O Utópico das Borboletas escrita por Sebastian


Capítulo 5
A Vergonha e a Ruína


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura !



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V

A Vergonha e a Ruína

 

19 de setembro de 1988

 

Sara planejou uma festa surpresa para o seu menino há quase três meses. Decidiu que não faria na sua casa, não com Gared implicando com Eric a cada minuto ou com seus insultos camuflados. Preferiu organizar a comemoração na casa de Cora, sua irmã, que fica em um subúrbio do outro lado da cidade, por esta razão teme que nem todos possam ir. Após a tragédia com Annabel, as outras crianças passaram a se aproximar de Eric, não o deixavam mais sozinho. Acabou por se tornar popular, o que no final foi bom, adora ser o centro das atenções. Os acontecimentos ao longo do ano foram sendo esquecidos, Ambrose Johnson foi afastada do cargo de professora, passando por acompanhamento psicológico, o ocorrido lhe atingiu de maneira muito drástica e, não obstante, o julgamento popular: uns defendiam e outros desejavam queimá-la na fogueira.

Enfim, as coisas ficaram em um passado não tão distante e Sara está pronta para continuar seguindo em frente. Agora se encontra ajeitando a mesa de cupcakes, enquanto Cora enlouquece com a história do mágico que está mais de quinze minutos atrasado e Tobey, seu marido e Patrick, seu filho, estão terminando de encher os balões. Todos estão atentos a qualquer chamado na porta. Clara e Eric chegarão logo, logo, ficou combinado que a garota deverá bater três vezes na porta e depois conduzi-lo ao jardim.

— Não acredito que contratei um pé rapado que dá calote em criancinhas — comenta Cora, um tanto nervosa.

— Eu falei que não tinha necessidade. — Sara sorri.

— Sempre teimosa, não é, Coraline? — Tobey se intromete, segurando o riso.

— Muito engraçado senhor Howard. — Ela cruza os braços. — Bom, pelo menos ainda temos o algodão doce e a cama elástica. — Suspirou parecendo insatisfeita.

— Ele não vem mesmo? — sua irmã indaga, agora tomando um ar mais sério.

— Eu liguei para ele e me jurou que chegará aqui antes das 15h, duvido.

— Que bobagem, Cora, eu disse que queria uma coisa simples e você fica gastando suas economias. — Ela se direciona para a mesa do bolo, dispondo as nove velas na superfície.

— Eu sei, mas isso não pesa nada para mim. Eu só quero que seja bom para que ele esqueça as coisas ruins que aconteceram esse ano.

Ela sorri, agradecendo de coração pela preocupação, Cora sempre foi daquele jeito, ama coisas em grandes proporções, exagerada com tudo.

— E aquele teclado, é para que? — pergunta, encarando o objeto como mais uma das espalhafatosas ideias de sua irmã.

— Para agitar o parabéns, que-ri-da.

— Deus, Cora. — A outra gargalha. — Daqui a pouco vai colocar um globo espelhado no meio do jardim.

— Vamos deixar para o aniversário de dezesseis anos. — Ela pisca o olho esquerdo.

— Certo, e quem vai tocar esse treco?

— Ah... — Cora parece um pouco desconcertada, visto que ainda não preparou a irmã para receber a "boa" nova. — Eu não quero... — O telefone toca ao longe, na cozinha. — Deve ser o mágico, já volto.

E elas acabam deixando o assunto de lado, para Sara pouco importa quem irá tocar, só ficou admirada com o senso de planejamento para festividades de Cora, é divertido. Espia o relógio, já passa das 13h e a organização está em seus detalhes finais. A cama elástica já se encontra lá, junto do algodão doce e a moça que fará pinturas faciais. Aos poucos os primeiros convidados chegam, acomodando-se no jardim e brincam entre si. Patrick, com seu senso adorável de socialização, fez novos amigos em minutos.

— Eles chegarão daqui a pouco — Sara fala, encarando o relógio mais uma vez, agora bate 14h30, encontra-se com aquela ansiedade animadora. — Acho que todos os convidados já estão aqui. — Olha em volta, crianças correm para todos os lados.

— Nem todos — Cora sibila baixinho.

— Eu não chamei mais ninguém.

— Então... eu tomei um pouquinho da liberdade de chamar minha afilhada, ela vai embora hoje e eu pensei... — A outra a interrompe na hora.

— Thalia? — Sua irmã confirma com a cabeça, Sara ficou perturbada ao assimilar que a menina é filha de Benjamin Walker, irmão do seu marido. Analisa o teclado ao lado da mesa, como não percebeu o óbvio? Ele será o tecladista. — Cora, por que você fez isso? Você sabe, sabe…

— Eu sei que vocês não se entendem, mas já deu a hora de deixar as coisas no passado e é uma boa oportunidade para conhecer a família dele.

— Boa oportunidade? — Ela repetE, tentando tatear a realidade.

— Ele amadureceu, nem parece o mesmo. — Cora se aproxima dela. — Já faz tanto tempo, não precisa mais ficar envergonhada pelas coisas que aconteceram no passado.

Esta frase possui uma conotação dupla para Sara. Se Coraline soubesse de tudo, se fosse corajosa o suficiente para contar toda sua tragédia, aquela infeliz ocasião nunca aconteceria.

— Deveria ter me consultado — fala de maneira séria com a garganta seca.

— Eu sei, desculpa — Cora lamenta, mas não o suficiente para entender o mal que causou, por alguma razão pensa que esse encontro fará bem à ela.

— Ora, veja só, o grande homem! — Ouve Tobey dizer ao longe, sua mente se distancia aos poucos, mal escuta alguma resposta, está perturbada.

É tarde demais, o homem surge acompanhado da esposa e da menininha. Ela parece ter a mesma idade do seu filho "Deus, ela é irmã de Eric", sua cabeça pesa, instantaneamente enjoada ao perceber as sutis semelhanças entre os dois, a maçã do rosto e o nariz.

Sara é surpreendida com um abraço de Benjamin, como se fossem velhos amigos, ela se assusta, deseja gritar várias vezes durante o curto intervalo de tempo. Livra-se de súbito das garras da maldita aranha, enquanto os assiste cumprimentar Cora com beijos e abraços.

— Há quanto tempo — diz a esposa dele, cortejando-a de maneira formal, com um leve sotaque que puxa um som de erre fraco. —  Lembra de mim? Nunca mais a vi nas festas de família.

— Não vê por que meu querido irmão é rancoroso — Benjamin aparece ao lado dela, tocando o ombro de Sara que não tem reação a não ser segurar as lágrimas e colocar um sorriso falso no rosto.

— Espero que sejamos grandes amigas — a outra fala, parece tão gentil, Sara não compreende como conseguiu construir uma família com aquele homem detestável.

— Eu trouxe um presente incrível para o meu primo —  a criança exclama sorridente.

— Ele está quase chegando, querida, irá adorar ele — Cora mal fecha a boca e a menina já está abraçando seu amigo Patrick.

Sara fica inquieta com todas as vozes soando ao mesmo tempo, com a gargalhada exagerada de Benjamin, seu perfume ainda é o mesmo, a presença ainda assombrosa, seu estômago embrulha, precisava de ar, ou melhor, fugir o mais longe que pode dali. O dia especial toma a forma do inferno, e de repente, acorda do seu sonho, não há paraísos em sua vida, não mais, desde o nascimento de Eric, passa dia após dia tentando amá-lo e torná-lo parte da sua existência, quando na verdade, não passa de um intruso.

— Mais um pouco e chegaríamos junto com Eric — Benjamin comenta. — O trânsito estava caótico.

— Nem me fale, tenho de ir todo dia para o centro, é uma loucura — prosseguiu Tobey.

— Quanto tempo, hein, Sara. — Volta-se para ela, tocando seu ombro, fazendo-a se contorcer por dentro. — Faz o que... — Ele para, pensativo. — Dezessete anos que não te vejo? Como estão as coisas?

"Nove anos, filho da puta", reflete, cada vez mais enjoada.

No entanto, consente, formulando um sorriso forçado.

‘ — Quantos anos seu menino faz? — pergunta Olívia, intrometendo-se.

— Nove — Sara sibila, lamentando por dentro, "nove".

— Thalia é dois meses mais velha. — Ela completa.

Sara congela por dentro, a dor de cabeça consome sua mente, enquanto tenta digerir o que acaba de ouvir, Olívia estava grávida quando sua tragédia aconteceu, como Benjamin pôde ser tão impudico? O que o levou até sua casa naquela tarde de dezembro? Teria sido atrás de vingança? As perguntas dão um nó em seu cérebro, nunca encontrou resposta para nenhuma delas e pensar naquilo lhe causa náuseas. Ainda assim, por mais que não quisesse, suas memórias voltam para aquele dia, seus olhos marejam.

Toc Toc.

A imagem de Benjamin à sua porta.

Toc Toc.

Ele pediu para entrar.

Toc Toc.

Sara não quis, mas ele insistiu.

— Sara, o que está fazendo parada aí? — Cora a puxa de volta para a dura realidade.

— O que? — Exprimiu os olhos, não permitindo que as lágrimas corram o rosto, a testa doendo pelo esforço.

— Você está bem? — A mulher a observa, desconfiada.

— Eu preciso... — Está desnorteada. — Eu vou ao banheiro.

— Não dá tempo, eles já chegaram.

— Cora, nada adiantou o mágico, as pinturas e a cama elástica, está tudo acabado — cochicha com indelicadeza.

Sara sai o mais rápido que pode do jardim, mesmo assim, topa com seus filhos perto da escada, na sala, está tão transtornada que não fala com eles, apenas corre para o banheiro, trancando-se como se estivesse fugindo do demônio e finalmente desaba em lágrimas.

— Vá para o seu lugar feliz — murmura para si mesma, entre soluços, aterrorizada com as lembranças.

Ela fecha os olhos, respirando fundo e se teleporta  para sua mocidade, na velha casa de seus pais, onde havia um campo de lavandas, ah, as lavandas, conseguiram impermear seu nariz congestionado, como cheiravam deliciosas ao final de uma tarde de chuva. Ela e Cora tinham poucos anos de diferença, mas sua irmã já estava noiva, quando passavam horas e horas deitadas sobre o gramado macio da fazenda, embaixo de um carvalho, sentindo ao longe o aroma do extenso campo de flores, trocando confidências. Nunca deixou de segredar nada à Coraline até o dia da desgraça, dali por diante, uma barreira invisível foi criada entre elas.

— Mãe. — A voz de Eric lhe arranca do sossego.

— Sim — responde, ajeitando o rosto, deixando-o o mais apresentável possível, em seguida abre a porta. Ele adentra, com uma caixa nas mãos, possivelmente um de seus presentes.

— Gostou da surpresa? — ela pergunta, empenhando-se para que ele não pergunte sobre o motivo das suas lágrimas.

— Claro. — O menino a examina. — E eu já sabia.

— Muito esperto. —Ela abre um sorriso apagado.

— Olha o que Thalia me deu. — Aponta para a caixa. — É um Atari 2600. — Ele está tão empolgado que mal termina as frases.

Sara observa o objeto, encrespando a testa, "esse jogo custa mais de cem dólares", Benjamin não dá pontos sem nó.

— E vamos jogar agora, tio Ben já está lá embaixo.

— O que? — A voz dela ecoa mais alta que o esperado.

— Ele vai jogar com a gente.

— Desgraçado — sussurra, cerrando os dentes.

— Você está bem? — Eric a contempla com os olhos apertados. — Por que não gosta do tio Ben?

— Olha, meu filho. — Ela se ajoelha, segurando seus ombros. — Presta bem atenção. — Encara seus olhos intoleráveis. — Ele é um homem mau, fica longe dele.

— Eu não entendo. — O menino se faz de sonso. — Ele foi gentil comigo, nem parece irmão do Gared, é muito melhor que ele, eu até gostaria que fosse meu pai.

Walker observa as órbitas de sua mãe dilatarem em sinal de choque. Abre um sorrisinho de canto, existe algo estranho pairando no ar, já não basta Clara que após dar uma parada em casa, saiu completamente transtornada. Perguntou o que havia visto e ela mentiu, o mesmo que sua mãe está fazendo agora e na hora saiu correndo para dentro da residência para descobrir o que estava acontecendo. Não foi algo legal para uma criança ver, mesmo confuso, sua irmã o fez prometer que não contaria para Sara.

— Isso é uma ordem. — Ela engole em seco.

Eric não gosta de ser contrariado, quer brincar com seu joguinho novo e se exibir para os seus convidados, contudo, sua mãe é uma pedra no caminho, como sempre, pois se é assim, vai arrumar algo para ocupar a cabeça dela agora.

— Você já sabe? — indaga, fazendo-se de inocente, é óbvio que não.

— O que? — Ela se levanta, encarando o espelho, seus olhos se encontram inchados e vermelhos, horrível, como vai permanecer na festa desse jeito?

— Papai estava com uma moça no quarto, pulando em cima dela. — Ele coloca o indicador no queixo, pensativo.

Sara fica sem chão, procurando uma forma de digerir aquela informação, Eric só pode estar tentando enlouquecê-la.

— Isso não é verdade — anuncia entre os dentes.

— É sim, mãe e parecia muito com a mãe da Annabel, Clara disse que eu não deveria ter olhado, aquilo é coisa de adulto, eu vi os peitos dela... — Sua mãe interrompe o taralegar.

— Por que está fazendo isso comigo?! — Ela grita, descontrolada.

— Eu só estou contando o que eu vi, porque mentir é feio e está nas lições diárias.

— Que gritaria é essa, deu para ouvir lá embaixo. — A figura de Benjamin irrompe o lugar como um fantasma.

— Minha mãe, tio Ben, quer quebrar meu jogo porque não gosta de você — diz Eric, correndo para perto do homem, como um cordeirinho perdido.

— Desça, garotinho, eu e sua mãe iremos conversar — o homem profere, gerando um temor enorme nela, seu estômago se revira.

A criança se retira satisfeita, como se tivesse ganhado um prêmio.

Sara assiste a cena, desgostosa, sobretudo, observa o menino voltar para sala, o desplante de Benjamin, defendendo a criança, por um instante desejou que o tivesse ceifado ainda em seu ventre. Não suporta mais pensar em Eric, Benjamin, Gared ou qualquer outro da sua vida. Sente-se sufocada.  Deseja morrer.

Ela tenta fechar a porta, mas, Benjamin é mais rápido.

— Vai embora! — exclama, perdendo as forças. — Por favor, me deixa em paz.

— Não quero que tenha medo de mim — ele sussurra. — Eu sinto muito.

— Vai se foder. — Ela não sabe como conseguiu pronunciar aquelas palavras a tanto tempo entaladas em sua garganta.

Benjamin insiste, ajoelhando-se aos seus pés, abraçando sua cintura. Sara entra em pânico, as lágrimas percorrem o rosto, as entranhas doem, assemelhava-se com aquele dia.

— Eu te amo, Sara, me perdoa, me perdoa, meu amor — repete como se fossem preces, enquanto luta para segurar as lágrimas. — Agora eu sou um novo homem, eu sou melhor, eu sou bom, eu sou bom… 

— Tira as mãos de mim! — Ela berra, soltando-se dele. — Eu te odeio, eu te odeio, eu te odeio, você é um porco! Me entendeu? Um porco! — continua a gritar compulsivamente e a amaldiçoá-lo com todas as palavras possíveis, perdendo o controle sobre si mesma.

— O que está acontecendo aqui? — Cora exclama, ao pé da porta, assustada ao ver a cena: Sara em prantos e Benjamin jogado ao chão como se estivesse a caminho do calvário.

— Desculpa, Cora, eu... — O homem se soergue com dificuldade, exprimindo o choro.

— Que confusão é essa? Estão espantando os convidados. — Olívia surge, interrompendo seu marido. Analisa o quão transtornado Benjamin esté e a outra mulher ao fundo. — Eu entendi…  — Engole em seco. — Saiu em seguida, batendo os pés e o homem vai  atrás como se quisesse mesmo manter seu casamento.

— Sara — Coraline sibila, fitando sua irmã que olha para o nada, perturbada. — Por que vocês brigaram?

Ela nada responde.

— Eu não vou poder te ajudar, se não me disser nada — fala o mais gentil possível.

Sua irmã permanece silenciosa.

— Eu tenho que ir embora. — Sara anda de maneira hipnótica para fora do cômodo.

— Espera. — Cora segura sua mão direita... — Você não está bem, não pode sair assim.

— Eu preciso ir, cuide das crianças. — Desce as escadas, cambaleando, a dor na cabeça amassando seu crânio junto com o peso das suas culpas. — Eu preciso ir, meu marido está me traindo. — Ela caminha vertiginosa pela sala silenciosa, provavelmente evacuaram as crianças para o jardim, assim não espalhariam mais um escândalo, cochichando algo para si mesma, como se fossem lembretes.

Ela sai para fora, à medida que Cora grita seu nome, soa tão longe, parece que estão à quilômetros de distância. Ainda consegue corvejar Benjamin e Olívia discutindo dentro do carro, igualmente distantes. Sara anda com a cabeça fora do corpo, não sabe como consegue chegar ao seu automóvel, e tampouco, como prosseguirá para sua casa.

Coraline assiste sua irmã conduzir o veículo de maneira sinuosa e desequilibrada, movendo-se em disparada, deixando um rastro barulhento no asfalto.

— Tia. — Clara chama atrás de si, dando-lhe um susto.

— Sim, querida.

— Para onde minha mãe foi? — indaga, mostrando a tamanha preocupação em seu rosto.

— Acho que foi para casa, eu não sei o que aconteceu, estou preocupada.

— Mas ela estava tão contente com esta festa.

— Todos nós, a culpa foi minha, desculpa — lamenta Cora.

— Deveríamos ir atrás dela. — Clara rói as unhas. — Temos que chegar antes dela.

— Por quê?

— Meu pai está com uma mulher. — A garota não contém as lágrimas. — E eu não tive coragem de contar a verdade e agora vai acontecer uma desgraça.

— Não. — Cora a abraça, empenhando-se para consolá-la, certamente uma bomba irá explodir. — Nada do que acontecer agora será sua culpa, vamos atrás dela, tá bom? — Clara concorda, enxugando as lágrimas.

"Que inferno de dia", conclui Coraline.



Aos trancos e barrancos, Sara consegue chegar à sua casa. Percorreu o caminho inteiro ruminando o que ocorreu no ano de 1979, algo que nunca poderia ser apagado da sua memória porque foi ali que começou sua destruição.

Ela toca a maçaneta redonda e pensa durante alguns minutos, até que enfim a abre, olhando o ambiente, inquieta. Anda devagar até a escada e sobe cada degrau empoeirado sem pressa. Passa pelo corredor, escutando as conversas e risadinhas vindo do quarto, estaciona em frente à porta, que continua entreaberta, da mesma forma que seus filhos olharam o feixe, ela também o faz. Vê Gared e uma moça — não é Eileen, Eric só quis infernizar —, deitados na cama, despidos, cobertos moderadamente pelo lençol branco.

— Não deveria trazer prostitutas para sua casa, Walker. — Escuta a voz irritantemente estridente da garota.

— Está falando mais do que deveria. — Ele resmunga.

— Você é um dos meus favoritos, gostaria de saber mais sobre a sua vida. — A voz dela ressoa dengosa, passando a ponta das costas sobre as costas dele. — E teremos bastante tempo para falar sobre isso.

— Claro. — Ele se vira, dando-lhe um beijo molhado. — Eu só quero te foder a tarde toda. — Sara congela por dentro, foi tão repulsivo ouvir aquilo. — Estou faminto, vamos comer alguma coisa, preciso de energia. — Dá um risinho esganiçado.

Sara se afasta, dando passos leves e rápidos para o quarto ao lado, visualiza as sobras passarem pelo corredor, contendo sua raiva e nojo. No momento em que se acha sozinha, desce para o porão, lá entre quinquilharias, dentro de um baú, bem escondido, encontra um velho revólver.

Sara sobe as escadas, atravessando o corredor, agora barulhento pelos gemidos escandalosos do casal. Ela os observa por um breve instante, claramente, pois a porta se encontra escancarada e eles ficam de frente para ela.

— Ah, Garry você é o melhor de todos — a mulher grita. Estava de quatro, enquanto o homem a penetra por trás, fazendo-a balançar pelos impulsos, cada vez mais rápidos. — Isso, isso. — Ele segura seus cabelos, aproximando seu lábio perto do ouvido dela.

— Você é uma putinha muito gostosa, Carmen — diz ofegante, continuando a falar coisas obscenas em alto e bom tom.

Sara não aguenta, invade o quarto com a arma em punho, mirou um tiro na cabeça da desconhecida.

Ela cai de maneira desajeitada e Gared por cima, assustado, ainda desorientado, vislumbra sua esposa parada na porta, alvejando-o com o revólver e uma expressão doentia no rosto. Separou-se do cadáver, esquecendo a excitação, ainda ejaculando, sente-se constrangido. O sangue espirrou em seu peito e, no instante que entendeu tudo, entrou em um pânico interno. Levantou-se assustado, cobrindo o corpo nu com o lençol.

— Que porra é essa, Sara?!

— É o fim de todas as coisas — ela responde com a voz baixa.

— Para com isso. — Ele amansa o tom. — Largue essa maldita arma, vamos conversar sobre... — Olha para o corpo, jorrando sangue e estremece por dentro. — A besteira que você acabou de fazer. — Avança um passo para frente, mas a mulher está na defensiva e carrega o revólver para mais um disparo. 

— Cala boca! — ela exclama, impaciente.

— Vai me matar? E como vai ser? Como ficará Clara e o bastardo que você tanto ama?

— Você é um porco que nem o filho da puta do seu irmão — Sara contém as lágrimas, mas a voz embarga. — Eu vou acabar com você e depois…

— E depois? — Ele levanta a sobrancelha, tentando plantar a dúvida na cabeça dela. — Vai passar o resto dos seus dias na cadeia, é isso que quer? — Deu um risinho. — Você é fraca, não aguentaria uma semana. Imagina só, as crianças caindo sobre os cuidados de Benjamin, porque Cora não irá suportar muito tempo aquela peste.

— Cala a porra da boca! — Sara gritou, inconformada com a desonestidade de Gared, tocando na sua ferida mais profunda de maneira tão suja, foi o mesmo que levar um tapa na cara.

— Sabe por que nunca te perdoei? — Ao ouvi-lo, a mulher abaixa a guarda, curiosa — Porque você mereceu, nunca deu limites para Benjamin, pelo contrário amava ser bajulada por nós dois. Abriu a porta para ele e se fez isso, era porque estava querendo algo a mais. Eu nunca acreditei em você, Sara, não passa de uma vadia mentirosa como todas as outras e não há diferença entre você e essa prostituta. — Ele abre os braços, fazendo-se um alvo fácil. — Foi tudo sua culpa.

Sara preferia ter morrido a escutar aquelas palavras, ficou possessa. Gared nunca entendeu sua dor, em nenhum momento a ajudou em sua agonia, pelo contrário, sempre fez questão de demonstrar seu nojo constante e raiva, era palpável lhe jogar toda a responsabilidade cheio de insultos. Mas não agora, essa é a última vez que a humilha e estas vão ser suas últimas palavras.

Ela aperta o gatilho, acertando o meio de suas pernas, o lençol saiu de seu corpo e o homem cai junto, cerrando os dentes, com as mãos se dedicando para vedar o sangramento e a dor angustiante.

— Ah, sua filha da... puta desgraçada! — ele a amaldiçoa com todas as afrontas possíveis, com um meio choro.

Sara se aproxima dele, fitando-o se contorcer e ofendê-la, contudo, encontra-se blindada, àquela altura Gared não poderá mais atingi-la, aponta o próximo tiro na sua cabeça.

— Nos vemos no inferno — diz, esforçando-se para manter o equilíbrio.

De forma surpreendente ele solta um risinho engasgado.

— Vai se foder. — Ele continua a gargalhar. — Vai se foder.

O homem repete as palavras até Sara, por fim, abrir fogo uma, duas, três, quatro vezes, até as balas acabarem. Em seguida, fica parada, sem mais reações, observando o cadáver sem rosto, para o amontoado de carne triturada, quem o olhasse agora não diria que já foi um homem, tampouco, o amor da sua vida. Ela se deita na cama, desnorteada, ao lado da prostituta, seus pés ainda estão fora do mundo real, se tocassem o chão agora, à medida que seus olhos cegos de tristeza e ódio abrissem, seria capaz de enxergar a atrocidade que acabou de cometer. Ela vira a cabeça, fixando seu olhar para baixo.

— Você não era assim. — Contempla o teto branco. — Eu também não.

Então, pensa em toda sua vida e em seu relacionamento infeliz com o falecido marido. A verdade é que nem sempre foi desse jeito, tudo começou há nove anos. Vamos ao começo, onde tudo era mais doce, onde as rosas não mostravam seus espinhos. Sara e Coraline Griffin, filhas de pequenos fazendeiros, importadores de flores, criadas para serem perfeitas esposas e donas de casa. Atrás do lar, havia um extenso campo de lavandas, brincaram, cresceram e trocaram confidências sentindo o cheiro suave das flores, eram tão felizes, com certeza, em seu paraíso teria um campo com as perfumadas lavandas, já seu inferno, teria a obscura face dos homens da família Walker, maldito seja todos eles.

No ano de 1969, Cora estava noiva de Tobey Howard, com sua essência exagerada, planejava o casamento há quase um ano e meio. No momento, estava correndo atrás de uma banda para tocar na festa e um pianista para orquestrar sua entrada no altar. Para ela nada parecia bom o suficiente, até que uma amiga lhe indicou um jovem musicista, chamava-se Benjamin Walker.

Benjamin se apaixonou à primeira vista por Sara, chamou-a para sair e ela disse sim, todavia, não estava interessada nele, primeiro, era mais velha e segundo, caiu de amores por Gared, pelo seu jeito de bad boy fanfarrão e bem-humorado, sempre lhe contava piadas. O outro possuía uma obsessão furtiva sobre ela, perseguiu-a até o dia do seu matrimônio com Gared, em 1971, após esse dia sumiu do mapa, ouviu ainda boatos de que havia se mudado para Rússia e casado com uma musicista, deus graças a Deus.

Nos primeiros nove anos de casamento, Garry, como o chamava carinhosamente, sempre lhe trazia lavandas ao chegar do trabalho, para lembrá-la da casa de seus pais. Aos finais de semana voltavam para Chesapeake, acomodavam-se na casa de praia, construíam castelos de areias junto com Clara, pulavam as ondas agitadas e se divertiam empinando as pipas espalhafatosas. Recordou-se que a todo momento cuidou tão bem dele e mesmo depois da violência que sofreu, Gared fingiu apoiá-la, quando na verdade não aturava olhá-la. Como era fraco. E seu café da manhã estava sempre no ponto, pois ela levantava mais cedo para prepará-lo, todos os dias, o almoço e jantar o satisfazia, sua roupa bem passada, dali por diante, ela apenas havia virado sua serva.

A primeira ruína de Sara Walker veio no dia primeiro de dezembro de 1979. Nunca esqueceria essa data, pois foi ali que um vento muito forte soprou para derrubar seu castelo de cartas, anunciando uma tempestade terrível. Ela foi violentada naquele dia, por um homem que conhecia muito bem.

"Você vai aprender a me amar, Sara."

A voz tenebrosa ainda permanecia impregnada na sua cabeça, aquela frase ainda doía, as marcas que aquele ele deixou foram profundas. Quando seu marido chegou à residência, mais uma vez, após um longo dia de trabalho, encontrou-a no chão da cozinha, ao pé da mesa — jamais a viu chorar tanto — muito machucada e sangrando. Ela gritava aos prantos.

"Garry, por favor me ajuda, me ajuda, leve-me para o hospital, veja só o que seu irmão fez comigo!"

Ele apenas a transportou para o quarto, confuso, perguntando-se o porquê de Benjamin estar na sua casa, se não se falavam há muito tempo, pior, odiavam-se. Não confiou no que Sara lhe contara, uma peça não se encaixava na sua história frágil, começou a olhá-la de maneira diferente, como se fosse um estorvo, foi uma vergonha. Além do mais, quando o escândalo eclodiu para família e vizinhança, não sabia mais como encarar Sara, sua mulher fora abusada dentro da sua própria casa. Garry não a levou para o hospital, não prestou queixa e nem lhe dera suporte nenhum, a única testemunha a quem ela confiara, capaz de punir Benjamin, orientou-a se calar, porque, na sua cabeça, os dois tinham um caso. Contudo, ao recusar sexo com ele, a desgraça aconteceu. Ele conhecia seu irmão, sabia que não aceitava não de ninguém, ainda mais vindo de uma mulher.

Após muita luta, Sara inventou uma história para sua irmã, sobre o ocorrido, disse que havia sido um carteiro, que nunca vira antes, pediu para entrar e um copo d'água, pois estava com sede e então, veio o trágico incidente. Poucos acreditaram na história, afinal, quem deixar um estranho entrar no seu lar? Especularam muito sobre o tal homem poderia ser seu amante, um amigo ou até mesmo um vizinho. Culpavam-na, pois foi ela quem abrira a porta para o mal entrar.

Tudo piorou ainda mais quando descobriu, após três semanas, que estava grávida e não era de Gared. Não teve coragem de contar para seu marido que aquele maldito homem lhe havia feito um filho à força, então, do seu jeito, tentou esconder o quanto pôde.

Sara havia tentado abortar uma vez, na segunda foi no local que achava ser certo, ainda na sala de espera, ouviu gritos e grande balbúrdia, uma mulher havia morrido naquele lugar decadente. Não desejava ser a próxima, lamentou ainda mais, quando uma jovem garota ao seu lado falou que aquela não era a primeira e nem seria a última. Chorou, no momento em que a mesma ainda acrescentou que não haveria forma segura e se descobrissem o que estava fazendo seria expurgada. Acontecera exatamente isso ao contar para Cora o que ponderava fazer durante dias, sua irmã não aceitou ideia tão absurda, convenceu-a que não era certo, uma atitude egoísta e um dia se arrependeria de ter tomado qualquer decisão precipitada e ainda aconselhou que buscasse a religião.

Sara lhe deu ouvidos, mas fracassou, porque nenhum deus conseguia preencher o vazio, tristeza, revolta, dor e tudo que aquele mundo maldito e injusto lhe proporcionou. Não compreendia por que mereceu tamanha desgraça, por qual razão tinha de assistir à missa, ajoelhar-se grávida de seis meses e orar pelo seu inimigo. Não entendia por qual razão tinha de perdoá-lo. Suas preces eram voltadas para vingança, que Deus destruísse Benjamin.

Gared nunca se recuperou do baque, deu seu nome ao menino para não desamparar Sara, porque sempre olharia aquela criança como um erro, um bastardo fruto da violência, a vergonha e a ruína. Gared Walker sempre foi um covarde.

Eric foi um acidente abominável em sua vida, mas com o tempo, depois de muitas lágrimas, empenhou-se para amá-lo. Mesmo que fosse dolorido, ainda que rasgasse seu coração, foi difícil, pois tudo o que fazia lhe lembrava o maldito.

Sara jamais voltou a encarar os olhos do monstro horrível que levou sua vida, evitava festas grandes de família por conta disso, e mesmo assim, Benjamin fez questão de se manter próximo, na ponta mais fraca, através de Coraline. Uma história longa, que nem fez questão de digerir, apenas sabia que sua irmã havia apresentado Olívia ao homem. Porém, agora, depois de nove anos, ele volta como uma sombra tenebrosa, pronta para cobri-la novamente.

Após aquele filme mudo hediondo ter passado inteiramente em sua cabeça, entre lágrimas insistentes, ela escuta a voz miúda, arranhando a ponta do seu crânio.

"Seus filhos ficarão à mercê de Benjamin, é isso o que quer?"

— O que eu posso fazer? — rumoreja, exausta.

"Mate-os!"

— Por quê?

"Eles vão ficar à mercê de Benjamin!"

Sara levanta de uma vez, a cabeça pesada de dor, observa cada canto rubro do quarto, o odor de sangue e finalmente, cai em si,  matou duas pessoas, agora teria de pagar pelo crime. É isso que seu eco interior está tentando alertar, cutucando-a até acordar para encarar a realidade.

— Deus, o que eu faço? — Apoia a cabeça sobre as mãos. — O que você fez? — Funga, fitando o revólver, ainda tem duas balas no bolso. — Gared estava certo. — Reflete. — Se eu for presa, aquele filho da puta vai dar um jeito de tirar as crianças de Cora, Deus, isso não pode acontecer, não pode. — Ela pula da cama, indo para a sala de estar, direto para o telefone, discando o número da sua irmã.

— Alô — disse Tobey.

— Oi, é a Sara…

— Ah, graças ao bom Deus, está tudo bem por aí? — Interrompe, exaltado.

— Claro. — Ela balança a cabeça para cima e para baixo, como se Tobey estivesse na sua frente. — Onde está Cora?

— Ela foi atrás de você.

— As crianças foram com ela? — indaga, enrolando o fio do telefone, impaciente.

— Apenas Clara e... Benjamin — ele responde com cautela.

— Tudo bem, está tudo sob controle, agora já estou melhor, eu... eu passei um pouco mal, sabe? Enfim, eu peço mil desculpas, cuida do meu pequeno monstrinho, tchauzinho. — Ela atrapalha as palavras e mal dá chance para retorno, desliga o telefone com rapidez. — Merda.

Seu plano foi por água abaixo. Não totalmente, entretanto, percebe que a peça chave virá diretamente até ela: Benjamin. Não precisará mais pagar um preço alto para livrar seus filhos do demônio, vai matá-lo e tudo se resolverá.

"Vai dar tudo certo, Sara", respira fundo. A mente dela colapsou, qualquer coisa faz sentido, seus olhos estão cobertos por um véu alucinante, não sabe mais o que é real, onde se encontra no espaço e tempo, a morte parece indolor, assassinar seus filhos é uma ideia aceitável, o homicídio que acabou de cometer oscila em sua cabeça, ora se culpa, outrora acha justo.

Ela se senta no sofá, inquieta, recarregando a arma.

— Uma para mim e outra para o diabo — sussurra, dando um risinho. — Finalmente vou para o meu lugar feliz. — A voz embarga. — Eu já não suporto mais. — A mão esquerda contém o nariz, visto que chora como uma criança perdida.

Suas memórias a teletransportam para sua infância nos campos de lavanda, balançando sobre o carvalho, na hora que cai em si, de alguma forma, havia botado um disco do Fred Astaire para tocar, relembrando sua adolescência ao som de cheek to cheek.



Benjamin estaciona o carro com prudência, temendo o que pode estar acontecendo dentro da casa.

— Tem certeza que não quer que a gente vá com você? — Cora pergunta, olhando para a sobrinha.

— Eles vão me escutar, sempre aparto as brigas. — Cora rói as unhas.

— Te esperamos aqui — orienta Benjamin.

Clara sai do carro, andando devagar em direção a porta, preparando sua cabeça para o que virá. Seus pais brigando mais uma vez, mas agora é a mais feia de todas. Segura as lágrimas. Vislumbra a madeira branca por um minuto, em seguida gira a maçaneta. Surpreende-se com a imagem desconcertante de sua mãe com um revólver sobre o peito, com os olhos fechados. O ambiente é insólito, nada do que imaginou, as notas altas da música tocando no rádio tomaram o lugar de uma possível discussão.

— Mãe — pronuncia receosa.

— Oh, querida, pensei que não iria chegar nunca. — Ela abre os olhos, as duas estão há uma distância considerável. — Você está sozinha?

— Onde está meu pai? — devolve a pergunta.

— Está lá em cima, dormindo ou... — Ela para, pensativa. — Morto. — Gargalha. — Ele está morto, como pude me esquecer.

— O que? — Clara fala baixinho, incrédula. — O que você fez? — pergunta com seus pensamentos indo a mil por hora. — O que você fez?! — grita, enchendo os olhos de lágrimas. — Por favor... por favor, diga que não fez nenhuma besteira!

Sara a encara, colocando os pés no chão, caindo um pouco na realidade. Cometeu um erro, pior, um assassinato a sangue frio, coisa de animal selvagem. Ela coloca  as mãos na boca e berra, não contendo o choro.

— Eu não sei, minha filha. — Choraminga, pensando no seu plano insano, contempla aqueles olhos pequeninos, sentindo-se um monstro, como teria coragem? A vergonha tomou conta do seu peito quase a sufocando. — Me promete que vai cuidar do seu irmão?

— Por quê? — Clara se empenha na tarefa de se manter forte.

No entanto, sua mãe nada responde, apenas dispara para o alto, amedrontando a garota. Resta ainda uma bala.

— Me promete?

— Pro...prometo.

Um breve instante de silêncio, até que Sara abre a boca, após tomar um pouco de coragem. Está exausta.

— Me perdoa.

Pressiona a arma em sua cabeça e em uma fração de segundos, antes mesmo que sua filha possa ter alguma reação, dispara. Ela cai de forma desajeitada no chão, o sangue se espalha pelo tapete rapidamente.

Clara não é capaz de tomar qualquer atitude, manteve-se parada, incrédula, olhando o corpo de sua mãe, tão frágil, tão distante, será que não é um pesadelo?

— Mãe? — murmura, a voz quase não sai. — Mãe? Mãe? — Abaixa-se, acariciando a pele ainda quente, parece estar dormindo, têm de estar. — Mãe? — Ela toca o líquido viscoso. — Não. — Coloca as mãos na boca, desabando em lágrimas. — Não, não, não, Deus, não!

Cora e Benjamin surgem na porta, espantados com a cena, enquanto a sobrinha grita inconformada, balançando o corpo, como se fosse levantar a qualquer momento. O homem não acredita e não faz questão de conter seu lamento, já Coraline luta para manter o equilíbrio.

— Ben, tire-a daqui — fala, enxugando as lágrimas.

— Não, não! — Clara berra, ao mesmo tempo que seu tio a puxa para fora da casa.

— Você precisa se acalmar.

— Mãe, não!

Ela continua a repetir as mesmas palavras, em estado de choque.

Cora sobe as escadas, deparando-se com a cena horrível no quarto, tudo cheira a morte, por um triz não vomitou. É a cena de um filme de terror sanguinário, onde não há heróis ou sobreviventes, um vazio enorme toma conta do seu coração, sente-se pequena e amedrontada.

— Sara estava possuída pelo diabo, só pode ter sido — diz, retirando-se do quarto, rogando a Deus pela sua alma e pelos dois iníquos no quarto.

Retorna para sala, tomando-a nos braços, acariciando sua pele, parece mesmo estar dormindo.

— Oh, minha irmãzinha, que Deus tenha piedade da sua alma — profere entre soluços. Vem a sua cabeça, a memória dos campos de lavandas, como cheiravam deliciosas após uma tarde de chuva, o vento trazendo o perfume debaixo do carvalho, onde ficavam horas e horas fofocando. — Por que?


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