A Hospedeira - Coração Deserto escrita por Laís, Rain


Capítulo 44
Completo


Notas iniciais do capítulo

Today's not the same as everyday
It's far from ordinary
The pain I endure, you're my cure
But my mistakes have led me
Far away from you
(...)
I search my soul
And all these feelings that I can't control
You're the one thing that can make me whole
I did it for you
(I did it for you - David Cook)



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POV – Logan

 

            Um som estranho partiu o silêncio ao meio e eu abri meus olhos, fechados até então para conter tudo o que queria se expandir dentro de mim.

            Não reconheci aquele som, nunca o tinha ouvido, mas meus ouvidos humanos se lembravam dele. Era um choro de bebê.

            — Nasceu! – gritou Mel levantando-se num pulo do chão de pedra onde estivéramos todos sentados, recostados à parede.

Ela avançou alguns passos, mas voltou para trás, insegura. Tínhamos decidido ficar aqui para não atrapalhar e não encher o ambiente com nossa ansiedade, e parecia que ela não tinha certeza de que havia chegado o momento de entrar. Era a primeira vez que eu via Melanie insegura, e isso me fez esquecer de mim mesmo por alguns instantes e olhar aquilo tudo como se eu estivesse de fora. Novas vidas faziam coisas estranhas aos humanos, ao que parecia.

Mas não só a eles.

Sunny começou a chorar, sorrindo ao mesmo tempo depois de soltar um suspiro de alívio. Então Mel se ajoelhou na frente dela e as duas se abraçam. Logo em seguida, Jamie e Jared também se levantaram e Mel partiu para abraçar Jamie, que sorria feito bobo.

— Sou tio!

Jared riu do anúncio e se recostou na parede de braços cruzados enquanto os observava. Depois de um segundo, ele pareceu relaxar ainda mais e cruzou também os tornozelos numa pose descontraída. A expressão de alívio que se desenhava em seu rosto era contagiosa e só então percebi o quanto ele estivera apreensivo.

Kyle e Sunny não se levantaram, apenas ficaram ali abraçados, cochichando entre si e dividindo esperanças não muito secretas.

Apenas Jeb e eu permanecemos impassíveis. Levantei meus olhos para os dele, que estava sentando à minha frente, encostado na parede oposta, e eu soube, não tive certeza de que maneira, que ele estava pensando o mesmo que eu. Talvez porque eu tenha reconhecido em seus olhos que havia muitas coisas se expandindo dentro dele, assim como havia em mim. Talvez eu percebesse que se ele permitisse que qualquer emoção escapasse por sua expressão impassível não ia conseguir contê-las mais. Ao menos era assim que eu me sentia.

Tive certeza de que, como eu, Jeb estava absolutamente ciente do peso da responsabilidade que acabara de cair em nossas costas, que proteger e cuidar de uma criança, ainda mais um bebê, com necessidades urgentes que nem sempre caberiam na vida de fugitivos, mas que certamente se sobrepunham às nossas, seria muito mais complicado do que qualquer um aqui poderia prever.

Acontece que eu podia. E, claro, ele também. Talvez Jared. Mas outra coisa que eu sabia era que nenhum de nós se importava. Estávamos acostumados a desafios. Gostávamos deles. E aquele pequeno ser capaz de unir nossas espécies era um desafio à altura de nossas forças, à altura de nosso amor por ele.

Vi os cantos dos lábios de Jeb traírem sua seriedade e percebi que, novamente, eu tinha razão. O olhar que ele me lançou era o de quem aceitava o desafio também. Então eu sorri de volta e me surpreendi com o quanto foi difícil controlar minha expressão depois disso. A felicidade que se instalara em mim não queria ceder à seriedade a que eu vinha me obrigando.

John parou de chorar e incontáveis minutos se passaram até que Estrela saísse do hospital com o rosto tomado por uma comoção que ameaçou me estilhaçar. Ela disse que Peg e John estavam bem e que já podíamos entrar para vê-los. Depois veio direto para mim e se perdeu em meus braços.

Todos entraram, mas continuamos assim, abraçados. Não sei por quanto tempo permanecemos congelados naquele gesto. Nem por que eu precisava tanto daquilo. Mas senti algo inteiramente novo acontecendo comigo. Um sentimento desconhecido que fazia meu coração se expandir de maneira tão irreversível que chegava a me assustar.

John não era mais apenas uma promessa, sua existência era agora inegável e gritava para mim, transformando tudo ao meu redor e enchendo a todos daquela alegria inexplicável, daquela esperança irresponsável de que juntos, Almas e humanos, éramos mais fortes, de que éramos melhores.

Senti cada pedaço de mim se transformando e tudo o que fui, tudo em que um dia acreditei se destruiu e se restaurou mais uma vez, reconfigurando meu ser no processo quase violento que começou quando me perdi pela primeira vez nos olhos de Estrela. Quando a amei, mesmo sem saber ainda, pela coragem com que ela protegia esse bebê. Seu filho. O filho de Peg. Nosso filho também.

Desde então eu tinha vivido muitas coisas, tinha sentido meu mundo sair da órbita e voltar para ela mais cheio de vida, mais cheio de amor. Tinha me tornado um ser diferente, melhor. Ainda assim, eu não encontrava referências em minhas lembranças, nem mesmo nas mais recentes, para entender o que estava sentindo naquele momento. Era tão intenso que a coisa mais próxima com que consegui comparar foi com a dor que tantas vezes senti.

Eu entendia felicidade. Antes não, mas entendia agora. Porém alegria...  Será que era isso o que eu sentia? A mesma alegria que vi estampada no rosto de Mel, por exemplo? Era esse o sentimento que fazia meus olhos arderem como se eu estivesse sofrendo?

Nunca deixei de me surpreender com o jeito como as pontas do espectro dos sentimentos humanos, com tanta frequência, se tocavam e se fechavam em torno de nós num abraço firme e doloroso, desse jeito estranho que fazia um coração pleno de alegria arder e se apertar como um coração ferido.

— Como você está? – perguntei a Estrela, hesitante.

— De um jeito que nem consigo entender – ela respondeu e então eu percebi. Subitamente entendi porque precisava tanto senti-la em meus braços naquele momento, mais ainda do que preciso sempre. Porque ela me entendia, me completava. Porque juntos éramos uma coisa inteiramente nova. – Você consegue imaginar como vai ser quando for a nossa vez?

— Não – respondi, enterrando meu rosto em seus cabelos. – Não entendo esses sentimentos ainda.

— São confusos, não é?

— Sim, mas eu acho que me sinto... bem!

Estrela riu e eu também. Nosso próprio bebê era ainda uma realidade imaterial demais para conseguirmos precisar como nos sentiríamos quando ele estivesse aqui, mas agora tínhamos uma amostra. E baseado em como nos sentíamos agora, seria algo além de qualquer expectativa.

Ian apareceu à porta. Seus olhos estavam mais azuis do que de costume e, assim como seu rosto, vermelhos e meio inchados. Ainda assim, um sorriso amplo quase partia seu rosto ao meio e parecia óbvio que, mesmo se quisesse, ele não poderia fazer nada para evitá-lo. Ele parecia cansado e aliviado ao mesmo tempo, como alguém que passou por uma tempestade de areia e saiu ileso dela. Ou quase. Ele parecia por fora como eu me sentia por dentro.

— Peg está perguntando por vocês – disse, e Estrela e eu nos separamos e caminhamos na direção dele, que se virara para entrar no hospital novamente.

— Ei, Ian? – chamei e ele se virou para mim. Estrela também se virou por um segundo, mas sorriu e continuou andando, passando por ele e nos deixando sozinhos. – Como... – hesitei, pois não sabia bem o que queria perguntar. Então me decidi pela pergunta mais simples, mas que resumia tudo — Como é ser pai?

Ian suspirou e balançou a cabeça de um jeito infinitesimal, quase imperceptível, como se estivesse forçando seu cérebro a processar algo inacreditável. Ele pensou por um segundo com os lábios apertados e a testa minimamente franzida.

— Você vai sentir tudo... quase de uma vez. Medo, ansiedade... uma confusão dos diabos! E então você vai sentir um amor que vai ameaçar te partir ao meio. Mas, cara, você vai adorar!  E isso ainda é só o começo!

Não soube o que dizer, então apenas sorri um pouco para ele. Então seguimos os dois para dentro do hospital e nos deparamos com todos em volta da maca onde Peg estava sentada com John nos braços.

Por entre os corpos dos outros, os olhos dela encontraram os meus e ela sorriu. Estava linda. Assim como o de Ian, seu rosto carregava as revoluções das últimas horas, mas isso só a deixava mais bonita.

Essa hospedeira que amei e para a qual tive que redescobrir meu olhar, estava resplandecente. Era possível vislumbrar as eras por trás de seu rosto jovem e mesmo assim ela nunca tinha parecido tão humana. Na verdade, ela parecia exatamente o que era, o ponto de colisão entre dois mundos, o ponto de encontro entre duas espécies. De alguma forma, era possível sentir que o que essa Alma, o que essa Mulher iniciara iria mudar tudo.

Soube disso porque senti uma ternura indescritível por ela quando a vi ali, em meio aos humanos e às Almas que eu amava. Soube porque, diferentemente de tudo o que tenho sentido até agora, não havia nada de contraditório no que senti por ela naquele momento. Tudo o que eu tinha, tudo o que amava, devia a ela. Àquela moça que parecia tão frágil, mas que era o centro deste mundo novo que me fazia descobrir coisas como felicidade, alegria, medo... Amor.

Fiquei ali parado, olhando para ela e Kyle começou a rir. Ele parecia um pitbull brincando com seu bichinho de pelúcia, aquele que fica escondido no fundo do canil para quando ninguém está olhando. Não que ele não tivesse essa expressão tonta na cara sempre, mas naquela hora nem estava preocupado em disfarçar.

— Ei, otário! Venha até aqui. Ou vai ficar esperando o moleque sair andando até você? – ele falou, como sempre, me provocando.

— Logan, você é o único que ainda não disse olá – disse Peg usando comigo aquela voz nova, mais baixa e carinhosa, sua voz de mãe.

Então, no segundo seguinte ela estava entregando aquele embrulhinho branco nas mãos de Estrela. Como ainda assim não me movi, minha mulher veio até mim com John nos braços e eu o vi pela primeira vez na vida.

Assim que isso aconteceu, assim que pousei meus olhos pela primeira vez em seu pequeno rosto, a mistura exata dos traços de Peg e Ian, percebi finalmente a razão pela qual estive adiando o momento. Era porque eu tinha medo daquele bebê. Medo da culpa que eu sentiria por todo sofrimento que causei à sua família, e por tudo de que eu o teria privado com minha intransigência, não fosse pela coragem de Estrela, sua outra mãe, mãe também de meu outro filho que ainda ia chegar. Acima de tudo, medo do poder que ele teria sobre mim, porque eu já o amava antes de conhecê-lo e seria capaz de muitas coisas por seu bem, mas agora ele me tinha em suas pequenas mãos.

Não, ele não era meu filho, mas eu pertenceria a ele, de alguma forma.

Entretanto, quando olhei em seus olhos, percebi que todos esses receios não passavam de imensas tolices. Não consegui sentir nada tão negativo quando estava na presença dele. Como poderia sentir culpa? E quanto a amá-lo demais e ao poder que isso daria a ele... Bem, só me restava esperar que ele demorasse muito tempo para perceber.

Por ora, tudo o que eu conseguia fazer era observá-lo. Ele era claro como neve e havia uma pelugem loira sobre sua cabeça grande demais para o resto do corpo. Fomos ensinados que o os seres humanos são biologicamente programados, assim como outros mamíferos, a nascer com essa aparência frágil, com esses olhos grandes... É a única defesa que eles têm, os filhotes... Acionar todos os nossos instintos protetores. E eu tinha muitos.

Por isso fui presa imediata daqueles imensos olhos azuis, daquele jeito impreciso de mover os bracinhos e do jeito como ele agarrou o meu dedo com força quando toquei sua mãozinha minúscula. A pele dele era a coisa mais macia que eu já tinha tocado e ele tinha essa aparência irresistível que a biologia o programou para ter, mas também tinha algo a mais. Aquilo que Peg iniciou, a junção de nossos mundos. Era isso o que ele era.

— Eu nunca vi um bebê antes. – Foi a única coisa que consegui dizer, e devo ter feito isso com uma expressão estupefata – ou estúpida – no rosto, porque todos riram de mim.

— E nós achamos que jamais veríamos um desses novamente – disse Jeb.

— Bom, parece que não fizemos nada além de estar errados nos últimos tempos – respondi.

Mais uma vez rimos, mas outros já estavam chegando para conhecer John e o lugar foi ficando lotado e barulhento. Levei-o de volta para Peg, porque ele estava prestes a começar a chorar por causa da agitação. Fui mais uma vez tomado pelo instinto incontrolável de protegê-lo e me senti pronto a expulsar todos dali para que não o perturbassem, mas me policiei a tempo.

John soltou uns chiados e ensaiou um choro quase sentido, mas foi voltando ao normal à medida que Peg o aconchegou em seus braços. Meu coração se expandiu mais um pouco e pareceu querer partir de meu peito. Era tão bom que quase chegava a doer. Mas achei que podia me acostumar.

**********

Dizem que o tempo passa depressa quando se está feliz. Acho que é verdade. John já tinha duas semanas e todos se desdobravam na competição de quem o mimava mais.

Estrela e eu éramos provavelmente os campeões e Jeb brincava dizendo que temia pela educação de nosso próprio filho se continuássemos assim. Ele gostava de dizer que eu perdi a pose, e que um homenzinho menor do que meu braço foi capaz de me derrubar. Invariavelmente, eu respondia que nunca fiz pose, então não podia tê-la perdido. Mas era uma resposta vaga e ele sabia bem disso.

Acabei me sentindo um pouco menos tonto quando o flagrei perguntando a John com uma bizarra vozinha fina “quem era o patinho preferido do vovô ganso”. Ele achava que ninguém o via brincando desse jeito, mas eu via tudo. Só achei melhor guardar essa informação para me vingar dele na hora certa. Sim, eu podia ter me tornado um babão, mas não fiquei idiota e ainda podia ser um sujeito bem calculista e obstinado.

E por falar em obstinação, meu próprio filho estava resolvido a não nos deixar saber se era menino ou menina. Há três semanas, Doc tentava fazer o ultrassom, mas ele ou ela ficava sempre numa posição que não nos permitia enxergar o... necessário.

Estrela poderia ir fazer um exame mais avançado numa Instalação de Cura e em poucas horas teríamos o resultado, mas ela já não queria sair daqui quando o nascimento de John era iminente e agora menos ainda. Eu também não queria, então fomos adiando a descoberta e vez ou outra tentávamos de novo para ver se o bebê se mexia o suficiente. Mas acontece que teimosia era um traço que parecia correr na família, genética ou não.

Hoje resolvemos tentar novamente e ali estava eu, olhando para a tela sem entender nada, dizendo para mim mesmo que eu devia ter algum problema porque não conseguia diferenciar um bebê de uma batata naquela imagem estranha, quando Doc sorriu e mostrou algo na tela a Estrela. O rosto dela se iluminou quando se virou para mim:

— É o que você queria, papai.


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Notas finais do capítulo

Capítulo dedicado a Luddy, responsável por nossa recomendação número 23(!) e por algumas das mais deliciosas reviews que se pode receber.

Olá, corações!

Eu disse que não pediria mais desculpas pelos atrasos, já que eu estava certa de que vocês sabiam de meu esforço para postar o mais rápido possível. Dessa vez não foi diferente, mas mesmo assim acho que devo desculpas a vocês pela demora. Sei que extrapolei. É que eu realmente estou bem sem tempo e meu cérebro também não colaborou. Ele estava se recusando a terminar Coração Deserto! Mas a verdade é que chegamos ao fim (sniff, sniff!) e antes de vocês me matarem por eu terminar a história assim tão em suspenso, vão dar uma espiadinha no Epílogo e também aguardem por flashbacks esclarecedores na segunda temporada.
Beijos já cheios de saudade.