Screaming escrita por caiquedelbuono


Capítulo 11
Raça egoísta.


Notas iniciais do capítulo

Olá leitores fiéis de Screaming. Espero que vocês não tenham se cansado de tanto esperar por uma atualização. Eu nunca abandonei essa fanfic, apenas fiquei dedicado aos estudos, sem internet e etc e daí eu não tinha tempo e disposição para escrever. Mas eu senti falta dos personagens, eles tinham que continuar vivos dentro de mim, e então estou voltando a postar. Prometo que não deixarei essa história tanto tempo assim sem atualizar. Enfim, apenas curtam o capítulo. Foi feito pensando em vocês. ♥



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A festa já estava no auge, mas ainda não tinha acontecido nada que pudesse classificá-la como algo estritamente memorável. Era apenas um bando de adolescentes problemáticos dançando em volta de várias brasas crepitantes e comendo espetinhos de marshmallow como se o mundo fosse acabar no dia seguinte. Eram possíveis de se ver várias varetas de madeira em meio à relva bem aparada da parte exterior do colégio. Os alunos provavelmente não estavam dando a mínima para quem iria limpar aquela bagunça no outro dia.

Logan estava visivelmente entediado. Estava parado em meio a um grupo de pessoas que dançavam de um modo estranho, ambas as mãos escondidas atrás das costas. Já tinha tomado alguns copos de ponche (a única bebida que os garçons estavam servindo em bandejas prateadas) e comido uns bons cinco espetinhos, já que aquela era visivelmente a única comida ali. Sophia estava desaparecida em meio às pessoas, procurando por Helena, que não tinha dado sinal de vida desde que as meninas chegaram. O garoto viu Tommy uma vez, mas ele estava na companhia de Kelsey, que segurava um cigarro em uma das mãos e um copo contendo um líquido escuro, o qual Logan julgou não ser ponche. Ele não viu o que tinha nas mãos de Tommy, mas sabia que ele segurava algo.

Logan apenas deu de ombros. Sabia que Tommy havia mudado muito desde que começara a ter um contato mais pessoal com Kelsey (e isso fazia apenas alguns dias) e, embora ainda estivesse preocupado com o amigo, aquele já não era um problema com o qual ele deveria desperdiçar neurônios se preocupando. Havia coisas piores rondando sua cabeça, como o bilhete-ameaça deixado no quarto de Sophia e Helena e a probabilidade gigantesca de um ataque zumbi ocorrer naquela noite e mais uma pessoa inocente acabar saindo morta simplesmente por caprichos de uma espécie sobrenatural que não pensa em nada a não ser morte, destruição e corações humanos empapados em uma bela dose de sangue fresco.

Mel dissera que ficaria de olho, mas Logan ainda não tinha visto nenhum sinal da garota. Aliás, ainda não tinha visto sinal de coisa alguma. Deu algumas voltas em volta do próprio corpo e viu que as pessoas estavam realmente se divertindo. Viu um garoto loiro com os olhos intensamente azuis bem perto de outro garoto, este com um cabelo negro que Logan já estava habituado a conhecer: Ian. Ele reconheceu o garoto loiro como sendo Paul, mas achou estranho que ele não estivesse no encalço de Helena. Talvez ele não esteja conseguindo achá-la, pensou Logan.

Ian tocou o ombro de Paul e pareceu dar um empurrão no garoto. Paul deu um sorriso torto e piscou um dos olhos para Ian, que ficou vermelho feito um pimentão, antes de virar as costas e adentrar no meio da multidão. Ian acenou quando viu Logan e praticamente correu em sua direção.

Logan respirou fundo.

Modo paciência, ativar.

— Pessoas bêbadas não são legais. — disse Ian — Elas sempre acabam me irritando.

O rosto dele, Logan percebeu, não estava vermelho porque ele tinha ficado com vergonha do sorriso que Paul lhe dera, mas sim porque ele também estava completamente bêbado. A voz dele estava enrolada e Logan estava com certa dificuldade para entendê-lo. As pernas estavam trançadas e não sabia como Ian ainda conseguia manter-se de pé.

— Como se ele fosse o único aqui... Aliás, não parecia que ele estava te irritando. Será que você não conseguiu perceber todo o flerte naquela situação? E aquele sorrisinho que o deixou todo derretido? — Logan parou de falar enquanto Ian soltava um soluço e acrescentou: — Estranho. Pensei que Paul fosse heterossexual.

Ian deu uma gargalhada tão alta que o som se misturou às batidas da música havaiana que tocava e teve certeza que a grande maioria das pessoas que dançavam pensou que aquilo fosse um efeito da música.

— E ele fala como se esse termo ainda existisse. Bobinho. — Ian se aproximou alguns passos e tentou colocar a mão no ombro de Logan, que desviou rapidamente — Hoje em dia todo mundo é, pelo menos, bissexual. Estou torcendo para que você seja. — e ele encerrou a frase com um risinho quase inocente, não fossem as milhares de segundas intenções por trás daquele comentário.

Logan analisou tudo o que poderia dizer naquele momento. Não tinha qualquer tipo de preconceito com pessoas que gostavam de outras do mesmo sexo, mas ele não era bissexual. Tanto não era que tinha uma namorada. Ou achava que tinha. Enfim, ele poderia simplesmente olhar para Ian e dar uma resposta curta e grossa do tipo: “Não estou interessado em você. Me deixe em paz”, mas ele gostava de Ian e não queria desavenças com o colega de quarto. Poderia explicar toda a situação, que ele já tinha uma namorada e que gostava de Ian apenas como amigo. Mas, ele resolveu dizer algo que não tinha nada a ver com o rumo da estranha conversa.

— Onde você arranjou bebida alcoólica?

Ian estava ficando cada vez mais perto.

— Não mude de assunto, gatinho.

— Me diga. Você não está raciocinando direito e vai ficar envergonhadíssimo amanhã se sequer conseguir lembrar de que disse as coisas que está me dizendo.

— Foi com uma menina que tem um piercing no nariz. — disse Ian, agora a apenas centímetros de distância de Logan. — Ela é novata assim como eu e já ouvi várias coisas a respeito dela. Há boatos de que ela tem contatos fora do colégio e que ela deu um jeito de eles trazerem um pequeno frigorífero repleto de bebidas alcoólicas. Ela está distribuindo as garrafas pela festa.

Ian apontou para o chão, ao lado de algumas pessoas que estavam comendo marshmallow e jogando conversa fora. Logan viu uma garrafa quebrada, metade do gargalo há alguns centímetros de distância. Algumas gotas de um líquido escuro ainda escorriam em meio às reentrâncias do vidro quebrado.

Kelsey. E ele colocou o nome de Tommy junto ao pensamento. Agora sabia porque Helena tinha desaparecido. Ela provavelmente tinha visto Tommy e Kelsey juntos, bêbados, e aquilo foi demais para ela. Sophia provavelmente estava consolando a amiga. Logan quis imediatamente ir para o quarto dela para ver se ela estava bem, mas tinha um Ian bêbado e grudento colado na sola do seu pé.

— E então... — ele disse em meio às risadas — Será que eu posso pedir pelo menos um beijinho?

Ian. — disse Logan, rígido — Pare com isso. Você sabe muito bem que isso não é possível.

Ele fez um biquinho com a boca.

— Mas por quê? Me dê pelo menos um motivo.

— Eu gosto de garotas e você não é uma garota.

— E daí? Eu te achei tão bonitinho. Sabia que você tinha algum rolo com uma menina chamada Sophia, aliás, foi aquela menina que invadiu o nosso quarto ontem à tarde e ficou aparentemente enciumada quando viu nós dois juntos, não foi? Coitadinha. Ela deveria ficar enciumada se descobrisse as coisas que eu quero fazer com você. Olho para você e vejo alguém tão bom, em todos os aspectos, principalmente na cama.

Ok, agora ele tinha passado de todos os limites.

Ian, chega. — Logan vociferou — Vou levar você para o quarto e você vai entrar debaixo de um chuveiro de água bem gelada.

— Só entro se você entrar junto e me deixar tirar a sua roupa. Você deve ter um corpinho tão gostoso.

Logan não disse nada. Apenas revirou os olhos e segurou nos ombros de Ian, tentando empurrá-lo para que ele pudesse ir em direção ao quarto. Porém, ele esboçou resistência. Os músculos de Ian estavam rígidos e Logan percebeu que ele era mais forte do que aparentava — ou pelo menos adquiria força psicológica enquanto estava bêbado.

No momento seguinte, as posições se inverteram. Com uma rapidez insensata, Ian segurou nos pulsos de Logan, imobilizando suas mãos. Ele aproximou o rosto do outro garoto, que estava praticamente se contorcendo enquanto Ian reforçava ainda mais a pressão que não deixava Logan se mover.

— Prometo que não vai doer nada.

Ian fechou os olhos e no momento seguinte os lábios de Logan estavam colados aos de outro garoto. Ele cerrou a boca e não permitiu que ela se movimentasse nenhum segundo sequer, mas conseguia sentir a língua insistente de Ian, que estava tentando abrir caminho como se fosse uma serpente venenosa em busca de um coelho que se escondera em meio a um arbusto de folhas.

Na fração de segundos que se seguiu, Logan percebeu que Ian tinha afrouxado o aperto em seus pulsos, o que facilitou para que ele pudesse se libertar e empurrar o garoto ousado. A essa altura, várias pessoas já estavam olhando boquiabertas para o beijo homossexual. Ian desequilibrou e por seus movimentos estarem visivelmente alterados, ele caiu de costas para o chão. Ele parecia estar extasiado e a única coisa que conseguia fazer era rir sem parar. Algumas pessoas se abaixaram para ajudá-lo a se levantar. Logan não disse nada quanto ao que deveriam fazer com Ian e onde deveriam levá-lo. Ele não se importava. Apenas queria sair dali.

Porém, suas pernas não obedeciam aos seus comandos e ele não sabia o que estava sentindo. Levantou as mãos e passou o dedo nos lábios que acabaram de tocar-se aos de outro garoto. A sensação era estranha, não podia negar. Por mais que o beijo fosse praticamente artificial, ainda assim era estranho demais.

O aglomerado de pessoas havia se distanciado, mas quando Logan virou a cabeça, ele percebeu um vulto amarelado correndo em direção à entrada dos fundos do colégio. Com o barulho do vento, ele pôde ouvir um curto e distante choro.

A escuridão do lado de dentro do colégio era incrivelmente maior do que do lado de fora. As brasas da enorme fogueira emergiam luz para todos os cantos do exterior, mas, ali, nos corredores úmidos e abandonados, os únicos feixes de luz provinham da lua cheia refletindo nas janelas entreabertas. Entretanto, Helena não precisava enxergar para conseguir caminhar em Shavely. Ela conhecia cada canto do colégio como conhecia cada parte do seu próprio corpo.

Fanny caminhava ao seu lado, porém, ela parecia um pouco desorientada. Segurou mais de duas vezes na mão de Helena durante o trajeto, até conseguir caminhar naquele ambiente que era praticamente desconhecido para a novata. Ela segurava o celular em uma das mãos e a luz do aparelho permitia que pelo menos enxergasse o chão onde pisava.

Os pensamentos de Helena estavam inquietos. Por mais que ficar trancada no quarto observando as rachaduras do teto fosse mais interessante do que permanecer naquela festa chata, ela não podia negar que estava morrendo de vontade de voltar para lá apenas para espionar Tommy. Não conseguia tirar da cabeça a ideia de que ele estava em algum lugar, se esfregando com Kelsey, tocando naquela pele áspera e olhando para aqueles olhos cruéis e assassinos. Um arrepio percorreu sua espinha e quando ela olhou para o lado, viu que Fanny a encarava, sorrindo.

— No que você está pensando? — perguntou a garota, os olhos curiosos.

Helena hesitou. Não confiava plenamente em Fanny, aliás, ela mesma não sabia o que estava fazendo sozinha com aquela garota estranha. Só achava que não tinha mais riscos, não tinha mais nada com que se preocupar além da própria insatisfação por simplesmente estragar tudo o que lhe pertence.

— Estou pensando em qual lugar você está me levando. — Não era necessariamente uma mentira. Esse fato também a estava intrigando. — Na verdade, não sei nem porque eu aceitei ir a qualquer lugar com você, visto que não é exatamente o que eu posso chamar de uma pessoa normal e confiável.

— Ué, achei que a festa estivesse chata demais... — Fanny parecia entretida — E, além do mais, receio que esteja na hora de você mudar a concepção que tem ao meu respeito. Vou lhe mostrar que posso ser uma pessoa legal.

Helena pensou em todas as vezes que Fanny já tentou fazer isso. Não conseguia entender essa súbita obsessão que a menina tinha em querer sempre demonstrar que podia ser uma pessoa legal. Com tantos outros alunos no colégio para escolher como vítima, Helena não conseguia parar de se perguntar por que justo ela.

As meninas continuaram em silêncio, até pararem diante de uma porta que estava entreaberta. Fanny foi a primeira a se movimentar, empurrando a porta e revelando um local totalmente escuro e sombrio. Ela foi a primeira a entrar, deixando Helena do lado de fora por alguns segundos. Olhou para trás e teve a impressão de ver um vulto negro se escondendo em meio às sombras que dançavam diante dos seus olhos. Quando ela piscou, não havia mais indício de nenhum movimento. Dando de ombros, ela entrou no recinto, que agora havia recebido uma dose extra de iluminação quando os dedos de Fanny tocaram o interruptor preso à parede.

Sem muita surpresa, a cantina do colégio se revelou. Sem a presença de nenhum aluno, ela parecia mais gigantesca do que o normal. As mesas pareciam dobrar de tamanho e a quantidade de cadeiras parecia maior. Os vidros das bancadas onde a comida era servida estavam fechados e embaçados e uma porta, ao fundo, estava entreaberta.

— O que estamos fazendo na cantina do colégio? — Helena perguntou, exacerbada — Pensei que você fosse me levar a um lugar legal.

Fanny sorriu e foi em direção à porta dos fundos. O barulho dos sapatos da garota atritando contra o chão percorreu os ouvidos de Helena como uma lâmina. De repente, aquele era o único ruído que era capaz de ouvir.

— E aqui não é legal? — ela esticou os braços como se fosse dar um abraço em alguém — Atrás dessa porta têm todos os tipos de quitutes que podemos imaginar. Têm garrafas térmicas com café e chá e uma geladeira com bastante refrigerante. É bem melhor que aqueles marshmallows moles e diabéticos.

Helena atravessou as bancadas e entrou no ambiente. Havia uma mesa de granito comprida no centro, com algumas cadeiras de madeira viradas de ponta cabeça em cima da peça, fogões de todos os tamanhos ao fundo, com panelas devidamente tampadas repousando em suas bocas, três geladeiras de tamanhos diferentes, além de quadros com desenhos de frutas pregados nas paredes.

— Mary não vai gostar de saber que estamos invadindo a cozinha do colégio enquanto deveríamos estar do lado de fora, curtindo a festa. — Helena fez um sinal de aspas com as mãos ao dizer a última palavra.

— Não foi bem uma invasão. — Fanny deu de ombros — Como você pôde ver, ambas as portas estavam destrancadas. Apenas entramos.

Fanny pegou duas cadeiras e virou-as no ar, repousando-as no chão. Helena não pôde deixar de notar, com certo assombro, que fizera isso como se as cadeiras fossem feitas de isopor. Antes de sentar, ela foi em direção à geladeira do meio, pegou duas latinhas de coca-cola e arremessou uma delas em direção à Helena. A garota teve sorte por ter um bom arco reflexo e pegado a lata antes que caísse ao chão.

— Beba um pouco de coca. — disse Fanny, sentando de pernas cruzadas em uma das cadeiras. Ela abriu a latinha e tomou um longo gole. Helena viu o líquido descendo pela pele fina de sua garganta e se assustou com o fato dela ter tomado quase todo o conteúdo sem ao menos engasgar. — É revigorante.

Helena estava começando a ficar sem jeito. Agora, olhando para Fanny, percebeu que havia algo de diferente nela. Ela não sabia explicar o que era, mas sentiu um ar gélido percorrer o seu corpo e arrepiar os pelos finos de sua nuca. A temperatura não estava tão baixa para ter uma sensação como essa. Tentou prestar atenção nos olhos da garota, mas eles continuavam castanhos, como de costume.

— Sente-se. — disse Fanny, repousando a latinha em cima da mesa. — Fale-me um pouco de Tommy. Ouvi dizer que ele está saindo com aquela menina que tem uma tatuagem maluca no braço.

Helena sentiu a raiva percorrendo o seu corpo. Olhou para o brilho do granito e imaginou que aquilo fosse o rosto de Tommy. Suas mãos coçaram para lhe atingir com um soco.

— Como você sabe dessas coisas? — perguntou Helena, ainda de pé.

— As notícias espalham-se como vendaval em um internato fechado. Você sabe, as pessoas têm que conviver sempre com os mesmos rostos e, às vezes, uma fofoca é inevitável. Você não tem noção de como essa história está se espalhando como se fosse água corrente. A menina da tatuagem — Kelsey? — tem uma popularidade imensa aqui dentro, mesmo estando entre nós a menos de uma semana.

Helena sabia que ela era conhecida pelos piores motivos. A menina que fumava cigarros, a menina que bebia até entrar em coma alcoólico, a menina cheia de tatuagens e piercings, a menina que só andava com garotos valentões e musculosos, a menina que roubou o seu namorado.

Namorado. A palavra pareceu corroer o seu cérebro. Nunca tinha feito sentido. Nunca fora real o suficiente para que Helena carregasse lembranças agradáveis. Agora, tudo o que podia se lembrar do seu breve namoro, foram todas as vezes em que ela foi amarga e cruel com Tommy, exatamente do mesmo jeito que Kelsey devia ser com qualquer namorado que já tivesse tido alguma vez em sua vida infeliz. O pensamento de que elas eram bastante parecidas lhe atingiu como uma seta pontuda.

— Você pode, por favor, nunca mais falar dessa vaca desgraçada? — pediu Helena, irritada demais para sequer olhar para Fanny — Acho que vou para o meu quarto. — declarou, com uma leve dor começando a se manifestar atrás de seus olhos cansados — Não estou me sentindo bem.

Helena virou o corpo, sem se preocupar em ver a expressão no rosto de Fanny. Deu o primeiro passo, mas logo parou quando ouviu a voz da garota. Estava diferente, mais persuasiva do que o normal.

— O ciúme é mortal, eu sei disso.

Helena virou a cabeça para trás e captou o olhar de Fanny. Estava começando novamente. Mesmo a uma distância considerável, ela conseguia ver que as pupilas da garota estavam bastante dilatadas. As íris estavam tão negras quanto a noite estrelada do lado de fora. O estômago de Helena começou a revirar.

— Não é ciúme. — ela disse, tentando manter o tom de voz calmo e neutro — É apenas ódio.

Fanny piscou repetidas vezes e os olhos cintilaram, ora castanhos, ora negros.

— Ódio e amor andam lado a lado.

Helena não sabia mais o que fazer. Estava começando a ficar com medo. Não conseguia parar de olhar para os olhos de Fanny. Agora, eles estavam escurecendo ainda mais, a parte branca desaparecendo e transformando-se em uma completa piscina enegrecida. A garota ruiva abafou um grito.

— Por que seus olhos estão mudando de cor? Está me assustando.

Fanny enrijeceu as sobrancelhas e fechou os olhos por alguns segundos. Quando os abriu, eles eram novamente castanhos. Percebeu que a testa dela estava oleosa e que gotículas de suor poderiam começar a se formar a qualquer momento.

— Deve ser impressão sua. Às vezes, quando fico exposta muito tempo à luz artificial, ela tem efeito sobre a cor dos meus olhos.

— Mas eu nunca ouvi falar sobre isso... — argumentou Helena, mas Fanny a descartou com um gesto de mão.

Um silêncio estranho se formou nos segundos que seguiram. Helena estava com o coração acelerado e desejava estar em qualquer outro lugar que não fosse ali, até mesmo na festa chata, comendo marshmallows moles e ouvindo histórias toscas de terror em volta de uma fogueira. Se não fosse tão cretina, ela podia estar com Tommy agora, segurando em sua mão pálida, acariciando cada parte do seu corpo esguio, afagando os cabelos negros e lisos, beijando-lhe a boca macia e rígida. Mas quem estava fazendo isso era Kelsey.

Maldita!

Percebendo que estava divagando demais, Helena soltou um pigarro e transportou o olhar para Fanny, que ainda estava sentada na cadeira. Percebeu que ela estava mexendo na gola do vestido. Enfiou a mão sob o tecido e retirou algo de dentro do sutiã. Helena não conseguiu enxergar o que era, então deu alguns passos a frente para se aproximar da garota.

Fanny olhou para Helena completamente animada e deu um sorrisinho quando exibiu um isqueiro vermelho. Na outra mão, Helena percebeu, ela segurava algo que parecia um cigarro, mas o objeto não tinha filtro. Era apenas um papel bem fino enrolado de modo a formar um bastão. Olhando com cautela, ela percebeu que havia alguma substância ali dentro, algo como uma erva seca.

— Aqui está a receita para você acalmar seus nervos. — disse Fanny, levando o rolo de papel na boca e acendendo-o com o isqueiro. Fumaça levemente acinzentada escapou da ponta do bastão e Helena sentiu o cheiro forte da droga corroendo suas narinas sensíveis.

— Você está ficando maluca? Onde conseguiu essa porcaria? — ela perguntou, nervosa, já tossindo por causa da fumaça — Caramba, eu odeio esse cheiro!

Fanny apenas ria enquanto tragava a fumaça tóxica.

— Há tantos meios de conseguir coisas desse tipo. Tenho vários contatos lá fora que me vendem essa maravilha periodicamente. E eles nem pedem tão caro. Nada que um relógio, um colar brilhante ou até mesmo um anel não possam comprar.

Helena estava indignada. Lembrou-se de Fanny mexendo discretamente no armário no dia em que se mudou para o dormitório e de como os seus olhos estavam vermelhos. Devia ter sido muito burra em não ter percebido de imediato que Fanny era usuária de maconha.

— Então quer dizer que você costuma roubar as coisas dos alunos?

— Quem disse em roubar, tolinha? — disse Fanny, a voz soando quase ameaçadora. — Vamos, agora é a sua vez. — ela estendeu a mão e ofereceu o cigarro de maconha para Helena — Dê um trago.

Helena deu um passo para trás.

Não.

— Ora, vamos! Essa belezinha aqui é maconha cultivada através de sistema hidropônico. O pessoal costuma chamar de skunk e possui um índice tão alto de THC que, além de relaxar os ânimos, também faz com que você entre em um mundo que não existe no nosso consciente.

Helena olhou para a pobre garota que estava bem na sua frente. Fanny tinha um rosto tão lindo, tão delicado, quase angelical. Não tinha a aparência de alguém que estaria propícia ao consumo de drogas, ainda mais em um lugar como Shavely. Um internato para adolescentes problemáticos. É óbvio que muitas pessoas que estudavam naquele colégio já tiveram a companhia das drogas, mas mais óbvio ainda é que estavam ali para tentarem melhorar, se livrarem dessas coisas que só são responsáveis por destruir vidas.

— Pare com isso, Fanny. Minha vida já é estragada o suficiente. Não preciso de mais coisas que só irão fazê-la piorar.

— Não seja ridícula. — repreendeu Fanny — Um mínimo trago não vai piorar a sua vida. Pelo contrário. Pense em Tommy. Ele provavelmente deve estar fazendo a mesma coisa em um canto com Kelsey. Você acha mesmo que ela só fuma cigarros?

Tommy. Tommy. Tommy.

O nome nunca ia parar de ecoar em sua mente. Sentiu o ódio novamente subindo por suas veias, misturando-se com o sangue fervente. Não queria acreditar no que Fanny acabara de dizer, queria tentar convencer a si mesma de que era mentira, mas ela sabia que isso não era possível. Não havia mais nada que ela pudesse fazer. Tudo já estava perdido.

— Tudo não passa de uma grande mentira. — disse Helena — Relacionamentos são uma mentira, amizade é uma mentira, a vida é uma mentira. Tudo é uma peça da nossa própria mente.

Os olhos de Fanny eram convidativos.

— Então se livre dessas mentiras. Venha para um mundo em que vale a pena se estar.

Helena tentou desviar o olhar, tentou ignorar o pedido de Fanny, mas ela parecia hipnotizada. Os olhos de Fanny voltaram a ser uma negritude imensurável e, cansada de estar nessa vida mentirosa, Helena pegou a droga da mão de Fanny e levou-a a boca.

Ela não soube tragar da primeira vez. Sugou o papel fino e nada aconteceu, nenhum indício de fumaça. Fanny sugeriu que ela colocasse mais dentro da boca e sugasse com toda a força que pudesse encontrar. Quando o fez, a fumaça finalmente saiu e ficou presa em sua garganta, onde foi expelida em uma sucessão de tosses pigarrentas.

Bufando, Fanny pegou a maconha da mão de Helena. A brasa já tinha apagado e ela reacendeu com o isqueiro. A garota ruiva notou que Fanny tomava o maior cuidado para que o fogo não tocasse nenhuma parte de seu corpo e quando a fumaça começou a sair novamente, ela arremessou o isqueiro para longe, como se ele pudesse corroer sua pele.

— É assim. — explicou Fanny — Você coloca na boca, puxa a fumaça e suga-a como se você tivesse tomando refrigerante de canudinho. Depois, você segura a fumaça dentro do seu corpo por alguns segundos, dez é um bom número, e só então você pode soltar. — ela demonstrou todo o procedimento e soltou a fumaça na cara de Helena. Dessa vez, ela não tossiu. — Entendeu?

— Tá. — ela disse, insegura — Vou tentar.

Helena obedeceu a todas as ordens de Fanny, só talvez tenha segurado a fumaça por menos tempo do que o necessário. Mas, mesmo assim, ouviu elogios de Fanny. A garota disse para ela fazer de novo, e de novo, e de novo.

Quando Helena se deu por conta, ela tinha fumado quase o rolo de papel inteiro. De imediato, nada aconteceu. Ela apenas sentiu o corpo um pouco mais quente, como se estivesse de volta ao lado da fogueira que provavelmente ainda crepitava do lado de fora.

— Obrigada. — disse Fanny, a voz sombria e um pouco mais distante do que o normal — Agora você está em minhas mãos.

Helena achou que não tinha entendido direito o que a garota disse. Ela ia abrir a boca para perguntar o que ela quis dizer com isso, quando uma forte tontura começou a invadir seu cérebro. Parecia que chamas queimavam dentro de sua cabeça e aquela sensação era desesperadora. Levou as mãos à cabeça, tentando massagear inutilmente todos os pontos que pareciam estar derretendo.

A garota começou a gritar à medida que o formigamento queimante ia descendo para outras partes do corpo. Ela ergueu os olhos e o teto da cozinha parecia ter sido arrancado e a única coisa que ela enxergava era o céu, só que ele estava com uma coloração avermelhada. Os pequenos fiapos de nuvens alaranjadas pareciam brasas queimando e transformando o paraíso no verdadeiro inferno.

Voltando os olhos para o interior do ambiente, Helena não conseguia enxergar nada com precisão. A dor de cabeça era lancinante e tudo em volta dela parecia ter mudado de cor. Viu um arco-íris colorido se estendendo da mesa de granito até o chão e pequenas gotículas de fogo escorregavam por entre as cores. Balançou a cabeça para afastar as estranhas visões, mas de nada adiantou.

Sentiu algo empurrando o próprio corpo e, de repente, ela se viu sentada. Os glúteos atingiram em cheio algo que parecia ser mais duro que um trono de pedra. Ergueu os olhos e viu dois pontos negros e profundos, como túneis sem fim, que piscaram duas vezes e logo em seguida desapareceram. Uma voz metálica sussurrou em seu ouvido.

— Está relaxada agora?

Helena não sabia o que estava acontecendo. Nem ao menos lembrava mais onde estava. A dor na cabeça estava insuportável e as visões malucas não paravam jamais. Olhou para frente e viu algo aparentemente humanoide se aproximando. Sua vista estava embaçada e ela não conseguia enxergar com precisão. Um cheiro forte de carnificina invadiu suas narinas, que arderam. O estômago instantaneamente revirou e sentiu a bílis amarela escorrendo pelo canto da boca.

A criatura materializou-se em seu campo de visão e era bizarra. Tinha a pele acinzentada, coberta em alguns pontos por farrapos podres. Os olhos não eram de outra cor que não fosse preta, dentes pontiagudos escapavam dos lábios superiores; no pescoço, havia várias marcas negras de esfaqueamento e um líquido preto escorria pela boca. As unhas das mãos e dos pés eram garras amarelas e pontiagudas e os cotovelos eram mais ossudos que o normal.

A mente de Helena deu um estalo, mesmo em um estado irreconhecível de consciência. Ela já tinha visto aquilo antes. Lembrou-se da sala da diretoria, dos galões de querosene, do golpe que havia recebido no peito, de ser arrastada por Sophia até o lado de fora, sem poder ver o show final, sem poder ver as chamas consumindo por completo o corpo daquela criatura abominável.

— Zumbi...

A gargalhada corroeu seus ouvidos. Sentada, frágil e indefesa, Helena sabia que estava perdida. Lembrou-se do bilhete que havia encontrado no quarto. Quatro menos um é igual a três. Agora ela entendia. Alguém ia morrer naquela noite e esse alguém era ela.

— Você demorou demais para perceber. — disse a voz metálica — Menos um pontinho para você.

Com a cabeça pegando fogo e com as cores dos objetos fora de seu estado normal, Helena concentrou-se em formar uma imagem nítida do ambiente. Ela forçou os olhos e enxergou a cozinha, as geladeiras ao fundo, a lata de coca-cola vazia que Fanny havia deixado em cima da mesa...

— Fanny... — ela sussurrou — Onde ela está?

Um riso maléfico deixou todo o ar impregnado com a podridão.

— Fanny, a verdadeira Fanny, está morta a mais tempo do que você pode imaginar. Foi tão fácil matá-la. Uma menina tão frágil e delicada. Você tinha que ver o olhar de horror no rosto dela quando sentiu meus dentes pontiagudos em seu peito. O banquete foi delicioso, como sempre, mas não foi tão delicioso do que ver a sua cara de idiota. Veja, até pouco tempo, era Fanny quem estava aqui. E agora? Quem sou eu?

O desespero era tanto que Helena não conseguia nem levantar da cadeira em que estava sentada. Estava com raiva, com dor, vendo coisas que não existiam, sentindo ódio de todo mundo que estava ao seu redor. Estava prestes a explodir, mas ela concentrou-se naquela criatura que estava se exibindo diante de seus olhos. Ela sabia como eles eram. Exibicionistas natos.

— Fanny... Você... Você é um zumbi antropomórfico.

Não sabia se era possível, mas ela viu um sorriso se formar atrás dos dentes pontiagudos. O cérebro estava borbulhando e, àquela altura, Helena não sabia mais o que fazia parte do real e o que fazia parte de sua imaginação. Ela rezou para que tudo aquilo não passasse de uma peça de sua mente.

— Sheeva, ao seu dispor. — disse o zumbi, fazendo o que pareceu uma leve reverência. — Sempre soube que humanos eram fracos, mas nunca pensei que sua espécie pudesse chegar a um estado tão deplorável de fragilidade.

Helena pensou em quão fraca estava parecendo e em como aquilo não combinava com a sua verdadeira essência. Deveria estar combatendo o zumbi, lutando com unhas e dentes para que o monstro que aterrorizou ela e seus amigos pudesse sucumbir do mesmo modo que Kofuf, mas ela estava debilitada. Estava frágil com o término do relacionamento com Tommy, estava com ódio de Kelsey e do mundo, estava com fumaça entorpecedora correndo pelas suas veias, infectando cada parte de seu corpo e deixando-a suscetível a alucinações. Porém, tudo aquilo era real.

— Pensei que depois de Kofuf... — Helena fazia força para falar. Estava arfando. — Pensei que jamais voltaria a ter o desprazer de presenciar algo tão nojento.

Sheeva deu uma risada metálica e profundamente áspera.

— Kofuf era um lunático. Não sei onde o mestre estava com a cabeça quando cogitou a ideia de que ele podia ser apto a uma missão dessa magnitude. — Ela fez uma pausa que durou alguns segundos, que a zumbi utilizou para observar Helena como se fosse uma cobra venenosa pronta para atacar um rato que passeava tranquilamente, completamente alheio ao perigo que o rondava — Mas não estou aqui para falar de Kofuf. Ele já está morto, que o Diabo o tenha. Vamos falar de mim e você.

Helena forçou a mente a se lembrar de tudo o que aprendera no passado no que dizia respeito a zumbis antropomórficos. Eles podiam se curar em questão de segundos quando sofriam um machucado, podiam regenerar partes perdidas do corpo, podiam resistir a temperaturas extremas, mas sucumbiam ao simples contato com uma substância poderosa: fogo. Olhou para o chão, a alguns metros de distância, e viu o isqueiro vermelho de Fanny abandonado no canto da cozinha. Se tivesse forças para alcançá-lo, poderia usá-lo como uma arma. Tinha que se defender. Não combinava consigo mesma ser tão vulnerável.

Com isso em mente, ela forçou o corpo a se levantar. A tentativa fez os músculos de suas pernas arderem como se estivesse andando em brasas. O pé direito deu um passo, mas quando o fez, o chão se transformou em um rio ardente de lava vulcânica. Ela gritou e recuou. Piscou os olhos algumas vezes para afastar aquilo que ela sabia ser uma alucinação, mas isso a fez perder tempo. Sentiu algo batendo em suas costas e foi lançada ao chão.

A fração de segundos que teve para tentar entender o que aconteceu não foi suficiente. As unhas podres de Sheeva já estavam arranhando seu rosto e ela sentiu o sangue espesso escorrendo. Uma gota caiu sobre os seus lábios e sentiu o gosto do próprio medo.

— Aonde pensa que vai? — mais uma risada metálica fez seus ouvidos arderem. Sentiu que uma lágrima estava escorrendo dos olhos. — Não está lidando com Kofuf, ruivinha. Sou muito mais poderosa. Você apenas ainda não está morta porque eu quero me divertir um pouco. O mestre não disse nada sobre eu não poder brincar com as minhas vítimas antes do fim mórbido e trágico.

Helena queria gritar por socorro, mas não ia perder as poucas forças que tinha em algo que ela sabia que seria inútil. As pessoas que poderiam ajudá-la estavam na festa, dançando ao som alto da música, nem sequer imaginando a terrível ameaça que estava novamente dominando aquele colégio. Não conseguia parar de pensar se Shavely tinha um magnetismo destinado a atrair criaturas sobrenaturais.

— Solte-me! — Helena gritou — Já derrotamos um de vocês uma vez! Agora não será diferente...

Mais um arranhão percorreu o seu rosto e ela gritou de dor. Pôde ouvir o barulho da pele se rasgando. Sheeva já estava com o corpo cinzento sobre o de Helena. A garota estava praticamente sendo esmagada com aquele zumbi pesado apertando seu peito e ferindo seu rosto.

— Não percebe que todo esforço é em vão?

Helena estava com uma das mãos livres. Tentou esticá-la para pegar o isqueiro, mas o objeto estava longe demais. Ela suspirou, frustrada, quando percebeu que nunca conseguiria alcançá-lo.

— Por quê? — Helena sussurrou. — Eu só queria entender o motivo de tudo isso.

Sheeva riu.

— Princípios sobrenaturais que você não tem necessidade de compreender. Precisamos aumentar nossa raça, expandir nossos ambientes. Os seres-humanos são tão egoístas ao acharem que podem ser a única raça racional a habitar a superfície desse planeta tão rico.

— Os egoístas desta história são vocês! — bradou Helena — Não entendem que jamais conseguirão aniquilar os seres-humanos. Até hoje vocês dividiram esse planeta conosco, mas nós jamais soubemos da existência de vocês. Pode existir a pacificidade se vocês não nos incomodarem. Também não incomodaremos vocês...

Helena não terminou de falar porque outro arranhão rasgou sua pele, desta vez a do peito. A camiseta ficou rapidamente ensopada com o sangue e Helena grunhiu de dor. Tentou novamente se mexer, mas estava imobilizada, sem força alguma para se livrar das garras de Sheeva.

— Você não entende! Acha mesmo que o ser-humano aceitaria dividir o planeta com algo que eles julgam nojento e fétido? Não podemos nos dar ao luxo de nos extinguirmos. Não há tantos zumbis como antes. Os seres-humanos estão queimando florestas como se não houvesse amanhã e não podemos desaparecer. Não vou deixar isso acontecer.

Entoando as últimas palavras com raiva profunda, Sheeva começou o ataque para valer. Apertou o pescoço de Helena com as mãos até que as unhas começassem a perfurar a pele fina. Acabou elevando um pouco o corpo sujo, quando mostrou os dentes afiados e tentou fincá-los no peito de Helena, o que acabou dando uma brecha para que a garota ruiva pudesse esticar a perna e dar um chute nas costas de Sheeva com a borda do tênis. A zumbi urrou e Helena chutou novamente, fazendo com que Sheeva afrouxasse o aperto que prendia o corpo da ruiva ao chão. Livre, Helena empurrou a zumbi e deu um chute no estômago no momento em que ela deitou no chão de barriga para cima.

Rapidamente, ela correu para pegar o isqueiro, mas Sheeva era esperta. Segurou o tornozelo de Helena com a mão ossuda, o que fez com que a ruiva caísse de cara no chão. Estava mais perto do objeto vermelho e conseguiria alcançá-lo se erguesse a mão por mais alguns centímetros.

Com o pé que estava livre, deu chutes às cegas na tentativa de acertar Sheeva. Sem sucesso, a zumbi enfiou as unhas da mão que seguravam o tornozelo de Helena em sua pele, escorrendo sangue quase que sem controle. Tentando não se concentrar na dor, a garota ruiva esticava mais e mais o próprio braço, como se ele fosse feito de elástico. Faltavam só mais alguns milímetros...

Ela não soube explicar os acontecimentos seguintes. O aperto no tornozelo tinha cessado e, quando ela virou a cabeça para ver o que tinha acontecido, viu um raio luminoso indo na direção de Sheeva. Pôde ouvir também um barulho como se fosse um grito de guerra, seguido por um urro desesperado de dor.

A mão de Sheeva estava pegando fogo.

Desesperada, a zumbi rapidamente levantou do chão e correu em direção a pia da cozinha. Helena pôde notar que os olhos dela não estavam mais negros e profundos, e sim vermelhos e flamejantes, como se aquilo fosse o presságio da morte. Como se o próprio corpo desse um sinal de que ela estava morrendo. Um traço de cinzas manchava o trajeto que Sheeva percorria. Helena acompanhou com os olhos e viu que a mão ardente da zumbi estava sob uma corrente de água fria que saía da torneira da pia. O fio transparente tornava-se cinzento à medida que ia lavando a pele de Sheeva, que estava se desfazendo.

Quando ela saiu de perto da pia, não havia mais nada no lugar da mão queimada. Apenas o toco de um braço decepado. Sangue negro estava escorrendo do ferimento. Helena imaginou que não havia regeneração para um zumbi ferido com fogo.

— Maldita! — Sheeva estava gritando — Eu vou matar você, sua caçadorazinha!

Helena franziu o cenho quando percebeu que Sheeva não estava falando com ela.

Quando olhou para o outro lado, na porta da cozinha, viu que tinha uma menina parada ali. Reconheceu-a imediatamente. Era a menina da qual Sophia sempre reclamava, a menina de pele escura com a qual Logan havia passado um dia inteiro dentro de um quarto, “estudando”.

— Mel? — A voz de Helena era um sussurro.

Caçadorazinha? A pergunta ficou apenas em sua mente.

— Vai me matar com o que? — Mel desdenhou — Apenas um pedaço de pano flamejante foi capaz de arrancar sua mão. — Helena olhou para o chão, para o lugar onde antes estava deitada, e viu um pedaço grosso de pau. Na ponta, estavam amarrados os restos incendiados do que parecia ser uma camiseta velha. Uma tocha improvisada — Você teve sorte por eu não estar equipada com o meu lança-chamas.

Incrivelmente, Sheeva não disse nada. Ela apenas rosnou como se fosse um cachorro raivoso.

— Você já ficou à mercê de zumbis antropomórficos. — ela disse — Sentiu na pele do que somos capazes e agora acha que pode ficar nos caçando por aí. Fique esperta, você pode ter o mesmo fim das pessoas às quais você já amou um dia.

Mel não disse nada, apenas sustentou o olhar sanguinário de Sheeva com fúria. A zumbi deu alguns passos pela cozinha e parou ao lado de Helena. Apontou a mão decepada para o rosto dela.

— Cuido de você outro dia. Apenas lembre-se de que tudo isso foi apenas uma alucinação. Nada é real.

Alucinação.

Lembrou-se da fumaça percorrendo seu corpo, das visões estranhas que tivera. Ainda podia sentir o efeito de tudo aquilo enfraquecendo o próprio corpo. Nada estava fazendo sentido. Lutou com um zumbi antropomórfico que na verdade era Fanny, foi salva por Mel, uma garota com a qual nunca teve contato nenhum, tinha visto chamas caírem do céu, escorregarem por um arco-íris e se transformarem em um chão de lava. Estava fraca, cansada e desolada.

Queria que Tommy estivesse ali, salvando-a. Ela se sentiria muito mais forte e com muito mais coragem brotando de seu peito. Não estava se sentindo confiante com o presságio do mal começando a brotar de todas as partes daquele internato. Não conseguiria lidar com mais um zumbi, mais ataques, mais mortes, mais destruição. Tudo isso por orgulho e prepotência de uma raça egoísta. Sentiu um nó no estômago e a ânsia fez com que ela fechasse os olhos. Não estava enxergando mais nada. Não sabia se Sheeva ou Mel ainda estavam ali. Não sabia se estavam discutindo ou duelando. Não se importava. Queria ficar dentro de seu próprio mundo, só para variar.

Tommy. Ah, Tommy. Tudo seria tão diferente se ele estivesse por perto. Queria tanto poder voltar ao passado. Queria poder ter feito tudo diferente. Queria ter tido coragem suficiente de olhar no fundo dos olhos dele e dizer que também o amava, que queria construir uma vida ao lado dele, que queria beijá-lo com força, tocá-lo com ternura, amá-lo como se ele fizesse parte de seu próprio corpo. Mas ela era uma fraca. Uma covarde. Ela merecia os arranhões em seu rosto, merecia ver coisas que não existiam, merecia a loucura.

Eu nunca soube o que eu tive, agora sei o que perdi.

Ela sucumbiu com esse pensamento. O joelho afrouxou e ela caiu no colo de alguém. A última coisa que ouviu foi uma voz sussurrando que ia tirá-la dali e que tudo ficaria bem. E então, veio a escuridão.


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