A Vida Secreta Dos Imeros escrita por Kalyla Morat


Capítulo 21
Muito mais interessante




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A dor é inevitável, o sofrimento opcional”, eu me lembrava de ter lido isso em algum dos livros proibidos da Fortaleza, não que eles fossem realmente proibidos, na verdade eles só não eram bem vistos pela maioria das pessoas que diziam ser “literatura inútil e infundada”. Embora eu não concordasse, não conseguia lembrar exatamente de quem fora essa citação, talvez eu não tivesse dado atenção suficiente a ele. Mas eu me perdoava, porque não importa quem tenha dito o quê, mas o quê ele tenha dito. E eu concordava plenamente com suas palavras.

Não foi fácil saber que Victor era apaixonado por minha irmã, da mesma forma que não foi fácil descobrir que mentiram pra mim a vida toda. Doía, é verdade, mas ficar lamentando por isso todos os dias, só ia prolongar o sofrimento e eu não poderia fazer nada a respeito que mudassem os fatos. Então, naquela manhã eu decidi começar a investigar.

Fazia três dias que eu estava morando com minha mãe na casa principal. Laura não estava lá muito contente com isso, mas eu não dava a mínima para o que ela pensava, já estava na hora de eu começar a conhecer um pouco mais Cássia e tentar entender todos os motivos que me levaram a estar hoje onde eu estava. Tentei perguntar diretamente, mas ela me respondeu que não era o momento certo, não porque eu não pudesse entender, mas porque ela ainda não era capaz de me explicar. Ela tinha que decidir o jeito mais fácil de me contar tudo, de um jeito que não desse um nó em minha cabeça, então eu apenas resolvi dar um tempo a ela.

Note, só porque eu ia dar um tempo a Cássia, não significava que eu fosse ficar esperando sua boa vontade pra me contar. Foi por isso que eu entrei em seu escritório assim que reparei que estava sozinha em casa. A porta estava trancada, nada que eu não pudesse dar conta. Usei uma das tralhas que estavam em minha mochila para abri-la e fechei novamente quando eu já estava lá dentro.

Eu não sabia exatamente pelo que eu procurava. Talvez eu encontrasse algum documento, alguma pista que me levasse mais perto da verdade. Se eu tivesse sorte, Cássia podia ser uma daquelas mulheres que mantinham diários e que registravam todas suas coisas nele. Se bem que ela não parecia ser esse tipo de mulher. Procurei sobre a mesa do escritório, sobre as prateleiras, alguma coisa, qualquer coisa que fosse útil. Não havia nada. Absolutamente nada. Nenhum registro, nenhum diário, nem arquivos de administração da cidade.

Pensei em como essa ausência de documentos era estranha. Como uma administradora não mantinha nenhum registro sobre sua cidade? Na Fortaleza, meu pai, guardava tudo: pastas e mais pastas, relatórios e mais relatórios, toda a historia da Fortaleza estava registrada. A história da Aldeia, por outro lado, parecia nem existir. Eu estava pronta pra sair quando ouvi vozes se aproximando.

 Se me pegassem ali, trancada pelo lado de dentro, eu teria uma boa história pra inventar. Não acho que minha mãe ficaria contente se me pegasse bisbilhotando em seu escritório. Meu reflexo inicial foi sair dali correndo, mas como eles pareciam perto, prontos para abrir a porta a qualquer momento, a solução era me esconder por ali mesmo. Escutei o barulho de uma chave movendo-se na fechadura e meu coração acelerou um átimo. Por intuição, me escondi atrás de uma cadeira grande parecida com um trono. Menos de um minuto depois, eles entraram e eu torci para que não eu não fosse vista por ali.

- Até quando você vai continuar com isso Cássia?

- De novo essa história Chang? Você sabe minha opinião, eu não vou mudar de ideia, desista.

- Mas Cássia, você não vê que isso vai acabar nos destruindo?

- Nós temos que arriscar Chang, você não percebe? Não é justo que sejamos tão marginalizados, está na hora do povo mavriano reconhecer nossa presença como parte de sua sociedade. Não podemos ser escravos invisíveis pelo resto da vida.

- Eu não estou dizendo que não concordo com o que você quer Cássia. Eu também acho que nós devemos ser reconhecidos. Mas eu não concordo com a forma que você está fazendo isso.

- Chang, você se mostra tão piedoso, mas olha o que eles fazem conosco! Eles tiram nossas crianças e levam para seus laboratórios, acham que somos aberrações só porque temos telecinésia e se acham no dever de nos curar. Nós não temos uma doença, nós só somos evoluídos.

- Eles estão cometendo um erro, mas isso não significa que temos que fazer o mesmo. O que você está querendo fazer é errado. Como uma administradora, você deveria estar preocupada com o bem estar do seu povo... Você não vê como isso é arriscado?

- Alguns sacrifícios têm de ser realizados para um benefício maior no futuro.

- Isso não está certo, eu vou convocar o Conselho Cássia.

- Faça isso e eu terei que tomar providências.

- Você está me ameaçando Cássia?

Minha mãe estava ameaçando Chang? Por quê? Eu não ia ficar quieta vendo isso acontecer. Levantei pronta pra defendê-lo só que assim que ele me viu, fez sinal, de um modo que só eu pudesse entender, para que eu voltasse pra onde estava. Eu obedeci, e pelo jeito, apenas Chang me viu. Ele não disse nada nem revelou minha presença para Cássia.

- Não fique em meu caminho Chang. Eu não vou voltar atrás. Você pode fazer parte do conselho e ser contra isso, mas eu vou convencê-los de que você está errado. E não, isso não é uma ameaça Chang. Só estou defendendo meu ponto de vista. Você sabe que você é o mais próximo que me restou de uma família.

- Não Cássia, não diga isso, você tem Laura e Luiza, não se esqueça disso.

- Mas elas nem são...

- Chega criança! – interrompeu Chang – elas são sua família, jamais esqueça isso.

- Ah Chang, eu não queria que as coisas chegassem a esse ponto, mas eu não tenho escolha.

- Você tem escolha sim Cássia, você só está fazendo a escolha errada.

- Não. Você não entende, eles já me tiraram muito, eu não posso permitir.

- Eu sei criança, eu sei. Vamos dar uma volta ok? Vai te fazer bem.

Esperei que eles saíssem e saí logo em seguida. Eu não tinha encontrado o que eu queria, mas tinha visto algo mais interessante. Cássia estava tramando algo contra o mundo mavriano. Ela falara em sacrifícios e sobre não ter escolha. O que exatamente ela estava aprontando? Minha intuição me dizia que existia algo de muito errado ai. E por que Chang não me dedurou a Cássia? Agora eu tinha um rumo para minhas investigações.

Andei pelo corredor e parei em frente ao espelho me assustando com a imagem refletida. Minha aparência tinha mudado consideravelmente nessas poucas semanas. Meus cabelos pareciam mais rebeldes e minha pele estava de um tom mais escuro. Eu não usava mais meus óculos de sol porque já tinha me adaptado à claridade, mas mesmo assim, minhas roupas não se pareciam em nada com as que eu estava acostumada a usar. Eram abertas demais, leves demais. Aquele reflexo parecia ser de uma pessoa totalmente estranha pra mim.

Ao meu lado, vi surgir um reflexo idêntico ao meu. Laura parou ao meu lado e analisou nossas imagens refletidas. Algo nela tinha mudado também, mas eu não sabia exatamente o quê. Era assustadora nossa semelhança. Claro que eu já sabia que erámos idênticas, mas pela primeira vez eu pude comparar lado a lado. Os olhos, a boca, não é atoa que Victor tinha ficado confuso. Eu não podia culpa-lo por isso. Foi então que eu reparei:

- Você cortou o cabelo? – perguntei a Laura.

- Sim. O que você acha? – olhando seu reflexo, pude ver um sorriso se formar em seu rosto.

- Está idêntico ao meu. – Notei incrédula, sem entender o que estava acontecendo.

- Suponho que você gostou então – seu sorriso aumentou um pouco.

- Por que Laura? Por que igual ao meu? – Tentei entender. Eu podia ver a expressão de choque em meu rosto e a de divertimento no dela.

- Porque eu quero ser como você – seu sorriso mudou agora, um sorriso muito mais sarcástico.

- Por que alguém ia querer ser como eu, Laura?

- Eu posso pensar em muitos motivos.

- Eu não vejo nenhum.

Laura se posicionou atrás de mim me abraçando pelas costas. Fiquei muito surpresa pra me afastar quando ela começou a me analisar. Ela passou delicadamente o dedo em meu rosto, enquanto falava em meu ouvido.

- Olha como você é linda, Luiza. Sua pele é reluzente, seu nariz tem o ângulo exato e sua boca é perfeita. Seu cabelo, acostumado com a escuridão, é bem menos maltratado pelo sol que o meu. Não sei como você não vê isso. Qualquer um gostaria de ser como você.

- Laura, nós somos idênticas – eu disse sem acreditar no que ela estava falando.

- Mas você tem uma coisa que eu não tenho – o sorriso em seu rosto desapareceu, substituído por um olhar de dor – Amor.

- Laura, você não sabe o que está dizendo.

- Todos sempre esperaram pelo dia que você fosse voltar. Você é a esperança de cada rosto nessa aldeia, e eles nem te conhecem. Ninguém me suporta aqui, Luiza.

- Você está errada, você tem um namorado que eu sei e tem Victor, ele é apaixonado por você. E mamãe, aposto que tem muito mais por ai.

- Victor – ela suspirou – ou você não sabe nada sobre isso ou você talvez seja cega. Luiza, você não entende o que é crescer a margem de alguém que você nem sabe ao certo que existe. Eu sempre fui a irmã da menina que foi roubada. Todos sempre olhavam pra mim e se perguntavam como você era.

- Laura escute, nós não somos iguais. Nós temos personalidades totalmente diferentes.

- Sim, você é muito mais adorável.

- Por isso você me odeia tanto? Por ciúmes?

- Eu não tenho ciúmes de você. Eu só queria que as pessoas me vissem como eu sou, por mim mesmo, e não em comparação a você.

- Eu acho que eu posso entender. Desde que eu cheguei, estão sempre me comparando a você também. E eu acho um saco.

- E foi assim comigo, a minha vida inteira.

- Acho que você nunca deu oportunidade para as pessoas se aproximarem de você, Laura. Ninguém te conhece realmente. A forma como você agiu com a Sofia, aquele dia na casa dela, foi detestável. Se você fosse mais agradável com as pessoas elas se aproximariam mais e...

- Pare! – ela gritou de repente se afastando e me libertando de seu abraço – você não pode chegar aqui e me dizer o que eu devo ou não fazer. Não pense que somos amigas, Luiza.

Virei-me pra ficar frente a frente com ela.

- Mas Laura, eu pensei que a gente estava começando a se entender, achei que pudéssemos nos conhecer melhor e quem sabe...

- Pensou errado. Eu não quero conhecer você, Luiza. Fique longe de mim, é o melhor que você pode fazer.

Ela correu para o seu quarto que era bem no final do corredor e bateu a porta atrás de si. Eu fiquei parada ali, olhando pra porta fechada, enquanto processava tudo o que ela tinha acabado de me dizer. Eu detestava a forma como ela tratava as pessoas e o jeito esnobe dela de ser, mas eu me solidarizei com suas palavras. Se eu estivesse certa, a forma como Laura agia com os outros era nada mais que uma forma de defesa. Nesse momento ela abriu a porta e me encontrou encarando-a.

- Isso é para o seu bem, Luiza. Fique longe de mim antes que eu possa machucar você também.

Tendo dito isso, ela fechou a porta novamente, me deixando de fora sem entender absolutamente nada. 


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