O Utópico das Borboletas escrita por Sebastian


Capítulo 4
Anjos Que Não Falam


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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IV

Anjos Que Não Falam

 

HOJE

 

Walker havia caído no sono sobre o chão gelado e duro. Apesar disso, não foi a posição desconfortável que lhe tirou de um sonho profundo, tampouco o vento frio que passa pela fresta da janela e que beija seu rosto a cada instante. Foi, no entanto, a voz tenebrosa de alguém que aparentemente não está no quarto.

— Psiu. — O garoto abriu os olhos devagar. Ansiando mesmo continuar dormindo, está tão cansado. Ao ouvir, ainda desnorteado, olha em volta do lugar de maneira preguiçosa e nada encontra. — Psiu. — A pessoa fez novamente, parecendo querer sua atenção. — Psiu. — Desta vez, levanta-se irritado, Eric segue o som e olha para baixo da cama, para o breu, então percebe que há alguém embaixo dela.

— Está querendo me assustar? — indaga, calmo.

Devagar, o ser se revela. Um homem adulto, de cabelos enrolados e bagunçados. Está usando um pijama branco simples. Possui olhos castanhos expressivamente paranoicos, e a barba por fazer.

— Te observo há horas — profere, acomodando-se na cama. — O que faz aqui, criança? — pergunta, curioso. Eric fica em silêncio, encarando-o. — Qual gato comeu sua língua? — diz, quase irritado.

— Estou me escondendo — o menino responde, desconfiado.

— Por que? — pergunta, ainda mais curioso.

— Minha mãe disse para não dar trela para estranhos. — Mediu o homem da cabeça aos pés.

— Não sou um estranho. — Ele parece ofendido, a voz sai como um sussurro até mesmo quando se irrita.

— Claro que é e ainda por cima é louco. — Eric provoca.

— Ora, mas que garotinho mal criado — resmunga com uma tranquilidade suspeita.

De repente, atrás de si, Eric ouve as passadas fortes e desesperadas no corredor: sua mãe gritava seu nome. Estavam procurando-o em todos os quartos do hospital. Sentiu as passadas se aproximarem da porta onde está encostado.

— É esta, só falta esta — diz Sara, determinada a achá-lo.

— Ah, que porcaria — a criança exclama.

Eric olha para o desconhecido à sua frente com uma expressão de ajuda, que rapidamente foi compreendida. Não quer sair dali agora e deseja ficar mais um pouco, pois precisa se assegurar de que jamais entrará naquele consultório para ser acusado de algo que não é.

— Entre embaixo da cama — o estranho cochicha.

O menino consente, vai em direção à cama e adentra o pequeno espaço escuro, que têm um forte cheiro de mofo.

— Agora é minha vez. — O homem também entra embaixo da cama, à frente dele.

O segurança que acompanhou Sara durante toda sua jornada abre a porta. A mulher observa bem o lugar, vagarosamente entra, olhando todos os cantos, como fez todas as outras vezes e o único lugar possível para se esconder é embaixo da cama.

— Psiu. — Fez o homem em um sinal de alerta.

— Eric? — diz, deixando um sorriso de esperança brotar dos lábios. — Eu não vou te repreender, querido. — Ajoelha-se, olhando para a escuridão embaixo do móvel, ao notar o rosto estranho, solta um grito sobressaltado.

— Pardon, madame — fala o homem, com um francês fajuto. — Não quis assustá-la. — Sara se levanta, confusa, enquanto ele sai de baixo da cama e logo se senta nela. — Está procurando alguém?

— Sim — responde baixinho. — Meu filho, um garotinho de oito anos, cabelo e olhos claros, roupa preta e cachecol azul, eu sei que é impossível, mas ele passou por aqui?

O homem deu uma gargalhada alta, como se Sara tivesse contado uma boa piada.

— Madame, por favor. — Contém o riso. — Seu filho atravessa portas trancadas? Nenhum quarto neste prédio fica com a porta aberta, das duas uma: ele criou asas ou tem super poderes. — Continuou zombando.

E naquele momento, Sara se sente tola, como pôde ter perdido tanto tempo, aquele homem tem razão, quase chora de vergonha e decepção.

— Tudo bem — ela balbucia. — Obrigada. — Retira-se do quarto cabisbaixa.

O homem espera por um minuto, até que eles se afastem.

— Que burra — comenta, com um risinho na ponta da língua, mas logo lembra do garoto. — Já foram, pode sair.

A criança se retira lentamente debaixo do móvel e senta-se em um espaço que fica entre a cama e o criado-mudo. Encara o homem, ainda receoso.

— Eric, este é seu nome. — O desconhecido desceu da cama e fica de frente com o menino. Ele o olha de maneira esquisita. — Não lembro mais meu nome, e Eric é um belo nome, posso me chamar assim?

O menino concorda, franzindo as sobrancelhas. Espia o sujeito de maneira desconfiada. Algo lhe diz que aquilo não irá acabar bem.

— Você deixou sua mãe muito preocupada, sabia?

— Eu sei, mas vou sair daqui a pouco. — Eric espevita a porta. — Você deve ter a chave, né? Quando eu entrei a porta estava encostada.

— Claro que sim — responde, como se fosse óbvio.

— Então por que não foge?

— Hmm. — O homem perambula procurando palavras. — Não sei. — Sorriu. — Acho que seria pego no pulo.

— E por que pegou a chave?

— A curiosidade matou o gato, sabia?

Por uma grande extensão de tempo o silêncio paira sobre o lugar, e aquele estranho homem não desvia seu olhar do garoto por nenhum segundo.

— Você é adorável — ele articula, finalmente quebrando o silêncio.

— E você é doido de pedra— profere Eric, com uma expressão séria.

— Mal criado, muito mal criado, garanto que fica melhor calado.

— Acho que minha vez já passou.

— Está cedo demais para isso — diz-lhe, ficando bem próximo do garoto e, de uma maneira estranha, começa a acariciar seu rosto pálido, mostrando um olhar perverso.

— Abra a porta — fala um tanto apreensivo.

— Está com medo?

— Você é uma piada, sabia? — Eric sorri.

— Vamos ver quem é a piada quando eu calar sua boca infantilóide. — O homem ameaça, novamente.

— E o que você vai fazer, doidinho? — o menino continua a desafiá-lo.

Mas aquele que está a sua frente persiste para que fique ali e continua a passar a mão em seu rosto. Afinal, o que quer? O que fez para estar ali? Por que parece tão impudico? Por que não têm um nome? Para Eric, a resposta de cada uma daquelas perguntas está coberta por uma névoa tenebrosa.

Assim, ele continua com seu carinho bizarro. Retira o cachecol preto do pescoço do menino e suas mãos se acomodam abaixo do maxilar dele, numa posição de estrangulamento.

— A morte é como uma injeção, a dor só é sentida no começo — sussurra o homem.

— Eu não tenho medo da morte — responde no mesmo tom de voz.

Naquele momento, Eric começa a observar o lugar minuciosamente. Em algum instante, aquelas mãos apertarão seu pescoço até que seu ar seja sucumbindo. Não está pronto de forma alguma, pois, por mais que não sinta nada por alguém ou por algo, deseja viver. Seus olhos se deparam com o vaso de flores acima dos dois e esboça em sua mente sua queda, seus estilhaços no chão e o sangue daquele sem nome.

Suas mãos ainda estão levemente apoiadas ali, ele ainda o espreita impiedoso, como se quisesse imortalizar seu rosto. Eric pensa mais um pouco, então crava sua boca nas mãos do homem e o morde com todo a sua força, até que ele berra de dor e se afasta rapidamente do garoto. Antes do homem se aproximar dele novamente, ele derruba o vaso, que se fragmenta, espalhando água. Ágil, o menino pega um caco de tamanho médio e esconde entre os dedos.

O estranho olha para o chão e apanha um caco de vidro ainda maior. Ele caminha devagar até a criança. Sua expressão é de raiva e o que virá a seguir poderá ser pior ainda. Eric apenas o espera de maneira bonançosa. Ele fica na sua frente e bruscamente agarra seus cabelos, forçando o garoto a olhar para seu rosto. Com a outra mão fincou a ponta de vidro em sua bochecha até que se saiu uma gota de sangue.

— Vamos ver se você conhece a dor. — Em seguida, arrasta a lasca até o começo de seu lábio. Mesmo sentindo dor, Eric continua sem expressão, segurando seu grito de aflição, tentando esquecer aquele líquido que jorra como uma cascata.

E, daquela forma, aproxima o corpo do garoto ao seu e posiciona o estilhaço em seu pescoço. Encara o fundo de seus olhos e diz:

— Diga, criança adorável, eu quero saber... — exige, olhando-o doentio. — Qual a sua última palavra?

— Diga você! — retrucou Eric, enterrando o pedaço de vidro em seu peito.

Antes de cair em agonia, o homem começou a abater sua fúria em cima da criança, perfurando-o até seu coração parar de bater.

Os dois estão caídos no chão. O cadáver à esquerda, com seu corpo envolto em uma poça de sangue com os olhos estáticos. E Eric estava à direita, com quatro perfurações; uma se situa no rosto e as outras três em seu abdômen.

Seus pensamentos estão encharcados pela frustração de estar ali. Ainda culpa a maldita Annabel, a maldita Eileen, a maldita Sara... Culpa a todos que o colocaram de alguma forma nesta maldita situação.

Ele precisa se levantar e encontrar aquela chave ou será o seu fim.

— Mamãe, não quero morrer — balbucia com dificuldade, sua visão começa a ficar turva, só deseja fechar os olhos e dormir.

 

Sua respiração se torna cada vez mais baixa, sente o sangue descer pelo seu abdômen e encontrar suas pernas, logo uma pequena poça se forma atrás de si. Sente uma dor aguda, seguida de uma leve ardência onde foi cortado, sendo que, em um desses locais, o estranho deixou cravado o caco. Ele está nulo a qualquer movimento, a qualquer esforço por tamanha dor. Compreende que, além de tudo, terá que encontrar a chave de sua liberdade. Como teria forças para fazer isso se mal consegue respirar? Continua a contemplar o teto que está cada vez mais escuro como um céu sem estrelas, não conformado, mas quase morto, apenas esperando o abraço da morte.

 

O enfermeiro anda em passadas descontraídas até o quarto vinte e três, segurando o carrinho de remédios. Para em frente à porta e, ao abrir, fica horrorizado com a cena à sua frente, os dois corpos caídos no chão e o cheiro terrível de sangue que fez questão de rapidamente se impregnar no lugar. Ele vai em direção aos dois, agachou-se perto do homem e verifica sua pulsação, notando que já está morto. Vai para perto da criança  e fez o mesmo, porém vê que, de forma lenta, ainda palpita.

— Ei, garotinho, me dê um sinal — diz o enfermeiro, olhando para o garoto com a esperança de que ele não morrerá ali, nos seus braços. — Qual o seu nome? — pergunta, para mantê-lo consciente.

— Eric — responde com dificuldade, encarando aquele rosto embaçado.

— Você vai sair dessa, sei que é um cara muito forte, não? — fala o enfermeiro, enquanto estanca o sangue.

— Mamãe, não quero morrer. — A voz dele soa como um sussurro rouco.

— Ei, garotão, não vai morrer. — O homem o coloca no colo e sai porta afora para levá-lo ao terceiro andar do prédio.

Eric sente seu coração bater cada vez mais lentamente, seu tempo é como uma roupa por se desmanchar, quanto mais se puxa a linha solta, mais próximo se torna o fim. Então, pensa na tal pergunta, aquela que achou tão relevante no primeiro momento: Qual a sua última palavra? E percebe que no fim de tudo será:

— Eu quero dormir — sua voz ressoa baixinha.

— Tenta ficar acordado, amigão — fala o homem, arfando. — Cante, conte números, histórias, qualquer coisa, mas não feche os olhos, não durma.

— Um, dois, três, quatro... — O garoto começa a contar, no seu ritmo, enquanto ouve as vozes à sua volta abaixarem o volume. — Cinco, seis, sete... Oito, nove, dez, onze…

 

Sara se encontra sentada em uma daquelas cadeiras desconfortáveis, sua cabeça está encostada na parede gélida, ouve a voz da secretária ao longe. Não sairá dali enquanto Eric não aparecer, algo lhe diz que ele ainda está lá. Ela procurou em todos os possíveis lugares daquele prédio, com determinação, até mesmo aos arredores se viu chamando por seu filho, por fim, vencida pelo cansaço decidiu esperar até que ele quisesse aparecer, mesmo com seu coração se rasgando de preocupação. Além disso, pelo estresse que passou durante esse tempo, a enxaqueca lhe atacou com uma força brutal.

— Reforços! — Uma voz com certo desespero vem do corredor. — Reforços!

A secretária de Dunney sai de seu lugar e segue a voz. Ali está o enfermeiro com seu uniforme manchado de sangue e com uma criança no colo que lhe parece bem familiar. Olha para trás e lembra de Sara, a mãe do garoto que há horas o procura. Ela coloca as mãos na boca e se aproxima do enfermeiro.

— Meu Deus, o que diabos que aconteceu?! — pergunta, olhando para a criança.

— Não temos tempo para perguntas, preciso de uma equipe para levá-lo ao hospital mais próximo, emergencialmente. — Dessa forma, ambos correm para chamar reforços ao lado do enfermeiro.

Minutos depois, a secretária parte à procura de Sara, precisa dizer o que aconteceu, vislumbra-a sentada em um canto, aparentando estar em outra órbita, pois não ligou para a balbúrdia no corredor, sem pestanejar, já está atrás dela e toca seu ombro.

— Senhora Walker — diz, nervosa.

— Encontraram meu filho? — Sara deixa que um sorriso saia de seus lábios, ela a olha com tanta esperança que, no mesmo momento, a secretária se arrepende por estar ali, tendo que fazer aquele papel. Lúcia paralisa de tanto procurar palavras para amenizar a notícia, não é capaz de dizer uma palavra, apenas a observa, aflita. — O que foi? — pergunta novamente, estranhando o silêncio da mulher. — Aconteceu alguma coisa?

— Sim — responde de imediato, notando a expressão da outra mudar bruscamente.

— Não podemos perder tempo, só tenho que dizer que ele já está lá fora, na ambulância...

— Lúcia mal terminou a frase e Sara desaba como um castelo de cartas.

— Ambulância! — berra, com a voz alterada e olhos já encharcados, entrando em desespero.

— Eu não sei o que houve direito, senhora Walker, só lamento muito mesmo e tudo isso, tudo, é responsabilidade do hospital — Lúcia comunica, engolindo o choro enquanto tenta ao máximo aparentar equilíbrio. — A polícia já está chegando para averiguar o caso e tudo vai dar certo no final, seu filho vai viver. Agora vá, não há tempo, eles estão lá fora, corra!

Sara se retira acelerada, percorre a toda velocidade até a saída, a ambulância está quase se fechando quando chega arfando e gritando aos quatro cantos que é a mãe do garoto ferido. Finalmente entra e inspeciona seu filho, não consegue segurar as lágrimas e suas lamentações, deseja que tudo isso seja apenas um sonho ruim, ela segura as pequenas mãos de Eric, assim, o carro segue para o hospital mais próximo.

 

— Lúcia! — alguém grita. Olhou para trás, é o Dr. Dunney com um semblante nada agradável. Aproxima-se dele. — Ainda há pacientes aqui, não vi porquê sair em horário de trabalho.

— Dr. Dunney, há uma balbúrdia acontecendo aqui fora, precisei sair porque um acidente terrível aconteceu — ela responde tremendo por dentro.

— E o que houve, hã? — Lúcia não quer contar, não desta forma, sabe que não vai reagir bem. Ele já sofreu tantas coisas ao longo de sua vida, às vezes fica tardes inteiras escutando aquele velho homem, que passa seus dias dando equilíbrio aos outros, tentando entender a mente alheia, mas esquece de sua própria vida.

— Doutor Dunney, ainda há pacientes lá fora — Lúcia diz, em um tom de negação melancólica.

— Não vou atender mais ninguém hoje, pode dispensá-los. — Dunney entra no consultório, deixando a mulher falar sozinha.

Resta duas pessoas a serem atendidas, provavelmente impacientes pela espera.

— Peço a atenção e compreensão de todos, devido alguns incidentes, Dr. Dunney não poderá atender mais hoje, vamos adiar a consulta de vocês para semana que vem — profere, esperando receber o máximo de entendimento daqueles dois pacientes, mas logo entra no consultório.

Dunney está sentado com as mãos apoiando o queixo, vislumbrando-a com uma expressão séria.

— Vamos, comece.

— Houve um problema com um de seus pacientes, Eric Walker, aquele que Sturridge encaminhou para cá. — Ela continua parada perto da porta, olhando-o ainda melancólica.

— Sabemos que aquele garoto é um problema pelo que a senhorita Mitchell disse.

— Ele correu da sala de espera para não ser atendido e acabou sumindo aqui dentro do hospital. Michael o encontrou no quarto de Adrian.

— Adrian? — ele diz surpreendido, logo se preocupando. — Não me diga que o garoto…

— Ele estava muito ferido — ela completa. — Mas Adrian... bem, Adrian foi encontrado morto.

O médico se mantém em silêncio por um minuto, encarando-a como se aquela notícia lhe tivesse dado algum impacto. Ele sente uma mistura de alívio e dor, mas sabe que, há muito tempo, Adrian estava morto porque ele o matou. Não literalmente, mas matou sua alma o deixando mofar naquele quarto. A culpa sempre morou em seu coração despedaçado, ora, mas que pecado seu filho cometeu para ser tão fortemente julgado por todos? Por que foi diagnosticado como um doente pervertido aos olhos de todos, sem antes mesmo ter pisado na porta do consultório de seu pai? O fato é que Adrian guardava dentro de si algo sujo e insano — o que parecia normal para ele, é sem escrúpulos para todos. Adrian May Dunney, o ladrão de anjos.

16 de Maio de 1978

 

"Lá estava ele, mais uma vez. Semana passada disse para si mesmo que era o último momento em que faria aquilo, mas sem sucesso novamente. Lembrara que dizia isso mais de dez vezes por mês e nunca cumpria. Nunca prometeu, então para que fazê-lo? Já era quase madrugada e ele se encontrava no cemitério. O que fazia ali? Estava em busca de mais um. Segurava uma pá e uma lanterna de luz amarelada, sabia muito bem onde estava e o que queria. Parou em frente a uma lápide que não parecia nem um pouco desgastada pelo tempo, era a lápide de uma criança enterrada naquele mesmo dia.

Nesses dias, Adrian sempre se oferecia para tomar conta do cemitério durante a noite, para que nada e nem ninguém atrapalhasse seus planos. Começou seu trabalho de escavação, já estava tão acostumado com aquilo, tanto que rapidamente escavava e logo o caixão se mostrava quase limpo de toda aquela areia negra. Assim, também tinha toda a prática para tirar o cadáver dali de dentro.

Estava com o pequeno corpo gelado e duro em mãos. Adrian sempre pegava um corpo que havia acabado de ser enterrado, por esse motivo alguns não estavam tão decompostos. Segurava-o nos braços e andava direto para a saída do cemitério, em direção ao seu carro.

— Gosta de música? — falou, olhando para o corpo da criança. — Olha, eu sei uma que particularmente acho muito bonita. — Ele sorriu doentio. — Ela é assim: Agora você tem seu lugar no céu, ao lado das estrelas, segurado pelas mãos de Deus. Agora você tem seu lugar no céu, ao lado das estrelas, um bom amigo dos anjos, segurado pelas mãos de Deus. Você partiu em paz, meu amigo? Agora você pode dormir em paz, meu amigo? Vou cantar uma canção para você, porque tem seu lugar no céu, vou cantar uma canção para você, porque tem seu lugar no céu. Vou cantar a canção dos anjos para você, porque não posso mais tê-lo. Vou cantar a canção dos anjos a você, porque não posso mais tê-lo. Durma bem. Durma bem. Durma bem. — Franziu o cenho, transparecendo um olhar duvidoso ao pequeno. — O que foi? — perguntou como se aquele que estava no seu colo respirasse. — Não gostou da música? Sei que minha voz não é tão aveludada quanto gostaria. — Ele deu uma pequena pausa. — Minha mãe já foi enfermeira em uma guerra e ela sempre cantava essa música para acalmar aqueles pobres homens... É uma bela música, não acha?

Abriu a porta do veículo, deixando o cadáver nos bancos de trás, pondo-se logo em seu lugar e começou a dirigir, parando em frente à sua casa.

Adrian era necrófilo, sentia uma forte atração por cadáveres de crianças, não sabia explicar nem como ou por quê, só sabia que toda vez que uma criança morria, preferencialmente do sexo masculino, acabava por roubar seu corpo e abusar perversamente dele. Depois disso, o enterrava no jardim de sua casa.

As semanas foram passando e isso continuou a ocorrer, porém a polícia já estava no encalço de todos que trabalhavam no cemitério, principalmente de Adrian, que por sinal, sempre ficava de guarda nos dias que isso ocorria. Até que um dia, Frank, o dono do cemitério, colocou câmeras para saber de fato o verdadeiro culpado. Apesar de todos já desconfiarem de quem fosse, precisavam de uma prova. E foi numa terça-feira, na matina das nove horas, que a dúvida que sondava a cabeça de todos acabou.

— Adrian Mays Dunney? — perguntou o homem, mas o que um policial fazia na sua porta?

— Eu mesmo — respondeu quase certo do que estava prestes a acontecer.

— O senhor está preso em flagrante — disse-lhe, mostrando uma folha com seu mandato.

Ele foi encarcerado, mas de forma alguma abriu sua boca para dizer onde estavam os corpos. A polícia teve que fazer um grande trabalho em sua casa em busca deles para finalmente os achar em seu jardim. Havia mais de trinta corpos sepultados ali, e ainda havia mais espalhados pelos parques da pequena cidade. Todavia, mais uma vez, Adrian se recusou a dizer onde estavam. E ele foi julgado e condenado a ficar muitos anos preso em um manicômio judiciário, pois seu próprio pai havia dado um laudo à justiça afirmando que ele sofria de distúrbios mentais, para amenizar sua pena, para amenizar todo o peso emocional que caiu como uma pedra na sua cabeça e na de Melina, sua mulher. Dunney ainda convenceu a justiça que Adrian ficasse preso em seu hospital, fazendo um tratamento, mas que nunca sairia de lá antes de cumprir toda a pena. O juiz concedeu aquilo, contanto que a cada mês o hospital recebesse a visita de um policial para ver se tudo estava sob o controle da justiça.

Adrian foi colocado naquele maldito quarto de número vinte e três e Dunney ainda se lembrava de todos os gritos que seu filho deu antes entrar e ser medicado. Eram gritos que rasgavam sua garganta em um ato desesperado. Tudo o que ele queria era a piedade de todos, mas a única pessoa que sempre lhe ofereceu isso acabou morrendo de desgosto. Naquele ano o velho médico havia perdido duas coisas fundamentais para o sentido da sua existência: Adrian e Melina.

Seu filho passou anos tomando remédios e sendo dopado frequentemente, até que um dia parou de tomá-los. Dunney contou três vezes as tentativas de fuga dele e todas falharam. Ele sabia que Adrian não queria mais fazer aquele tratamento.

Então, tudo ficou sossegado novamente, ele nunca mais havia lhe dado trabalho, nunca mais havia gritado. Até o dia em que um garoto de índole pior que a dele fugiu de uma consulta com seu pai e encontrou a porta entreaberta e finalmente todo aquele sofrimento teve seu desfecho. "

 

— Ele sempre esteve morto — Dunney diz, pensativo. Lúcia fica em silêncio, encarando-o, sem saber o que dizer. — Eu não o perdi hoje, nem ontem, eu o perdi naquele ano. — Ele se levanta, indo em direção a Lúcia. — Já chamaram a polícia?

— Sim, eles já estão a caminho. — A secretária o olha com piedade, dando-lhe um abraço, ela sabe que aquilo não resolverá a metade daqueles problemas, porém de alguma forma vai trazer algum conforto.

 

Ele ouve a leve sinfonia ecoando como a canção de um anjo, uma voz tão suave e aveludada que só poderia ser a prévia do paraíso. Sente uma leve mão passar por entre seus cabelos, no ritmo lento e calmo da música. Abre os olhos devagar, lentamente sua visão toma forma. Admira o rosto cansado e aflito, que ânsia por uma boa noite de sono.

— Não gosto dessa música —ele diz.

— Clara me disse que gosta das mesmas bandas que ela. — Sara suspende as carícias.

— É verdade, mas essa música não é legal.

— Bem, quando estourou eu ainda era menina, como você. — Ela sorri, porque lembrou que é uma história bem engraçada.

Sara aperta sua mão e a beija levemente. Seu coração está nas nuvens com o alívio de vê-lo ali, vivo, é como um abraço reconfortante, daqueles que não recebia há muito tempo. Seus filhos são a única razão pela qual ainda vive, qualquer uma das suas atitudes são medidas quando pensa neles e a dor de viver se torna doce. Todavia, na profundidade de seu ser, compreende de alguma forma que Eric nunca será capaz de retribuir tal amor, por isso que lhe oferece o incondicional. Talvez ele tenha ideia do que seja esse sentimento, mas não do que é sentir e se doar por ele.

— Nunca mais fuja de mim, querido.

— Não fugi de você, mamãe. — Por uma grande extensão de tempo, o silêncio paira entre os dois.

— Há quanto tempo estou aqui? — Eric pergunta.

— Dois dias — responde sua mãe. — Sabe o que aconteceu, não sabe?

— Acho que sim.

— Você pode me contar o que houve, querido? — a mulher interroga, sendo o mais cuidadosa possível.

— Por que? — Eric devolve a pergunta.

— Está bem. — Sara respira fundo. — Vou contar o que aconteceu comigo quando o senhorzinho resolveu sumir de vista e depois, você vai me contar a sua parte da história, fechado? — Ela estende a mão para um acordo, ele concorda. — Bem, te procurei por todos os cantos inimagináveis, comecei pelos banheiros, depois perguntei para os doutores de cada consultório e olhei em todos os quartos, então, busquei pelo jardim e andei muito pela vizinhança, mas nenhum sinal do pequeno Walker. Anoiteceu e sua querida mãe já estava cansada demais, decidi te esperar, porque de alguma forma, sabia que iria voltar para mim... bem, agora é sua vez.

— Eu só entrei naquele quarto, porque ele estava aberto e eu dormi. Não sei como, mamãe, quando acordei a porta já estava trancada e um homem me chamou, disse para eu entrar embaixo da cama, porque você estava vindo, não queria que me achasse, entrei embaixo da cama com ele. Depois que você foi embora, começamos a conversar e de repente ele já queria me matar, eu... eu só devolvi, só devolvi, mamãe.

— Eu sei, meu filho — pronuncia sua mãe, atordoada com aquela história hedionda. — Era você ou ele.

— Eu sou a pior pessoa do mundo? — Eric especula, não que estivesse tendo um ataque de consciência, até porque é jovem demais para saber o peso de matar um homem.

— Não, querido, a pior pessoa do mundo é um tirano ou até mesmo aquele psicopata que te atacou.

— O que é um psicopata? — ele indaga, com curiosidade juvenil, admirando a estranheza da palavra.

— São pessoas loucas, meu filho, matam sem dó, até mesmo garotinhos como você. — Sara se equivoca,  psicopatas não são loucos e nem todos matam, a maioria costuma ser como seu filho, perversos e calculistas, doces, gentis, amáveis, amigáveis, bons amigos e companheiros, podem ser o que você precisa, vestir a carapuça que lhes melhor servir, Eric pode ser o que quisesse, anjo ou diabo. — Eu nunca mais vou deixar ninguém mexer com sua cabeça.

Ela oculta o fato de não ter autorizado que mais uma vez o interroguem, preferiu ouvir a versão de seu filho e repassar para a polícia, para evitar mais transtornos e tragédias, afinal, ele é apenas uma criança.

— Promete? — Ele se aconchega na cama.

— Prometo.



 


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