A Hospedeira - Coração Deserto escrita por Laís, Rain


Capítulo 39
Explicações


Notas iniciais do capítulo

Bones sinking like stones
All that we fought for
Homes, places we've grown
All of us are done for
We live in a beautiful world
Yeah we do, yeah we do
We live in a beautiful world
Oh, all that I know
There's nothing here to run from
'Cos yeah, everybody here's got somebody to lean on

(Don't Panic - Coldplay)



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/254366/chapter/39

POV — Logan

— Mas que merda, Kyle! Como você pôde ser tão estúpido? – vociferei a plenos pulmões quando nos encontramos num desvio da estrada, a fim de transferir um pouco de nossa carga para o furgão.

— Abaixa a voz, imbecil. E você não tem nada a ver com isso até a última vez que chequei.

— Certo. Porque falar alto numa estrada deserta é perigoso demais, mas ficar desfilando por aí pondo Sunny em perigo... Aí tudo bem! – ironizei, ainda furioso por ele ter testado os limites da sorte. — E eu tenho tudo a ver com isso. Cada uma das pessoas que você pôs em perigo é minha responsabilidade quando estamos aqui fora. Talvez da última vez que checou você tenha se esquecido de contar. Somos 38, contando com seu sobrinho, seu irresponsável. Muitos mais se contarmos com a célula de Nate e as outras cujas localizações ele conhece.

Kyle pestanejou, surpreso com meu ataque. Aparentemente, ele não tinha considerado que nosso conhecimento de outras células aumentava exponencialmente o perigo.

— Eu não tinha pensado nisso – disse ele um pouco envergonhado.

— Sério? Se você não me dissesse que não pensava, eu não teria percebido.

— Dá um tempo! Você fica aí se achando o “bonzão”, mas antes de vocês Almas chegarem, eu já fazia isso, já cuidava de todo mundo enquanto arriscava meu pescoço!

— Sei. E muito me admira que nunca tenha estragado tudo. Acho que devemos ser gratos a Jared e a Ian por isso, ao que parece.

— Ah, cala essa boca! Eu sei muito bem o que fazer caso seja pego – respondeu Kyle irritado, referindo-se ao plano emergencial suicida que eu detestava, mas para o qual não tinha encontrado substituto. — Ninguém mais pagaria por isso a não ser eu mesmo.

— Kyle! – protestou Sunny.

— O quê? – disse ele, virando-se para a companheira. – Eu o faria e você sabe que sim. Faria isso pra proteger todos nós. Até você, seu estressadinho de merda. Porque é isso que nós fazemos, protegemos uns aos outros. E você nunca vai saber como é estar disposto a morrer para garantir a sobrevivência dos que restaram.

— Por que não? Porque não sou humano? – Sinceramente, esse argumento já estava ficando velho! — Se um de nós pode entender, sou eu. Eu era um Buscador, também estava acostumado a me arriscar pela minha espécie.

— Não passa nem perto, idiota. Você pode se mudar de hospedeiro, sei lá... Mas este meu traje de gala aqui não pode ser tirado pra lavar! – rebateu.

Talvez ele tivesse razão, mas aquela fala me deixou ainda mais irritado, porque me confrontou com a possibilidade de ser pego, capturado e retirado de meu corpo. Não gostei nada de que Kyle se referisse ao meu hospedeiro como uma roupa que eu poderia trocar, como um corpo que eu dispensaria sem nenhum escrúpulo. Aquele corpo agora era parte de quem eu era e eu o amava. Além disso, Canção Noturna não era nenhuma droga de saltador sem respeito.

— Não fale como se eu... Como se nós não estivéssemos abrindo mão de nada por vocês. Não estamos brincando de casinha! Esta é nossa vida agora. Perdê-la, ver desfeitos nossos laços, sermos separados de vocês e entre nós nos afetaria tanto quanto a morte. Mudar de hospedeiro simplesmente para continuar vivo, mas longe de tudo que amamos, de todos que consideramos nossa família não é uma opção. E você já devia saber disso!

As garotas endureceram seus olhares e assentiram em concordância. Acho que, como eu, elas não tinham pensado nessa possibilidade, mas ao serem confrontadas com ela, tiveram a mesma reação enojada que tive.

— Desculpe – disse Kyle, olhando para Sunny. – Não quis ser desrespeitoso. Eu sei que vocês abriram mão de praticamente tudo em relação à sua espécie. Eu só estava preocupado. Não estou acostumado a pensar em vocês como seres pacíficos, que não fariam mal uns aos outros. Tudo o que eu fui capaz de enxergar por anos foram esses alienígenas que estavam tirando meu mundo de mim. E tudo em que consegui pensar quando achei que você estivesse em perigo foi no desespero de Ian quando Peg levou os tiros. Além disso, naquela hora eu não achei que estivesse pondo ninguém em perigo a não ser eu mesmo. Só me importei com você, Sunny, só a imaginei sendo tirada de mim como aconteceu com o resto do meu mundo, como aconteceu com Peg. Não me passou pela cabeça que era eu quem a estava pondo em perigo.

Perceber o quanto tinha sido inconsequente estava realmente deixando-o mal. Resolvi pegar mais leve com as acusações.

— Então por que fez isso? Por que se arriscou dessa maneira? – perguntei, tentando acalmar meu tom de voz.

— Porque achei que tinham descoberto Sunny. Achei que ela não tinha conseguido enganá-los. Eu só perdi a cabeça pensando no que podia acontecer com ela.  

— Ela não teria sido morta. Assim como Peg não foi. Não fazemos isso. Nunca contra um de nós. Mas se um membro da resistência for pego, humano ou alma, o corpo será considerado... comprometido.

Três pares de olhos se arregalaram diante de mim assustados, espelhando provavelmente minha própria expressão. Para as garotas não era novidade. Estrela, pelo menos, sabia bem disso. Mas nenhum de nós podia evitar o terror de se espalhar por nossas mentes diante da ideia de perder aqueles que amávamos.

Eu me importava com muitos, mas além da perda de Estrela e de nossa separação, havia mais duas coisas que faziam meu sangue ferver em um misto de dor e desespero. Jeb seria o primeiro a ser descartado e outras almas seriam designadas para cuidar de John quando ele nos fosse tirado e entregue como hospedeiro.

— O que você quer dizer? – perguntou Kyle. Aparentemente, Ian não tinha contado detalhes a ele.

— Se algum de nós fosse capturado, aconteceria como aconteceu com Peg. Haveria uma nova inserção para obter informações, mas depois, uma vez que fosse constatada a inviabilidade do hospedeiro, o corpo seria... – Tentei escolher as palavras, porque não tinha certeza do quanto Kyle, Sunny, ou mesmo Estrela sabiam. – O corpo seria considerado inapropriado para reutilização.

— O quê? – murmurou Sunny, verbalizando com dificuldade a pergunta que estava também nos olhos de Kyle, e me fazendo chegar mais perto da questão que eu tinha conseguido evitar até agora para Estrela.

— Os humanos resistiriam, Sunny. Como Mel fez com Peg. E isso seria, obviamente, perigoso para todos. Conosco seria diferente, nossos corpos seriam considerados viáveis, já que somos almas, e seriam testados como candidatos à reutilização, embora depois de retirados nós quatro fôssemos separados e mandados para longe. – Olhei para Estrela que não conseguia mais engolir o choro e colhi uma de suas lágrimas com o dedo. Fiquei olhando para o líquido salgado em minha pele e pensando no quanto perderia. – Mas os humanos seriam simplesmente... descartados.

Sunny começou a chorar e se emaranhou nos braços de Kyle como se pudesse protegê-lo. Estrela estava estática, lívida como uma folha de papel, como se todo sangue tivesse fugido de seu rosto.

— Mas já aconteceu antes, não é? – perguntou Kyle. — Se eles usassem os corpos de vocês, não conseguiriam nada. Estrela não nos entregou.

— Não podemos contar com isso. Não podemos ter certeza de que as lembranças que deixaríamos para trás perturbariam a nova Alma do mesmo jeito que aconteceu com Estrela. Ela simplesmente foi corajosa e leal demais – afirmei, acariciando seu rosto que continuava impassível, embora lágrimas corressem por ele. – Mas outra alma teria rapidamente entregado as informações e pedido para saltar.

— Saltar? – perguntou ele.

— Mudar de hospedeiro para outro mais suscetível à completa supressão. Não gostamos de fazer isso, mas quando o corpo hospedeiro não nos aceita é preciso. Então a Alma hospedada é convencida a saltar.

— É o que teria acontecido comigo então? – perguntou Estrela, finalmente saindo de seu torpor.

— Era o que teria sido feito, mas então começou a parecer que você seria capaz de lidar com tudo. Além disso, havia a gravidez. Por causa dela, a hospedeira foi preservada, mesmo quando você disse que não conseguia se lembrar das informações de que precisávamos e ela se tornou virtualmente inútil para os Buscadores. Não há mais hospedeiros adultos disponíveis, por isso esperávamos que a sua suposta “amnésia”, embora fosse uma má notícia para nós, poderia ser boa pra você. Pensamos que a ausência de recordações possibilitaria que você ficasse segura naquele corpo, sem ser influenciada ou torturada pelas lembranças nele, já que a humana hospedeira havia sido há muito suprimida. Mesmo assim estávamos atentos. Se um hospedeiro adulto apresenta... hum... problemas, a Alma é convencida a saltar para o corpo de uma criança.  Era o que teria acontecido com Peg se ela tivesse revelado a verdade à Buscadora encarregada dela.

Estrela me olhou como se eu fosse um estranho temível. Pela primeira vez em muito tempo, ela parecia de novo horrorizada com sua própria espécie e eu era, naquele momento, o símbolo de tudo isso. Era perturbador o quão humana ela parecia quando se soltou do meu abraço e me encarou com a pergunta que eu mais temia.

— Se Peg for capturada com John em seu ventre, como já aconteceu, e decidirem descartar a hospedeira...

— Ela seria mantida viva até o nascimento dele.

— E depois?

— Depois... Eu não sei. Em consideração ao vínculo da maternidade é possível que ela tivesse outra chance na Terra. Mas não sei ao certo. A situação é, com toda certeza, inédita. Não há parâmetros para prevermos como as coisas seriam. Minha opinião é que, eventualmente, como estou certo de que ela não mudaria seu comportamento, Peg seria considerada uma ameaça a si mesma, a John e aos outros. Não há como ter certeza, mas eu acredito que ela seria retirada e mandada para longe, assim como nós.

— E o que aconteceria com o bebê? – perguntou Sunny. – Eu tive que dizer ao homem do mercado que meus vizinhos tinham um bebê e ele me perguntou se eles já tinham decidido se...

Sunny parou, olhando hesitante para o rosto cheio de dor da amiga. Depois olhou para mim, na esperança de que eu tivesse entendido a pergunta e que não fosse preciso dizer as palavras, mas Estrela não permitiu que nós dois nos livrássemos do fardo de ter que dizê-las olhando em seus olhos.

— Decidido o quê? – perguntou.

— Ele quis saber se eles já tinham decidido se o entregariam como hospedeiro ou não – disse Sunny baixinho, quase envergonhada pela dor que essas palavras causavam em todos nós.

Estrela me abraçou de novo, já esquecida de que há poucos segundos tinha me olhado como se eu representasse as respostas que tanto a assustavam. Aos seus olhos, eu era novamente seu amado protetor. E era também o dono de um desamparo igual ao dela.

— O que isso quer dizer, Logan? O que isso significa para John?

— Este planeta é diferente de todos os outros que conhecemos, minha Estrela. Aqui, as crianças adquiriram para nós um valor diferente. Seus pais parecem amá-las pelo que são, mesmo que sejam de espécies diferentes. Há um núcleo familiar diferenciado e anteriormente desnecessário para nós. Antes não havia pais, somente mães que davam suas vidas por milhares de bebês que asseguravam a continuidade de nossa espécie. Mas aqui nós podemos ficar ao lado deles, não só podemos como precisamos. É nosso dever cuidar deles. Sentimentos diferentes podem se desenvolver. O natural seria o bebê ser entregue como hospedeiro, ainda que continuasse sob a guarda de seus pais biológicos, mas às vezes isso não acontece. E se os pais não quiserem, não serão obrigados. A uma mãe é dado a possibilidade de decidir se seu filho permanecerá humano. É uma situação com a qual estamos apenas começando a lidar, mas o direito da mãe seria respeitado.

— Mas não o de Peg?

— Não sei, amor. Com ela é diferente. Não acho que ela seria mantida aqui uma vez que ficasse claro o quanto ela está... aculturada, como diria Cal. E sem uma mãe para reivindicar o direito de mantê-lo humano...

— John se tornaria um hospedeiro – completou ela, um soluço rompendo sua garganta e abrindo caminho para um choro doloroso e sem controle. Uma náusea repentina fez meu estômago afundar quando ela enterrou o rosto em meu peito, do jeito que fazia quando estava assustada e vulnerável.

— Não vamos ser pegos, Estrela – decretou Kyle. – O que aconteceu hoje não irá se repetir e vocês podem parar de chorar agora, moças. Ninguém será retirado, suprimido, descartado, nenhuma dessas merdas! Eu estou nessa vida de fugitivo há mais tempo que vocês e nós temos nos virado bem todo esse tempo. Vamos continuar fazendo isso e tudo vai continuar como sempre.

Olhei para ele agradecido, aquela visão simples e inocente das coisas, dita com as palavras veementes e teimosas de Kyle, era o que precisávamos ouvir naquela hora. O choro de Estrela se tornou mais silencioso, embora continuasse ininterrupto e ela ainda estivesse trêmula e nervosa. Sunny também continuava agarrada a Kyle, parecendo ainda mais assustada e triste do que antes. Então ele me olhou com um pedido de socorro nos olhos, como se dissesse “me ajuda aqui, eu já fiz minha parte!”, e eu me apressei em fazer isso.

Hum, então agora éramos solidários um com o outro? Que mundo mais estranho!

— Olhem, eu nunca pensei que diria isto, mas Kyle tem razão. Os humanos já correram muito mais riscos do que agora, mas conseguiram sobreviver sem nunca serem pegos. Isso porque nunca se descuidaram, porque nunca se permitiram nenhum deslize. Para nós agora é muito mais seguro do que era para eles. Praticamente não corremos nenhum risco, só precisamos ser cuidadosos na medida certa.

— Seremos – disse Sunny, se fortalecendo diante da possibilidade de proteger quem amava. – Seremos extremamente cuidadosos daqui para frente.

— Nada disso. Excesso de confiança induz aos deslizes como o que Peg e os outros cometeram, mas se nos preocuparmos demais também não será bom. Foi esse o motivo do deslize de Kyle hoje. Isso acrescido do fato de que ele conhece muito pouco sobre nós. É preciso que cada um dos humanos que nos acompanham conheça perfeitamente nossa espécie e possa prever seus comportamentos.

— Sim, você tem razão – disse Estrela, saindo de seu torpor e balançando a cabeça freneticamente enquanto enxugava as lágrimas com as costas da mão. – Antes de sairmos de novo nós os prepararemos. Não cometeremos mais nenhum deslize.

— Foi bom termos essa conversa. Agora vocês sabem exatamente o que está em jogo e quais são os riscos que corremos. Isso também nos deixa mais seguros. Conhecimento e previsão. É assim que nos defenderemos.

— Certo, certo, assim você está parecendo um cruzamento de militar com vidente. Como se já não bastasse você tentando mandar em todo mundo, agora achou uma razão para isso. Bom, eu prevejo seu traseiro sendo chutado!

— Céus, Kyle! Será que você não leva nada a sério? – bronqueou Estrela através de sua voz ainda chorosa. Sunny arregalou os olhos surpresa, mas havia divertimento em sua expressão. O clima já estava começando a ficar mais leve.

— Meu Deus, relaxa, Estrelinha! – respondeu ele com seu jeito incorrigível e sua risada de trovoada. — É claro que eu levo! Só estou tentando fazer vocês descontraírem um pouquinho, mas nãããão! Você quer ficar aí toda nervosa, quando ainda temos o dia de amanhã pela frente. Assim é você que vai nos pôr em risco!

— Tudo bem, tem razão — disse Estrela, e isso deve ter feito o idiota achar que era algum tipo de gênio com aquele sorriso estúpido na cara. Eu seria capaz de apostar que ele nunca teve razão duas vezes no mesmo dia. — Só não estou conseguindo me focar ainda — ela continuou. —  Acho que preciso descansar um pouco.

— É. Descansar. Sei. Logan, sua mulher está tensa. Conserte isso! – provocou Kyle com uma gargalhada barulhenta.

Que maravilha! A primeira vez que o infeliz se dirige a mim pelo nome, em vez de algum apelidinho depreciativo, e é logo para nos insultar!

— Sabe de uma coisa, Kyle? Até que você não é tão idiota quanto parece. Afinal, você sabe usar as situações a seu favor. Agora, por exemplo, eu quebraria sua cara pela insinuação desrespeitosa, mas aqui não é lugar e nem estamos em companhia apropriada para agirmos como seres irracionais.

— Quebrar a minha cara!? – Ele riu. – Até que eu queria ver você tentar.

— Bem, então não perca as esperanças. Sempre existe o dia de amanhã.

— Claro, claro, vou marcar na minha agenda: “8h - afundar o nariz do Buscador; 8h05min - ir fazer alguma coisa difícil, pra não ficar achando que tudo na vida é moleza” – disse ele, gargalhando como se há cinco minutos não estivéssemos falando do fim de nossas vidas. — Desfaz essa cara, otário! Ninguém vai brigar enquanto você não dobrar de tamanho. Caso contrário seria covardia – continuou Kyle, exibindo os músculos do braço numa atitude tão infantil que deixaria até os filhos de Lucina com vergonha. — Além do mais, eu estava só brincando. Por um segundo esqueci que vocês Almas não têm humor. Ou será só você? Parece que você também está meio tenso...

Eu sabia bem onde ele queria chegar com essa provocação, mesmo assim continuei “dando corda”. Kyle despertava em mim um lado desconhecido até mesmo das lembranças de meu hospedeiro. Subitamente, eu me sentia com a idade mental de um garoto tonto que acabou de descobrir a testosterona!

— A única pessoa que parece relaxada aqui é você. E isso é porque você é burro demais pra perceber o quanto o assunto é sério.

— Sim, porque eu nunca pensei sobre isso em toda a minha vida! Acho que eu estava distraído demais admirando as paredes de pedras onde passei os últimos sete anos pra pensar nas consequências de ser capturado! Você e Estrela é que ficam aí exagerando. Sunny está bem relaxada, e se não estiver, eu posso cuidar disso pra ela.

— Ah, não! Cala essa boca. Vou vomitar se tiver que pensar na imagem dessas suas mãozonas nojentas sobre a minha irmã.

Irmã. Kyle não estranhou. Ultimamente era assim que eu me referia a Sunny e Peregrina, e me parecia extremamente certo e apropriado por conta do laço de identificação, proteção e cuidado que tínhamos desenvolvido. Mas isso também incluía a necessidade de fingir que não havia namorados brutamontes em suas vidas.

— Então eu espero que você não esteja com fome, porque vai perder o jantar no meio da estrada se continuar me enchendo o saco. Minha heroína merece ser bem tratada – declarou o desgraçado, agarrando Sunny com um beijo barulhento que a deixou vermelha como um tomate.

— Eca! – exclamei imitando Jamie, que era o maior especialista em cara de nojo que eu conhecia.

Kyle se limitou a soltar a mão que segurava os cabelos de Sunny e estendê-la para mim, levantando um dedo num gesto que eu lembrava claramente o que significava.

Fiquei primeiro surpreso, depois indignado e, por fim, com vontade de rir daquela cena toda.

— Pelo visto vocês decidiram que este era um bom momento para descobrir o que é ter infância! – resmungou Estrela, mal-humorada.

— Eu já disse, Estrelinha, relaxa! Só estamos brincando aqui – retrucou ele, sem nenhum vestígio de que a bronca o estivesse afetando.

— Kyle, por favor, pare com isso – interviu Sunny, mortificada. – Já ficamos tempo demais aqui. Se alguém nos vir, pode achar a movimentação estranha.

— Certo, você tem razão. Chega de brincadeira e vamos embora – disse ele, voltando ao modo prático. — O ponto de encontro está mantido? Voltaremos amanhã pra casa?

— Sim – respondi. – Será rápido, temos apenas mais três cidades para cobrir. Cada um de nós vai para uma e estaremos livres...

— Podemos ir juntos desta vez? – interrompeu Estrela. – Nós dois, quero dizer. Eu me sentiria mais segura.

— Aconteceu alguma coisa? – perguntei alarmado. – Quero dizer, fora o Hecatombe O’Shea ali, tem mais alguma coisa que esteja te preocupando?

— Não... Quer dizer... Não sei. Apenas queria ficar com você amanhã. Não gosto quando nos separamos.

— Ah, que bonitinho! – atacou Kyle. – Vocês são uma piada pronta, sabiam?

Puxa vida! O sujeito não dá um tempo!  

— Eu também não, amor. Por outro lado, faz o nosso reencontro ser ainda melhor – disse eu, fechando meus braços em torno dela e fazendo uma cena para o benefício da criatura insuportável que estava determinada a nos irritar.

— Eca! – gritou Kyle, e eu retribuí o gesto obsceno que ele tinha acabado de me “ensinar”.

Sim, idiota. Eu aprendo rápido.

Ele e Sunny riram e, depois de uns segundos, eu também. Parecia que o desastre iminente de hoje estava finalmente esquecido. E eu tinha que reconhecer, a estratégia torta de Kyle para amenizar a atmosfera opressiva de antes tinha funcionado. Não nos sentíamos mais como aquelas pessoas que, há poucos minutos, conversavam com relativa frieza sobre as terríveis consequências que nossos entes queridos sofreriam se falhássemos.

Estrela, no entanto, não sorria. Levantei o rosto dela com a ponta dos dedos para poder enxergar seus olhos no lusco-fusco da tarde que ia embora cada vez mais rápido. Nos meus, havia uma pergunta muda. O que está acontecendo? Tudo tinha estado tão bem nos últimos meses, que eu tinha me esquecido de como me sentia perdido e infeliz quando não sabia o que ela estava sentindo.

Eu tinha esperado nunca mais me deparar com esses sentimentos, mas aqui estavam eles de volta. Uma inquietude estranha e incômoda se instalou em mim, me oprimindo como algo apertado em torno de um inchaço.

Ela sorriu um pouco, apenas o suficiente para me assegurar de que estava tudo bem, mas, ainda que em outro rosto, eu tinha visto aquela expressão vezes demais para me enganar sobre ela. Como no começo de nossa história, Estrela estava me escondendo alguma coisa.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Ih, rapaz! Tem mistério por aí. O que vocês acham que é?
Olá, hosters do meu coração. Peço, por favor, que desculpem a demora. O tempo foi mais curto essa semana.
Carinhosamente dedicado a Flávia Lopes e Lindsay Anderson pelas novas recomendações.