O Utópico das Borboletas escrita por Sebastian


Capítulo 3
Corto-lhe a Cabeça


Notas iniciais do capítulo

Capítulo dedicado a uma DIVA chamada: Chiye



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III

Corto-lhe a Cabeça

 

A neve não parava de cair. Aos poucos, os curiosos foram embora, sobrando apenas um punhado de gatos pingados. A ambulância havia partido e o que restou foram os carros policiais e pessoas da escola. Sara entrou no prédio, junto com Eileen, desejando mesmo ir embora, contudo, um policial havia pedido que aguardasse pois o detetive precisava falar com Eric. Agora se encontrava sentada ao lado da mãe de Annabel, ainda aos prantos, na sala da diretora, seu filho estava em uma cadeira à parte, encarando as migalhas de neve pela janela. Daria tudo para saber o que se passava dentro da sua cabeça. A angústia da espera matava-a por dentro, estava preocupada em como todo aquele incidente afetaria o menino, e os pesadelos? Sara odiaria vê-lo tendo pesadelos. Ela já teve os seus, muitos com ele. Seu íntimo gritava para que não passasse por isso também. "Bastardo e perturbado, sua coleção de títulos só aumenta", tagarelou com seus botões, "Parece uma maldição, primeiro eu e depois meu filho, Deus, por que merecemos isso?"

— Senhoritas — Uma voz ressoou atrás de si, fazendo-as levantar em prontidão. — Sou Louis Sturridge. — Cumprimentou ambas. — Desculpe fazê-las esperar por tanto tempo, juro não foi minha intenção — disse de maneira cordial e descontraída, aparentava não notar o clima carregado em toda escola. — Essa é a doutora Blossom, psicóloga do nosso departamento.

— Sinto muito pelo ocorrido — falou a mulher, séria.

— E esse garotinho deve ser Eric Walker, hã? — O homem se direcionou para o menino, apertando-lhe as mãos.

— Você é o detetive? — indagou a criança, curiosa. — Como Sherlock Holmes?

— Quem dera fosse. — Ele sorriu. — Precisaria do meu grande companheiro, Watson, quem sabe você não pode ser ele? — Sara e Eileen se entreolharam. O homem parecia bem demais, não assemelhava incômodo algum, o que, de certa forma, estava deixando Eileen irritada. Logo se virou para as mulheres de novo. — Srta. Walker e Mitchell, precisamos ficar à sós com ele — enunciou em tom mais sério.

— O que? — Sara se exaltou involuntariamente. — Eu sou a mãe dele, eu que respondo por ele.

— Sim, sim, mas estamos falando de uma investigação policial e sua presença pode atrapalhar. Preciso construir uma relação amigável para que ele me conte tudo e, talvez, sua presença o intimide.

— Bem, eu posso passar segurança para ele. — Insistiu Sara.

— Olha, srta. Walker, ficará tudo bem, lido com casos assim há quase vinte anos.

— Certo... — Ela se deu por vencida, andando em direção ao menininho, como o coração apertado. — Querido, se precisar de mim, pode chamar, está bem? — Ele assentiu de maneira despreocupada.

As duas saíram do cômodo e foram escoltadas para outra sala. Sara se encontrava tão nervosa que já roía as unhas, costume do qual já deixou há muito tempo. Mas era inevitável, tantas coisas passavam por sua cabeça. Culpava-se por pensar em culpar seu filho, tentava não seguir por este caminho, todavia era uma tarefa quase impossível, pois quando Eric tinha seis anos, por alguma razão, empurrou, o primo Patrick escada abaixo — provocando-lhe sequelas terríveis. Aquela cena se repetia em sua cabeça como um filme de terror e agora, revestia-se do pesadelo mais obscuro e criativo ao imaginar, Eric empurrando Annabel propositalmente, por qualquer motivo bobo. Gelou por dentro. Encarou Eileen com rabo de olho, como desejava poder voltar no tempo para o ano em que a desgraça não havia afetado seu lar e impedir que seu amado filho fosse semeado de forma tão sórdida. E de repente, Sara já devaneava os tempos em que realmente foram alegres de verdade, nas idas à praia de Chesapeake, seu casamento, o nascimento de Clara, a filha mais velha, tantas coisas.

— Sara — Alguém tocou seu ombro, acordou de repente do seu devaneio. — Você está bem? — inquiriu Eileen, franzindo o cenho.

— Ah, claro — replicou, ainda identificando a realidade. — Acho que me perdi em algum lugar.

— Me sinto da mesma forma — concordou a mulher, seus olhos inchados e vermelhos. Havia chorado tanto que por agora, já não lhe restavam lágrimas. — Ao menos ainda tem seus filhos, um marido, um lar alegre para chamar de seu…

— Tenho? — Sibilou para si mesma.

Mais um longo tempo em silêncio atordoado, até que Eileen falou de novo.

— Queria ser uma mosquinha para saber o que tanto conversam.

— Não acho justo ter que ficar aqui, mereço saber o que se passa com meu filho.

— Policiais e seus protocolos idiotas. — A mulher parou, pensativa. — Mas o que você acha que aconteceu?

— Ah, não sei... — Sara tentou não demonstrar o pânico que sentiu ao ouvir a pergunta. — Parece algo impossível de se imaginar, duas crianças brincando no terraço, é uma coisa que não se passa na nossa cabeça.

— Eu acho que ela foi empurrada — a outra enunciou, convicta.

— Empurrada? — O coração de Sara quase saiu pela boca, ela havia matado a charada e agora faria de tudo para que Eric fosse punido.

— É, talvez tivesse uma terceira criança, maior e mais forte ou... — Ela deixou a segunda alternativa pairando no ar, como se soubesse que falar em voz alta, soaria como uma lamentação inconformada.

— Ele não faria isso. — Sim, faria e essa certeza a alastrava de culpa. — Ela pode ter tropeçado. — Encarou o chão, envergonhada.

— É, pode ser — Eileen respondeu, encerrando o assunto, porém, mantendo-o instigado em sua mente. Qualquer possibilidade lhe era palpável.

O tempo passou devagar e, após uma espera perene, alguém bateu na porta. Era Sturridge junto com o menino, convocando Eileen para uma conversa. A mulher se levantou, estranhando tal fato, e deixou Sara com a mesma dúvida.

— Como foi lá? — indagou, aflita.

— Foi legal — Eric respondeu tranquilo. — Eles me deram um vale para tomar chocolate quente.

— Querido, você pode me contar o que aconteceu?

— Depois iremos tomar chocolate quente? — Ele devolveu a pergunta, agitado.

— Claro — Ela falou de maneira exausta.

Quando Sara notou a natureza perversa de Eric, considerou um novo método de criação, diferentemente de Clara, que consistia em lições, como se fosse um dever de casa diário.

Lição 1: Amar seu próximo.

Lição 2: Ser gentil.

Lição 3: Não machuque seus amigos.

Lição 4: Não maltrate animais.

Lição 5: Não minta para mamãe ou para seus amados.

Era como a tábua dos dez mandamentos, feitos para mantê-lo na linha, o que era muito laborioso. No momento em que conheceu Annabel Mitchell, viu a oportunidade de orientá-lo a cultivar uma amizade, pôr-se no lugar do outro e praticar o amor mútuo. Agora ela estava morta, não sabia se ele havia guardado o aprendizado ou se fez tudo ao contrário somente para provocá-la.

— O senhor Sturridge e a doutora Blossom querem conversar com você depois — proferiu, despreocupado, ocasionando uma avalanche de medo em sua mãe.

"Com certeza ele a empurrou e disse tudo, tudinho para o detetive, só para ganhar prêmios'', pensou, estava tão perdida.

— Diga que não a empurrou, como fez com seu primo. — Sua voz saiu engasgada.

— Eu não fiz nada, mamãe. — Ele pausou, aparentando mágoa pelas palavras. — Ela se jogou. — Revelou após um minuto de suspense.

— O que? — Sara se levantou, andando de um lado para o outro, sua cabeça pesou de perturbação. — Como assim se jogou?

— Ela era louca, se jogou porque enlouqueceu. — A mulher não compreendia o porquê de estar tão calmo, a notícia soou em seus ouvidos como a trombeta do apocalipse, aproximou-se dele, tocando seus ombros.

— Não está inventando esta história, está? — sacudiu seus ombros.

— Não, mamãe — retorquiu, finalmente apreensivo. — Eu juro, não fiz nada, por que não acredita em mim?

Sara olhou para seus olhos, aqueles que eram insuportáveis demais para serem encaradas sem trazer más lembranças. Os pequenos coágulos de lágrimas se esforçando para saírem, tentando fingir medo e desespero e ainda sim, não entendia por que não conseguia acreditar nele.

— Tudo bem, desculpa. — Ela o abraçou, punindo-se, voltando para sua zona de conforto, a culpa. — Eu acredito em você.

A mulher ficou a última hora escutando a história mirabolante do seu filho sobre Annabel e suas alucinações, o homem de capuz negro que a carregaria para a sombra, os dias em que ficava sozinha em seu quarto e chorava de medo, como Eileen achava que fazer xixi na cama era uma birra para não ir ao banheiro, quando, na verdade, eram as visões quebrando sua sanidade pouco a pouco.

— Eu tentei, mamãe, mas meu braço doeu e não consegui mais segurar ela — concluiu, sem preocupação.

— Entendo, querido. — Sua mãe falou, tentando digerir tanta informação. A cabeça dolorida só desejava dormir e esquecer tudo aquilo.

— Quando vamos embora? — Ele indagou, impaciente.

Sara encarou o relógio redondo acima da porta de entrada, passava das 17h00, engraçado, parecia estar a mais tempo naquele martírio, viu-se admirada com o ponteiro dos segundos, girando e girando, impulsionando a engrenagem dos minutos que, em breve, bateria no maior e dali a pouco seriam 18h00. Imaginou as agulhas andando ao contrário e, mais uma vez, quis com todas as suas forças voltar no tempo, agora, para salvar Annabel, a história da sua morte ia e vinha na sua mente, latejando, terminando e recomeçando. Depois ponderava se não era tudo invenção de Eric, "se ele empurrou um, pode empurrar outro".

— Mãe — A voz do garoto soou longe em seus ouvidos. — Mãe?

— Sim, querido? — Ela balançou a cabeça, confusa.

— Eu quero ir embora, estou com tédio.

— Daqui a pouco, filho — respondeu de maneira sucinta. — Por que não lê um livro? Acho que botei dois na sua mochila — sugeriu.

— Não quero ler.

— Seu cubo mágico também está aí.

— Não — rebateu ele, revirando os olhos.

— Então não faça nada até a hora de irmos embora. — Ela enunciou em um tom impaciente.

O relógio bateu 18h00 e, por fim, Sturridge convocou Sara para uma conversa. Já não suportava mais esperar, Eric ficou novamente sob os cuidados de Henderson. Os corredores se encontravam ainda mais obscuros, vazios, não havia mais curiosos, nem mesmo tantos professores à espreita, encontrou com Eileen perto da sala, notou certa perturbação em seus olhos, será que a conversa lhe feito bem?

— Eileen — enunciou mais alto que o necessário, ela a encarou de forma estranha, como se houvessem espinhos em Sara. — Me espera, eu vou te levar para casa.

— Não precisa, eu vou indo — respondeu, mantendo distância da outra.

— Mas eu quero te ajudar... — Sara não sabia por que ainda lutava para se redimir.

— Está tudo bem. — Ela parou, pensativa. — Não estou doente. — Aproximou-se dela e sussurrou: — Como seu filho disse que Annabel era.

Eileen saiu, deixando-a com palavras presas na garganta, obviamente não havia acreditado na versão que lhe contaram e não aceitaria, de forma alguma, que sua filha possuía algum problema mental, afinal, sempre fora mãe ausente. A dor em sua cabeça ficou ainda mais aguda.

— Srta. Walker — Louis apareceu atrás dela como um fantasma. — Vamos?

— Claro — replicou, desconsertada.

Ao chegar no lugar, ajeitou-se na cadeira que ocupava os lugar dos pais na diretoria e Sturridge. Sentou-se à sua frente, no que seria a posição da diretora, Dra. Blossom localizava-se ao lado dele. O clima daquela sala era bem diferente do demais, mais tranquilo, sem perguntas pairando no ar e olhares curiosos demais, estava claro que queria deixá-la à vontade.

— Então — pronunciou Sara, empenhando-se para esconder a tensão e a dor que afetavam sua cabeça.

— Suponho que seu filho tenha lhe contado toda a história — Louis proferiu, mantendo o tom calmo.

— Sim. — Ela abaixou os olhos.

— Eu conversei com a srta. Mitchell e ela afirmou que Annabel não apresentava nenhum tipo de problema, vou fazer as mesmas perguntas que fiz à ela, tudo bem? — O homem colocou os óculos, remexendo uma papelada.

— Olha, ele pode ser muito criativo, às vezes, mas não é mentiroso. — Sara atropelou as palavras. — Não importa o que Eileen tenha dito, meu filho sempre ficou aos meus cuidados, ao contrário de Annabel. Como ela poderia saber que algo estava errado se quase nunca esteve presente? — Falou de maneira precipitada.

— Srta. Walker, precisa se acalmar, quer um copo d'água?

— Desculpa. — Ela passou os dedos sobre a testa.

— Certo, podemos começar?

Assim Louis passou as palavras para dra. Blossom que fez perguntas referentes ao comportamento, humor, jeito de falar, agir e psique do menino. Sara respondeu a todas as perguntas de maneira objetiva, com clareza e se esforçando para manter a tranquilidade. Foi inevitável não meter Eileen no meio, por ora dizia que era mãe solteira, não obstante, ausente e deixava a criança sob os cuidados de uma garota de dezesseis anos.

— Estamos fora de problemas, não é? — inquiriu, sem transparecer a dúvida amarga de que tudo ficaria bem e voltaria ao normal.

— Claro, srta. Walker. — Ele sorriu. — Quem terá de enfrentar uma grande batalha é Ambrose Johnson e toda a instituição, o testemunho do seu filho será muito importante para o término da investigação.

— Certo. — Sara respirou aliviada, a dor esmagadora até lhe deu um pouco de sossego.

— Terminamos por aqui, srta. Walker. — Ele estendeu a mão direita para um aperto. — Até mais.

— Tudo bem, obrigada. — Ela se levantou. — Até mais, srta. Blossom. — Acenou para mulher.

Um peso saiu de sua costas. No entanto, a sensação de que havia algo errado perdurava como um fantasma no seu consciente. Talvez fosse o luto ou tristeza, com certeza Eileen estava magoada, precisava consertar isso, precisava dar todo apoio necessário à ela. Encontrou com Eric, disse um adeus cortês aos professores restantes e foram embora. Naquele momento só queria encontrar sua cama e dormir até que aquele dia não passasse de um sonho ruim.

Deu-se início a pior semana da sua vida, o dia seguinte ao ocorrido foi atribulado por jornalistas na sua porta e no telefone. Todos queriam falar com Eric, ouvir da sua boca infantil o grande depoimento, um furo jornalístico, sobre o caso que já repercutia como um vírus, o pior, em escala nacional. Eileen Mitchell já havia colocado a boca no trombone logo cedo, clamando por justiça, salientava que Ambrose Johnson fora a culpada, todavia, deixou escapar o nome da criança que esteve junto com sua filha. Sara agradeceu a Deus por ela não ter dito nada sobre empurrões ou distúrbios mentais, ainda sim, amaldiçoou-a por ter possibilitado todos aqueles urubus em sua porta.

Não sabia como passaria pela rua sem ser abordada. O velório de Annabel seria daqui algumas horas, no ginásio da escola, eles ofereceram arcar com os custos, porém, para Eileen ainda não era o suficiente, nada parecia pagar todo aquele sofrimento. Sara havia falado com ela pelo telefone e ouviu-a se desculpar por ter sido grosseira, convidando-a para o velório que aconteceria às 14h30.

Passava das 14h00 quando Sara chegou junto de Eric e Clara ao colégio. Atravessaram o pátio até o ginásio, o lugar estava razoavelmente cheio, todos os pais, alunos e funcionários se encontravam lá, o padre presidiu uma pequena homilia e dali a pouco algumas crianças prestaram homenagens com cantos e textos. O caixão estava no centro, decorado com rosas brancas e vermelhas, as cadeiras pretas em várias fileiras de seis, o som fúnebre permeando cada canto, Sara arrepiou-se toda, odiava funerais.

Avistaram Eileen sentada na primeira sequência de cadeiras, havia reservado as outras ao seu lado para família Walker, eles se ajeitaram em silêncio, até que o sermão do padre acabasse e viessem as homenagens. Annabel não era a criança mais conhecida de todas, tanto que só teve um amigo, os outros julgavam-na esquisita, todavia, ainda houveram aqueles quiseram prestar seu devido respeito. Foi muito triste. O sentimento de culpa era mútuo.

Eileen chorou todas as vezes e Sara, faliu em confortá-la, pois as lágrimas e a dor do mesmo modo a corroeu, inclusive Clara estava em prantos. Eric não, permanecia inexorável, olhando impermeável para o caixão, sua mãe daria tudo para derrubar todos aqueles que havia construído à sua volta e tirá-lo do buraco sombrio em que havia se enfiado.

E ainda sim, Sara permanecia no seu martírio interno, desejando que todos aqueles acontecimentos não passassem de um sonho, desejando que Eric não fosse o pequeno monstrinho que aparentava ser, quando deixava sua máscara cair por alguns segundos. Por vezes, sentia pena de si e dele, que tipo de homem viria a se tornar? E logo um pensamento horrível, a imagem do próprio diabo, aquele que semeou o anticristo em seu ventre, Benjamin Walker.

— Sara — balbuciou Eileen. — Eu trouxe o coelhinho dela, o senhor Alfred.

A mulher olhou embaixo do banco, o animal se encontrava dentro de uma casinha de transporte.

— Que graça — comentou, recompondo-se, fitou bem a caixa, alcançando seu fundo vazio. — Mas ele não está aqui.

— O que? — Eileen retirou a caixa do lugar, espantada. — A portinha estava mal fechada, deve estar perdido por aí — lamentou.

— Eu posso procurar o coelho, srta. Mitchell? — Eric se intrometeu.

— Claro. — Ela deu um sorriso apagado.

— Clara, vá com ele. — Orientou Sara.

No momento em que saíram, após um minuto de silêncio, Eileen proferiu:

— Ontem eu passei a noite no quarto de Annabel, olhei cada roupinha e brinquedo dela. — Cessou, pensativa. — Então dei uma olhada na sua pasta de desenhos e... e talvez seja verdade, eu vi aquele homem feio de capuz e todos os seus pesadelos na aquarela. — Fungou. — Mas eu não percebi, sempre preocupada em colocar a comida na mesa. — Enxugou as lágrimas. — Eu deixei a portinhola aberta para o coelhinho escapar.

Sara ergueu o olhar, atônita.

— Por que? — indagou com medo da resposta.

— Eu quero que Eric o encontre e fique com ele. — A outra continuou quieta, esperando o ponto onde iria chegar. — Annabel tinha problemas e por mais invisível que pareça, seu filho também tem. — Sara franziu o cenho. — Escuta, o coelho vai te mostrar e eu espero que esteja atenta, não quero que perca ele, como eu perdi minha filha.

— Certo... — enunciou confusa, Eileen não estava falando coisa com coisa.

— Você ainda não entendeu, Sara. — Ela segurou suas mãos e olhou profundamente em seus olhos. — Aquele é o Senhor Coelho Alfred Segundo, sabe o que aconteceu com o Primeiro? — A mulher fez que não, assustada. — Eric o matou.

— O que está dizendo? — Eileen só poderia estar louca de tristeza.

— Sim — murmurou. — E sabe como eu sei disso? — Fez uma pausa dramática. — Porque Anna me contou e eu não acreditei, e agora aqui está a prova. — Ela retirou uma folha de papel dobrada do bolso.

Ali estava uma gravura em linhas tortas, o que dizia ser a forma de um coelho com um x no olho, a cabeça de um lado e o corpo de outro, separados pelo rabisco vermelho que imitava sangue, justaposto a forma magricela e desajeitada, com um rabisco amarelo sobre a cabeça, contudo um lápis azul bem firme marcando os olhos, as mãos irregulares manchadas de lápis rubro, com os seguintes dizeres em um balão de fala: "Corto-lhe a cabeça".

— Deus — Sara sussurrou, incrédula, digerindo toda aquela informação.

— Eu dei outro coelho à ela, porque achei que o outro havia sumido, apesar de ter me contado a verdade. Está vendo? Não damos créditos à nossas crianças, tudo achamos que é imaginação delas... Se seu filho tiver algum problema, procure por ajuda e esteja ao lado dele.

Aquela conversa soou como um insulto para Sara, ainda difusa, empenhando-se para compreender a razão pela qual Eileen jogou a bomba em seu colo, uma história totalmente sem sentido. Ela respirou fundo. Possivelmente a melancolia mexeu com sua cabeça, mesmo assim, decidiu acatar a conversa.

— Tudo bem — murmurou.

— E olho no coelho — completou Eileen.

Eric encontrou o Senhor Alfred, a mãe de Annabel permitiu que ficasse com ele. Logo partiram para o cemitério e, posteriormente, ao chegar da noite, Sara não conseguia mais tirar da sua mente as palavras de Eileen, ecoavam milhares e milhares de vezes em todas as vezes que tentou sonhar, porém, o resultado foi que não conseguiu pregar os olhos.

"Olho no coelho", passou a semana bisbilhotando as brincadeiras do menino com o animal, até que um dia, fragou-o atirando pedras com um estilingue no bichinho, gritou aterrorizada e o repreendeu como nunca tinha feito antes, contudo, a resposta que escutou foi absolutamente perturbadora: "estava treinando pontaria, mamãe", falou e em seguida acertou o coelho no olho, "estou ficando muito bom nisso, né?". Eric não era bobo, fizera aquilo na frente dela, porque gostava de tentar enlouquecê-la ao quebrar as regras, a maldita lição diária, simplesmente não entendia por que tinha de exercitá-la e Clara não.

Então, numa tarde, Sara procurou em uma grande lista por médicos especialistas em psicologia infantil e encontrou o hospital psiquiátrico Saint Mary, marcando uma consulta com dr. Dunney. Não se sentia segura sobre a decisão que havia tomado, mas, caso seu filho tivesse alguma perturbação, precisava ajudá-lo e estar ao seu lado, antes que uma desgraça maior acontecesse. 

 

 


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