eu não tinha mais nada a perder. — Naquele momento, ela sentiu o vazio voltando a lhe preencher. Onde Tommy estaria? Será que estava dormindo na cama de Kelsey? Será que estava jogado em um canto escuro, ainda bêbado, fumando e consumindo drogas na companhia daquela cretina? Não queria pensar. Tinha que aceitar de uma vez por todas que tinha chegado ao fim.

O amor está morto.

As palavras invadiram sua mente e ela viu o olhar cruel de Tommy, dilacerando-a por completo. Sentiu a brisa gélida que sempre arrepiava os finos pelos de sua nuca quando ele esbarrava propositalmente no ombro nela. Suas mãos estavam cerrando em punhos e ela sentiu vontade de socar o travesseiro. Só não o fez porque Mel estava a olhando incisivamente.

— Bem, podia ter perdido a vida.

A naturalidade com que Mel disse aquilo fez a espinha de Helena arrepiar-se.

— Continuo viva, não? — ela deu um sorriso amarelo. O dedo indicador levantou no exato momento em que algo se passou pela sua cabeça — Posso fazer uma pergunta?

Mel balançou a cabeça.

— Até duas, se você quiser.

— Pensei que zumbis antropomórficos fossem destruídos com o mínimo contato com fogo. Por que Sheeva ainda continua viva?

As mãos de Mel coçaram o próprio queixo, como se ela estivesse refletindo sobre alguma questão.

— Sheeva é um zumbi mais poderoso do que os outros. Tenho certeza que cinquenta por cento de seu discurso é puro egocentrismo, mas é fácil de notar que ela tem algo em especial, uma peculiaridade. Isso pode ter ajudado um pouco para que ela não fosse totalmente destruída, mas aquela chama era fraca demais. Não tinha gás o suficiente para derreter toda a essência de seu corpo. — Mel fez uma pausa, olhando para o rosto curioso de Helena. Sua pele parecia desbotada e sua aparência demonstrava que não dormia há mais de dias — Há apenas duas maneiras de matar um zumbi antropomórfico de um modo direto e irreversível: apontando a chama direto em seu coração ou consumindo-o com uma fonte ardente que não seja única. Foi o que Logan fez, quando provocou o incêndio na diretoria.

A menção daquele fatídico dia fez Helena retesar-se a cama. Estava sentada com as pernas balançando para fora do beliche, mas puxou o cobertor para cobrir parte delas. Sentiu-se um pouco mais protegida com o ato.

— A mão de Sheeva nunca mais vai regenerar?

— Não. Zumbis antropomórficos podem se regenerar de qualquer ferimento, se curar de facadas ou tiros de bala em questão de segundos, mas o processo não é o mesmo quando se trata do fogo. Não há regeneração ou salvação.

— E se Sheeva voltar a se metamorfosear em Fanny? Como a veremos depois do incidente?

Mel deu um sorriso.

— Teremos uma Fanny maneta. Mas eu duvido que ela faça isso. Provavelmente está refugiada em algum canto escuro ou nem ao menos está mais no colégio. Devemos ficar alertas, porque onde quer que ela esteja, está planejando o próximo ataque. E ela voltará com uma sede de sangue ainda maior.

— Não fale assim. Eu... — não queria admitir para si mesma de que estava com medo. Naquele momento, ela teve vontade de ser como Mel. Ela não havia lhe contado o que realmente tinha acontecido, mas dava para ver que estava determinada a encarar aquilo que foi responsável por destruir sua vida. Queria resgatar a Helena que havia deixado no passado, aquela garota corajosa cujo dicionário não continha palavras como medo, insegurança, fraqueza e lágrima. Mas ela receava que essa Helena não existisse mais. Por fim, não conseguiu terminar de dizer e engoliu as palavras com um soluço choroso.

— Todos nós estamos amedrontados, querida. — disse Mel, afetuosamente — Mas é algo que precisamos enfrentar juntos.

Helena assentiu, os olhos marejados com as lágrimas que estavam querendo sair. Prendeu-as sob as pálpebras e olhou para baixo, para a cama vazia de Sophia. Queria tanto que a amiga estivesse ali. Odiava essa coisa estranha que estava presa em sua garganta e tentou engoli-la de todas as formas, mas o sentimento estava querendo transbordar.

De repente, Helena pulou do beliche, aterrissando os pés descalços no chão. Queria entrar no banheiro, ligar o chuveiro e ficar o máximo possível sob a água fria. Desejava que as lágrimas se misturassem com a água e escorressem para o ralo, juntamente com toda a sua angústia. Tinha vergonha de desejar isso e estava se sentindo a última pessoa do mundo. Amedrontada, destruída e estilhaçada.

— Aonde você vai? — perguntou Mel.

Helena nem tinha notado que já estava praticamente parada em frente à porta do banheiro.

— Vou tomar um banho. Meu corpo necessita se livrar de toda essa inhaca de zumbi.

— E os ferimentos? Deixe-me tirar os curativos para que você possa lavá-los.

Helena revirou os olhos.

— Não é necessário. Eu mesma posso fazer isso.

— Mas Helena...

Mel. — Helena notou que tinha dito o nome da garota alto demais — Obrigada. Sou grata demais por você ter salvado a minha vida. Você foi incrível e já fez muito por mim. A partir de agora, eu sei me cuidar por conta própria.

Ela abriu a porta do banheiro e entrou no cômodo, batendo-a com força. Torceu para que o barulho impedisse que Mel ouvisse o suspiro lamurioso que escapou de seus lábios. Quando ela girou o registro do chuveiro, liberando a água gelada, percebeu que a temperatura do líquido e de seu coração eram perfeitamente iguais.


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