A Hospedeira - Coração Deserto escrita por Laís, Rain


Capítulo 43
Bem-vindo


Notas iniciais do capítulo

Welcome to the planet
Welcome to existence
Everyone's here
Everyone's here

Everybody's watching you now
Everybody waits for you now
What happens next?
What happens next?

(Dare you to move - Switchfoot)



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POV – Ian

 

— Olá, querido – disse ela, levantando os olhos para mim e pousando um livro aberto sobre seus joelhos.

— Oi – respondi depois de um tempo relativamente longo, em que meu consciente e meu inconsciente debatiam sobre a lógica de ela estar ali.

O veredicto, antes que eu pudesse articular qualquer palavra, foi “Quem se importa com a droga da lógica?” Em algum nível, eu sabia que se me rendesse a ela, a essa inútil e estúpida necessidade de racionalizar, teria também que lidar com a dor incapacitante que viria da consciência de que aquilo não era real.

E ao vê-la ali, tão linda sentada na pequena poltrona azul que Estrela e Sunny tinham escolhido para Peg, a decisão era tão fácil!

Não havia dor alguma, nenhuma acusação ou a angústia paralisante que sempre tive de perdê-la antes que de fato acontecesse. Tudo isso era passado e tudo o que eu sentia agora era um delicioso torpor que me convidava a esquecer todo o resto. Especialmente quando sua voz suave e delicada preencheu o ar.

— Como foi seu dia?

— Normal – respondi, porque subitamente eu era de novo o garoto tímido, fechado e ligeiramente mal-humorado que só ela sabia ao certo como amar.

— Não acredito em você — ela disse, como sempre. – Você é...

— Inteligente e sensível demais para não perceber que os dias são todos especiais? – falei, reproduzindo a resposta que ela sempre me dava.

— Sim – disse ela, sorrindo e colocando uma mecha de seu cabelo escuro atrás da orelha, o gesto que ela sempre repetia quando tinha sido pega em “flagrante” em um de seus “planos”. – Você se lembra – falou, levantando os olhos novamente para mim.

   Ela tinha os olhos mais azuis que eu já tinha visto e não houve um só dia, mesmo no fim, em que eu não a achasse linda como um anjo na Terra. O nome dela era Alice. E ela era minha mãe.

— Eu me lembro de tudo – falei. – Além do mais, você sempre diz isso.

— E desse jeito sempre consigo que você me conte alguma coisa boa sobre seu dia.

Suspirei, porque não havia como discutir que seus “planos” sempre davam certo comigo. Andei até ela e me sentei no chão diante da poltrona, encolhendo-me para deitar a cabeça em seu colo e deixar que ela me fizesse cafuné.

— Foi um bom dia, mãe.

— Fechado como uma ostra! Você realmente não mudou nada. – Ela riu e eu também. Nunca precisei realmente dizer as coisas para ela. Ela sempre soube.

— Tem sido dias bons demais para que você e o pai não estivessem aqui – falei, abrindo uma brecha perigosa para a realidade entrar. Talvez eu não devesse ter feito isso, porque me senti imediatamente triste, mas não consigo me conter quando ela brinca assim com meus dedos, o polegar fazendo círculos nas costas de minha mão, como meu pai costumava fazer quando eu era criança.

— Ah, mas nós estamos. O tempo todo, na verdade. Seu pai está livre agora, sabia? Não demorou muito pra ele.

Então não foi difícil para meu pai. Era bom saber disso. Depois da chegada de Peg, movida pelas lembranças e emoções de Melanie, eu passei a me perguntar sobre isso. Sobre a Alma que tinha ficado no lugar dele. Se eles tinham convivido por um tempo, ou se ele tinha partido logo. E para onde. Eu pensava também na Alma, naquele que, por razões óbvias, eu não conseguia mais odiar. Será que ele tinha sofrido com nossa partida? Sentido nossa falta depois de nossa fuga?

Decidi que não queria pensar nisso. Talvez estivesse amanhecendo, porque eu parecia estar despertando para pensamentos que eu não queria que adentrassem meu sonho. Eu só queria poder ficar mais um pouco aqui.

Podia não fazer sentido, em algum lugar da minha mente eu sabia que isso era um sonho e que essas respostas eram apenas os meus desejos se manifestando. Mas era incrivelmente tentador acreditar que eles estavam bem. E embora minha mente estivesse se tornando perigosamente consciente, provavelmente alerta demais para sustentar aquele sonho por muito mais tempo, estava bom o suficiente aqui para que eu não tivesse nenhum escrúpulo de expulsar pensamentos racionais ou tristes.

Era só um sonho, pelo amor de Deus! Será que minha maldita mente não podia descansar um pouco e aproveitar a viagem?

Ironicamente, tomei a decisão consciente de desviar o rumo perigoso daqueles pensamentos e deixar que meu inconsciente mergulhasse novamente no torpor da presença dela.

— Vocês são como fantasmas ou algo assim? – perguntei, fazendo com que um sorriso brotasse nos olhos dela novamente, me puxando direto de volta para os braços de minha imaginação.

— Não sei, querido. O sonho é seu. Acho que você pode nos chamar do que quiser.

— Acho que prefiro continuar pensando em você só como minha mãe. Vamos deixar de lado a ideia dos fantasmas perseguidores. — Ela riu de novo e eu percebi que nunca tinha realmente esquecido do som. Foi bom e eu quis que ela risse mais uma vez. – Além do mais, isso de estar sempre com a gente me dá pena de vocês. Ficar ao lado do Kyle o tempo inteiro é cansativo.

Mais uma vez ela riu, gargalhando daquele jeito que eu reconheceria à distância.

— Vocês são mais parecidos do que você gosta de admitir! – ela rebateu, ainda se divertindo com a brincadeira, os restos de um sorriso se alargando em seu rosto diante de minha expressão de falsa indignação. – E ainda assim tão diferentes! São como dois lados da mesma história.

Achei a comparação estranha. Às vezes conversar com minha mãe era um pouco parecido com cantar. Se você acompanha a música, as palavras fluem livres e profundas como um rio, mas se você para pra pensar a respeito, acaba errando a letra.

— E que história seria essa, mãe?

— Ora, meu filho! Todas as histórias possíveis. Vocês eram o começo e o fim de qualquer história que eu e seu pai imaginássemos para nós. Logo você vai saber disso também. E ela ainda mais do que você — continuou, apontando para Peg que dormia placidamente em nossa cama. – Ela já viveu tanto! Já começou e terminou tantas histórias! Mas nenhuma será como esta.

— Minha pequena Alma Peregrina! – exclamei, sentindo meus sentidos sendo lentamente puxados para ela.

“Ian!”

Ouvi sua voz chamar, mas seus olhos ainda me pareciam fechados.

            — Peregrina – disse minha mãe, devagar como se pensasse a respeito de cada sílaba. – É um nome diferente, como um nome estrangeiro. De onde ela é?

Testei minha voz, mas ela pareceu não funcionar. Meu tempo estava acabando e, embora eu não quisesse ir, sentia uma urgência inexplicável de despertar. Levantei minha mão e pousei-a em meu próprio peito, indicando a resposta à sua pergunta.

— É um bom lugar para se pertencer – disse minha mãe sorrindo. Sorri de volta, mas ela não estava mais lá, o som incorpóreo de sua voz tinha acabado de se perder no silêncio quando outra voz, igualmente querida e familiar, me chamou.

— Ian!

Abri meus olhos para o rosto de Peg e percebi que a mão em meu peito era a dela, e que seus pequenos dedos suados pareciam ter estado ali por um longo momento esquentando minha pele. Sorri para ela num gesto quase involuntário e, embora ela sorrisse de volta, seu rosto não parecia o mesmo. Demorei um segundo examinando sua expressão antes de perceber o que havia de diferente. Aquele rosto tão conhecido tinha em si uma emoção totalmente nova.

Havia em seu semblante algo que eu tinha me tornado especialista em detectar, consequência direta do fato de que era uma coisa que ela sempre fazia questão de esconder: dor. O suficiente para que eu me levantasse preocupado e a segurasse pelos ombros, tão ansioso que mal consegui formular a pergunta:

— O que foi?

— Estou bem – ela disse, e olhou para a própria barriga sorrindo. – Mas acho que está na hora. – E quando ela levantou novamente os olhos para mim, lá estava a emoção nova em todo seu esplendor. Quase nova. Eu já a tinha visto uma vez. Foi quando ela voltou para mim. No dia em que acordou para a consciência de que havia uma parte de nós crescendo dentro dela.

— Você tem certeza? Estrela disse que ainda tínhamos uma semana, provavelmente.

— Acho que ele não quis esperar.

— Certo.

“Certo”. Que espécie de resposta é essa? Você acha que é isso o que sua mulher quer ouvir no dia em que seu filho vai sair de dentro dela? Que ótimo momento para esquecer para que serve o cérebro!

Peg girou o corpo devagar, de forma que suas pernas ficassem para fora da cama, então ela calçou seus chinelos e esperou.

Para que, meu Deus, ela está preocupada em calçar chinelos?

Ela continuava ali, sentada impassível, e eu ainda me perguntando sobre a importância de chinelos, quando ela puxou o ar com força e seu rosto ficou vermelho.

— O que é isso? O que aconteceu? – perguntei assustado, de repente me sentindo como se este não fosse meu planeta.

— Uma contração. Mas fique calmo, ainda estão bem espaçadas. Falta bastante tempo.

— Ok.

Porque “ok” é tão melhor do que “certo”! Não é mesmo, seu idiota?

Peg continuava me olhando, uma expectativa quase óbvia em seu rosto, exceto pelo fato de que eu estava ocupado demais dando ordens ao meu cérebro para me fazer inspirar e expirar antes que eu tivesse um aneurisma ao algo assim, então não consegui saber o que ela queria. Segui o olhar dela em busca de uma pista e percebi que estava usando apenas uma bermuda de pijama, então imaginei que ela quisesse que eu me vestisse para que pudéssemos ir ao hospital.

Isso mesmo, gênio. Você está indo bem.

Me pus de pé e comecei a vestir a primeira roupa que encontrei: uma calça de moletom e uma camiseta meio surrada que eu tinha usado na noite anterior. Não era lá grande coisa para se receber alguém no mundo, mas teria que servir, porque em seguida devo ter passado um minuto inteiro olhando para o par de tênis ao lado da cama. Aparentemente, eu tinha me esquecido para que servia aquilo.

— Temos tempo, fique tranquilo. Pode calçar os seus sapatos com calma – disse ela pacientemente. – Eu sei que você está nervoso, Ian. Mas vai ficar tudo bem.

Ela estava tão calma que a serenidade em sua voz só me deixava ainda mais nervoso. Fiquei com vergonha de mim mesmo e, para variar, extremamente orgulhoso dela, mas não consegui dizer nada. Apenas me sentei na cama e me concentrei em decifrar o     “complicado” enigma de como amarrar aqueles cadarços.

Era compreensível que eu estivesse assim, não era? Quer dizer, não é como se Peg estivesse me pedindo para levá-la ao Doc por causa de um resfriado. Seu corpo tão frágil, sempre tão delicado, estava prestes a passar por uma verdadeira revolução e eu sentia tanto medo dessa perspectiva, que tinha vontade de acelerar o tempo para poder protegê-la e livrá-la de qualquer dor.

— Você está bem? – perguntei, parecendo o idiota que eu estava me sentindo.

Claro, mente brilhante! Tem um ser humano prestes a sair de dentro dela, mas ela está bem!

— Estou bem, Ian. Vai dar tudo certo. Para nós três.

“Para nós três.” Para mim também, ela quis dizer. E não era eu que estava nascendo ou dando à luz. Senti-me extremamente envergonhado por ser ela quem estava me tranquilizando e não o contrário. Respirei fundo e deliberadamente ignorei o súbito pânico que o número “três” me causou. Tentei não pensar que a próxima vez em que estivéssemos aqui neste quarto não estaríamos sozinhos, mas sim carregando alguém que dependeria de nós para tudo menos para respirar.

Em vez disso, tentei me lembrar do quanto fiquei feliz quando soube que ele existia, que eu o amava e que logo o teria em meus braços. E foi assim que realmente decidi parar de tremer como uma florzinha e ser o homem que minha mulher e meu filho precisavam.

— Eu posso andar – protestou Peg quando me inclinei sobre ela para tomá-la nos braços.

Ah, Peg! Pelo amor de Deus, agora não!

Armei uma fila de argumentos em minha cabeça para convencê-la a me deixar fazer isso, sendo que o principal era que talvez eu precisasse mais do que ela. Precisava tê-la em meus braços e assumir o controle da situação, como se pudesse protegê-la, embora eu soubesse que naquele momento não podia. Queria dizer tudo isso, mas me limitei a beijá-la, percebendo com embaraço que era a primeira vez que o fazia desde que tinha acordado. Beijei sua boca, suas pálpebras e sua testa. Em seguida, segurei sua mão e a beijei também, para que ela soubesse que é meu mundo inteiro.

— Eu sei que pode – disse e, de alguma maneira, ela entendeu e não protestou mais.

**********

Como sempre, o contato com o corpo dela e a sensação de estar protegendo Peregrina me acalmou. De repente, eu não era mais aquela imitação confusa e trêmula de mim mesmo, mas um pai prestes a ver os olhos de seu filho pela primeira vez.

Depois de segurá-la firme e tranquilizá-la durante uma nova contração, percebendo com orgulho e assombro que a ver com dor não me assustava mais – tanto – parei em frente ao quarto de Estrela e bati na porta. Logan surgiu, afastando a porta de madeira com uma cara amarrotada de poucos amigos, mas quando olhou para Peg em meus braços sua expressão irritada deu lugar à alegria e à expectativa. Eu nem precisei dizer nada.

Ele levantou a mão e a pousou nos cabelos de Peg, pedindo permissão com os olhos para lhe fazer um carinho fraternal. Achei engraçado o cuidado que ele sempre tinha para não me irritar ou ultrapassar os limites que ele achava que eu tinha imposto entre ele e Peg. Acho que fazia isso para deixar bem claro que os mesmos limites valiam para mim e para Estrela. Tudo bem por mim, mas não era como se eu estivesse com cabeça para pensar naquilo naquele momento. Deixei que ele a acariciasse e os dois tiveram uma conversa muda, bem ao estilo deles. E então o “momento irmãozinhos” acabou e ele voltou ao modo prático.

— Vou acordar Estrela. Doc dormiu no hospital, parece que ele e Sharon brigaram de novo – disse Logan, fazendo uma cara de desagrado e nojo ao dizer o nome dela. – Então ele já pode ir adiantando as coisas enquanto Estrela se arruma. Depois vou chamar a Candy.

— Obrigado – respondi simples e sinceramente e, de repente, me senti mais próximo do que nunca daquele que uma vez já foi o único ser que odiei de verdade nesta vida.

Bem, as coisas mudam. A Alma grávida em meus braços é a maior prova disso.

Olhei bem para ele e sorri, sabendo que logo estaria dividindo minha felicidade com meu ex-inimigo. Então percebi com espanto que mal podia esperar por isso. Virei as costas e me dirigi ao hospital, apertando Peg em meu peito e balançando a cabeça para mim mesmo com um sorriso tonto nos lábios.

**********

Doc estava mesmo no hospital e num instante ele estava munido de todos os frascos e aparelhos alienígenas que deviam existir. Embora eu nunca tivesse visto o interior de uma, tive a impressão de que ele estivera guardando uma Instalação de Cura inteira em suas caixas.

— Como está se sentindo, querida? – perguntou ele.

— Estou com um pouco de dor de cabeça, mas fora isso estou bem. As contrações ainda estão bem leves.

— Vou fazer alguns exames em você, ok? Quero que fique calma e tente relaxar. E você também, Ian. Se for parto normal, isso ainda vai demorar.

Se for parto normal, Doc? Você se lembra do que discutimos? Quero tentar fazer as coisas do jeito humano, quero estar acordada quando ele nascer – protestou Peg.

— Eu sei, querida. Mas com a tecnologia de vocês não há sentido para que você sinta dor, não há riscos de infecção ou nenhuma complicação no pós-operatório, você sabe disso. Podemos borrifar o Acordar em você assim que o corte estiver fechado e você verá seu filho poucos minutos depois dele nascer.

— Não sei, Doc. Eu queria estar acordada.

— Por favor, Peg. Não seja teimosa – disse eu, quando Doc fez uma cara preocupada. – Faça isso por mim, não quero ver você passando dor se não for preciso.

— A única vantagem do parto normal agora — continuou Doc —, além de você poder ficar acordada, é que internamente seu corpo se reajustaria mais depressa. Mesmo com a tecnologia de vocês, um procedimento cirúrgico ainda é algo estranho à natureza do corpo, mas John cresceu muito nas últimas semanas. Não acho mais que o parto normal seja a melhor decisão para nós.

— Acha que posso colocá-lo em risco se insistir? – perguntou Peg.

— Não só ele, mas você também. Acabei de descobrir a causa da sua dor de cabeça, sua pressão está muito alta.

— O quê? – disse Estrela, chegando com Candy em seu encalço. – Doc, como não vimos isso antes?

— Não sei, Estrela. Ela estava bem, nunca apresentou nenhum sinal de pré-eclampsia. Mas agora estou preocupado.

— Esperem um pouco, vocês estão dizendo que Peg corre risco de vida? – questionei, sentindo-me como se estivesse fora do ar, como se estivesse assistindo àquilo tudo de longe.

— Sim, Ian. Eu não sou obstetra, sou clínico geral, e nem Estrela nem Candy tem alguma experiência com gestantes em suas lembranças, mas não vou “dourar a pílula” para vocês, a subida da pressão sanguínea é bastante preocupante.

— E não tem aí, nesses milhões de frascos, algo para abaixar a pressão dela?

— Felizmente sim, mas de qualquer forma não gostaria de arriscar um parto normal, especialmente com um bebê tão grande.

— A decisão está tomada então – decretei olhando para Peg e, pela primeira vez em muito tempo, assumindo uma postura intransigente diante dela.

— Tudo bem. Acho que já passamos mesmo do ponto em que uma discussão faria sentido. Podem me pôr para dormir, mas, por favor, eu quero acordar logo.

Eu me abaixei e a beijei agradecido. Seu rosto estava vermelho, não sei se afogueado pela aflição ou por todas as outras emoções que eu sabia que se passavam dentro dela.

— Obrigado – eu disse e ela sorriu um pouquinho, sua expressão parecendo relaxar. – Por tudo – completei antes de lhe dar a chance de pensar que eu a agradecia apenas por ceder ao meu apelo.

— Está mais perto do que nunca agora – ela murmurou. – Quando eu acordar já seremos três.

— Não, meu amor. Seremos um só, mais uma vez – disse eu, colocando minha mão em seu rosto tão pequeno que quase cabia na extensão de minha palma e enlaçando meus dedos na raiz de seus cabelos. – E as outras partes de você estarão aqui te esperando acordar. Durma em paz.

— Logan foi buscar Mel, Jared, Sunny e Kyle – disse Estrela se aproximando e colocando algo embaixo da língua de Peg. – Isso é para controlar sua pressão... Jeb e Jamie tinham pedido para serem avisados também, então provavelmente estão todos lá fora. Logo que o dia amanhecer de verdade, mais gente virá. Estão aqui por você, minha querida. Você pode dormir em paz, como Ian disse.

— Você foi a primeira mãe que meu filho teve, minha irmã. Fico feliz que o seu seja o primeiro rosto que ele vai ver. – Então ela se virou para mim e me fez a promessa mais doce que podia haver, aquela que não pôde fazer das duas outras vezes em que seus olhos se fecharam para mim. — Até logo, Ian. Eu te amo.

— Eu também te amo, meu sol peregrino. Peregrine logo de volta para mim.

Então Candy borrifou algo na frente do rosto de Peg e ela adormeceu sorrindo. Quanto a mim, devo ter entrado numa espécie de transe, pois mal me lembro do que aconteceu a seguir. Lembro-me apenas de ficar ali, com algo zumbindo em meus ouvidos, algo parecido com o som longínquo de vozes que decidiam a minha vida.

Embora Peg estivesse dormindo eu fiquei segurando sua mão, talvez porque fossem aqueles pequenos dedos que me segurassem à Terra, ao contrário do que ela pensava.

Vi Estrela fazer o corte e Doc borrifar algo que conteve o sangramento. Também vi quando Estrela puxou uma bolinha cinza e melecada para fora do corpo de Peg e seus olhos se inundaram de lágrimas que escorreram por seu rosto enternecido. Vi Doc tirar a bolinha dos braços de Estrela enquanto Candy ficava cuidando de Peg, limpando o que precisava ser limpo para poder fechar o corte. Registrei todos esses movimentos como quadros de um filme mudo, mas permaneci como que fora da realidade, assustado, excitado, feliz, completamente aterrorizado...

Estrela se aproximou de mim e estendeu algo, uma coisinha qualquer embrulhada em um pano branco. A coisinha qualquer era meu filho, que me chamava de volta à realidade com seu choro estridente, e só então eu percebi que chorava também.

— Oi, John – disse eu, estendendo meus braços para ele. – Você é tão... feio! – disse eu sorrindo para a coisinha cinza, enrugada e com imensos olhos azuis.

Acho que ele também sorriu para mim, ou talvez tenha sido apenas ilusão minha. Eu o acalentei em meus braços e ele foi aos poucos se acalmando. Não sei quanto tempo passou. Talvez tenham sido alguns poucos minutos, mas eu sentia como se tivessem sido horas que nós dois passamos nos encarando, nos reconhecendo. E sei que, como eu, ele soube ali que faria o que quisesse de mim, que eu era dele pelo resto de minha vida. E que ele era e sempre seria o começo e o fim de todas as minhas histórias.

— Ian... – Peg chamou num sussurro, ela tinha acabado de acordar, já curada, mas ainda meio grogue.

Levei John até a maca e me inclinei para que ela visse seu rostinho. Ela estendeu a mão trêmula e chorou enquanto o segurou pela primeira vez nos braços. Eu me ajoelhei ao lado da maca e pus um braço sob o pescoço dela e o outro sobre o corpo dos dois.

— Olhe bem, bebezinho. Esta é sua mãe. Nós dois a amamos e a protegemos de tudo. E ela nos protege também. Ela veio a este planeta por você, por nós dois. E nós vamos fazê-la sempre feliz, não vamos?

Minha pequena e eterna história ficou ali olhando para os olhos da mãe, reconhecendo-a também, como tinha feito comigo. E o mundo parecia um lugar melhor porque ele existia, e porque nos olhava com aquela serenidade que só podia ser algo que não pertencia completamente aos seres humanos. Acho que ele era algo divino.

— Ele é lindo, Ian – disse Peg chorosa.

— É sim. Muito mais do que isso – respondi.


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Notas finais do capítulo

Olá, meus corações. Este vai dedicado a todos vocês com os desejos de uma Páscoa Feliz, Santa e Iluminada.