A Hospedeira - Coração Deserto escrita por Laís, Rain


Capítulo 38
Nova Incursão


Notas iniciais do capítulo

She's in the kitchen starin' out the window
So tired of livin' life in black and white
Right now she's missin' those technicolour kisses
When he turns down the lights
But lately feelin' like a broken promise
In the mirror starin' down his doubt
There's only one thing in this world that he'd know
He said forever and he'll never let her down
I don't wanna be another wave in the ocean
I am a rock, not just another grain of sand (that's right)
I wanna be the one you run to when you need a shoulder
I ain't a soldier but I'm here to take a stand
Because we can, our love can move a mountain
We can, if you believe in we
We can, just wrap your arms around me
We can, we can

(Because We Can - Bon Jovi)



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POV – Sunny

 

— Neste ponto nos separaremos. Desse modo, em pouco tempo cobriremos um território bem maior – dizia Logan, repassando os planos ou, como diria Kyle, “cuspindo ordens como se mandasse em todo mundo”.

Eu apenas ouvia atentamente, tentando aliviar meu nervosismo absorvendo um pouco da confiança de meu amigo. Aquela era minha única chance de provar a Kyle que eu podia ser útil, que não precisava passar o resto da vida aqui presa. E estar perto de Logan, ouvindo o jeito como ele confiava em mim e parecia tão certo de que tudo correria bem, me ajudava a acreditar nisso. Desde que ele e Estrela chegaram, eu havia me imbuído de uma coragem desconhecida.

Na verdade, não era exatamente a chegada de meus “irmãos” que tinha me enchido dessa confiança nova em mim mesma, mas sim a reação de Kyle depois que o confrontei no tribunal por causa deles.

— Você precisa saber, Sunny — ele tinha me dito mais tarde naquele dia. – Não sou o tipo de cara que admite isto com facilidade. Não sou como Ian ou seu amiguinho Exterminador do Futuro que você tanto defende. Não sei dizer coisas bonitas e muitas vezes não te trato como você merece. Nossa situação... Bom, você sabe, nada disso é fácil. Eu vivo um luto e uma descoberta ao mesmo tempo. Mas...

— Kyle, você não precisa se justificar – respondi com meu coração apertado, interrompendo suas explicações antes que começássemos a falar de coisas que eu não aguentaria encarar naquele momento.

Embora eu estivesse feliz por estar ao lado dele, sempre sentiria muito por não ter conseguido trazer Jodi de volta, por não ter sido capaz de lhe dar o que ele precisava para ser feliz.

— Eu sei que você sente falta de Jodi e que eu só estou aqui porque ela não está – disse, amargurada.

— Não! – ele se apressou em responder.

Kyle estava segurando meu braço para que eu não fugisse dele como tinha fugido antes, certa, por causa de seu comportamento com Logan e Estrela, de que ele nunca tinha realmente aceitado a minha espécie e quem eu era de verdade. Eu tinha me convencido de que só estava ali porque ele não tinha conseguido se separar do que restava de Jodi.

Não estava sendo fácil encarar esses sentimentos. Eu tinha achado que tudo estava bem, que o tempo estava a meu favor e que um dia ele me amaria por mim mesma. Mas ao ver como ele se comportava com outros de minha espécie, ao saber a verdade sobre o que ele tinha feito com Peg no começo, tudo mudou. Subitamente, minhas esperanças tinham ruído e meu coração estava lutando para se manter batendo embaixo dos escombros, da mágoa de perceber que ele sempre seria meu mundo, mas eu era apenas o que restava do dele.

— Não é isso – ele continuou, puxando-me pelo braço que segurava e me abraçando.

Eu não queria seu toque. Pensei no “incidente” com Peg e em como eu devia estar com medo dele pelo que era capaz de fazer. No entanto, não consegui me afastar. Eu sempre tinha confiado nele e, ainda que toda a razão me dissesse para não fazer isso, eu sempre confiaria. O problema era que estar tão perto dele não me deixava pensar e eu precisava estar com a cabeça em ordem para não me deixar levar por falsas esperanças. Kyle, entretanto, não se incomodou com minha resistência e me apertou mais forte.

—  Eu sinto falta de Jodi. Sempre vou sentir. Eu a amava, Sunny. Você sabe muito bem o quanto. Você se lembra – disse ele, fazendo-me dolorosamente recordar que eu sabia como ninguém o quanto um significava para o outro, afinal, eu tinha as lembranças e os sonhos dela. – E você é parte dela. Como não seria? Mas não é por isso que está aqui. Não mais, já que estou sendo honesto com você. Você está aqui porque eu sentiria a sua falta se não estivesse. Está aqui porque... – Ele suspirou e afrouxou um pouco seu abraço, movendo uma de suas mãos para levantar meu rosto para que nossos olhos se encontrassem. – Você está aqui porque este é o seu lugar. Está aqui porque eu te amo.

— Kyle, eu... Você... Você não precisa...

Eu queria dizer que ele não precisava mentir para que eu ficasse bem, mas não sabia como dizer isso sem magoar a nós dois, sem desabar em lágrimas enquanto o fazia e perder de vez a razão. Eu simplesmente queria demais que fosse verdade para me permitir estragar o momento.

Era a primeira vez que ele dizia aquilo. Nós estávamos juntos desde pouco tempo depois que acordei, e eu era sua companheira em todos os sentidos desde então. Ele sempre me tratou com carinho, nunca deixando que pairassem dúvidas sobre mim ou sobre os outros de que, embora eu não fosse Jodi, havia um lugar para mim em seu coração. Eu tinha me contentado com isso, ainda que não fosse o que eu queria de verdade. Mas aquilo? Amor? Não era possível!

— É claro que eu não preciso! Você acha que alguém precisa de uma encrenca desse tamanho? – brincou ele, um sorriso amplo em seu rosto de contornos viris, mas que podia parecer tão infantil às vezes. — Mas eu não pude evitar. Ter você em meus braços... Não posso mais viver sem isso. E queria que você soubesse, que nunca duvidasse de agora em diante.

— Que você me ama? Você sabe o que está dizendo? – Eu não poderia aguentar que aquilo fosse apenas uma mentira piedosa, uma maneira de me manter por perto.

— Sunny, por favor! Eu sei que meto os pés pelas mãos e faço tudo errado de vez em quando, mas eu nunca mentiria para você. Você sabe disso, não sabe?

— Sei. Eu confio em você. Sempre confiei.

Desde que você invadiu meu quarto e me sequestrou, planejando me extrair deste corpo e me mandar para longe. Desde que percebi que, ainda que você o fizesse, eu te amaria enquanto houvesse vida em mim.

— Então, por favor, me aceite – ele disse ao me beijar e tudo o que eu queria dizer era que já tinha aceitado desde a primeira vez em que o vi. Desde antes disso, quando dormir era a única parte do meu dia em que eu não me sentia vazia, pois podia sonhar com ele.

E, ali, perdida em seus braços, eu me senti primeiro confusa, depois aterrorizada de que o minuto passasse e eu descobrisse que aquilo era um sonho, ou pior, alguma espécie de lembrança torturante de Jodi. Mas, depois, quando o minuto passou sem que o sonho se transformasse em pesadelo, eu finalmente me senti em paz. Olhando nos olhos dele, sentindo seus braços ao meu redor, segurando-se a mim como eu me segurava a ele, eu soube que aquele era finalmente meu lugar, que dali em diante, para onde quer que eu fosse, eu teria um lugar para voltar.

— O que foi? – perguntou Kyle quando eu, inconscientemente, puxei os braços dele em torno de mim.

— Nada. Desculpe, eu me distraí – respondi, voltando à realidade.

— Se você estiver nervosa, se não quiser ir... – disse Kyle, aproveitando a oportunidade de me fazer mudar de ideia.

— Não! Está tudo bem – afirmei, tentando soar determinada.

— Iremos em três veículos para que possamos nos separar. Estrela levará o Sedan e eu o Mustang. Vocês dois levarão o furgão para que Kyle possa se esconder, assim ele pode ficar com você, Sunny.

— Oh, é mesmo Buscador? Você dá sua permissão? – perguntou Kyle com ar de provocação, tentando insultar Logan que apenas sorriu para ele com os olhos um pouco cerrados.

— Sim, eu dou minha permissão, Kyle – ele se limitou a responder.

Estrela olhou para mim e sorriu, tentando me tranquilizar, mas, na verdade, nem era necessário. Há tempos eu tinha deixado de me preocupar com a hostilidade entre Logan e Kyle, depois de eu finalmente ter percebido que aquele era o jeito como os homens se tratavam quando não queriam admitir que poderiam ser amigos. Confuso, mas parece que para eles funciona. De qualquer jeito, eu sabia que nada daquele “campeonato de mijo a distância”, como Ian tinha chamado, ia de fato progredir para algo mais sério.

— Em três dias, nos encontraremos em Wichita, na saída da cidade. Jared e Mel estarão lá com o caminhão para levar o que tivermos conseguido até então. Depois seguiremos para Oklahoma e levaremos o resto no furgão e nos porta-malas. Pararemos em todas as pequenas cidades no caminho. Vocês têm uma lista das que ficarão por conta de vocês. Estrela e eu nos encontraremos todas as noites. Vocês devem nos encontrar apenas no fim do terceiro dia para que possamos transferir nossos suprimentos para o furgão e esvaziar os porta-malas, mas, além disso, apenas se acharem necessário. Se vocês precisarem de alguma coisa é só telefonar e iremos até vocês – disse Logan me entregando um celular que eu deveria ligar apenas quando estivéssemos longe daqui. – Você se lembra da história?

— Sim, eu me lembro. – Eu tinha passado dias decorando novos nomes para Kyle e eu, além de todos os detalhes da história sobre como decidi viajar com meu companheiro em busca de bons lugares para a prática de camping.

— Nas lojas é provável que ninguém te aborde, mas se o fizerem, dê poucos detalhes para não se arriscar a se perder na história. Nos hotéis serão necessárias mais explicações. O importante é que você aparente confiança e seja sempre extremamente gentil, mas acho que não será problema para você se comportar como uma de nós, não é?

Eu ri, mas os três me olhavam preocupados.

— Você tem certeza de que conseguirá mentir, Sunny? Não é um hábito com que estejamos acostumados – perguntou Logan apreensivo.

— Não será mais difícil pra mim do que foi pra vocês. – Pelo menos era o que eu esperava. — Eu sei o que depende disso.

— Pois muito bem – disse Logan. – Confiamos em você. Não é, Kyle?

Kyle respondeu fazendo uma careta para Logan e me dando um beijo no topo da cabeça ao me abraçar.

— Claro – ele afirmou, mas, embora eu não visse seus olhos, sabia que eles não combinavam com suas palavras.

———————————

— Família grande? – perguntou o dono do mercado apontando para o carrinho de compras cheio.

— S-sim – gaguejei.

Céus! O que foi que Logan disse sobre parecer confiante? O primeiro que me aborda e eu já tenho vontade de desmoronar!

— É ótimo, não? Muitos estranham a força dos laços familiares, mas eu gosto disso. Filhos? – perguntou ele apontando para o crescente estoque de fraldas para John.

— N-não – gaguejei de novo, antes de respirar fundo e inventar uma mentira de improviso – Não... aham... desculpe, estou com a garganta um pouco irritada, tenho que consultar um Curandeiro – disse eu, pigarreando para disfarçar. — Não são para minha família somente. Estou também pegando algumas coisas para meus vizinhos. Eles têm um bebê e estão tão encantados!

— Pudera! – respondeu o homem, admirado. – Eu mesmo ficaria interessadíssimo em ver em primeira mão como é o crescimento dessa espécie. Vão entregá-lo como hospedeiro?

A pergunta me aterrorizou inexplicavelmente. Entregar? Uma criança? Pensei num filho meu com Kyle. Um bebê pequenino de olhos azuis. Pensei em John que já existia no ventre de Peg e que todos nós já amávamos. Seríamos capazes disso, nossa espécie? Destruiríamos a essência de nossos filhos? A simples ideia me perturbava para além do imaginável.

O que será que ele esperava que eu respondesse? Se ele perguntava se iam entregá-lo, queria dizer que havia a escolha de não fazê-lo.

— Não sei – respondi. Logan tinha me instruído a me manter o mais próxima possível da verdade em minhas respostas, assim era menos perigoso dizer algo que levantasse suspeitas. E a verdade é que eu estava cheia de dúvidas, então “não sei” parecia bom o suficiente.

— Compreendo – disse o homem com um olhar compadecido. – É uma decisão difícil, imagino.

— Sim – suspirei, imitando-o. — Bem, se me dá licença, estou com um pouco de pressa. Tenha um bom dia.

— Espere, moça! Você não parece bem. Está pálida. Eu levo as coisas até seu carro.

Então ele empurrou o carrinho de compras que eu tinha largado perto da porta para fora da loja e eu nem tive chance de protestar. Fiquei absolutamente em pânico, mas achei que o impedir pareceria ainda mais suspeito, principalmente depois de meu comportamento estranho.

— Ah, por favor – disse eu, correndo para alcançá-lo antes que chegasse ao estacionamento. – Acho que tem razão, não estou me sentindo bem. Pode me dar um pouco de água e me deixar sentar em algum lugar na sua loja?

— Mas é claro, querida! – respondeu ele, deixando o carrinho e pondo a mão em minhas costas para me apoiar e me ajudar a entrar na loja de novo.

Com o canto dos olhos, vi Kyle sair do furgão com cara de quem estava disposto a pôr tudo a perder. Ele não confiava mesmo em mim!

Fiz sinal com uma das mãos para que ele esperasse e me virei o mais discretamente que pude para a parte do pequeno estacionamento que eu podia ver pela porta de vidro para lhe assegurar que estava tudo bem. O homem voltou com um copo de água e me perguntou se eu queria que ele chamasse um Curandeiro.

— Não, me desculpe. Esta hospedeira tem quedas súbitas de pressão. Deve ser o calor – respondi bebendo a água sofregamente. – Já estou bem. Agradeço muito sua ajuda, mas já consigo levar as coisas.

Virei-me e saí o mais depressa que pude, empurrando o carrinho que ele tinha deixado do lado de fora. Quando as portas automáticas se fecharam atrás de mim, ainda pude ouvir sua voz preocupada pedindo para que eu me cuidasse. Olhei para ele e sorri sabendo que me via através do vidro. O mais penoso para mim nisso tudo era ser obrigada a ser pouco cortês com alguém, e ter podido sorrir, demonstrando um pouco de gratidão por sua preocupação, me fez sentir um pouco aliviada.

No entanto, assim que voltei os olhos para o furgão, meu alívio desapareceu por completo, dando lugar a um pânico crescente na forma de um nó que descia pela minha garganta alojando-se em meu estômago.

Quando viu que eu estava voltando para o furgão, Kyle tentou fazer o mesmo um segundo tarde demais, pois uma simpática senhora tinha passado ao seu lado e agora estava olhando para trás enquanto sacava o celular da bolsa.

— Senhora? – gritei, e foi fácil fazer voz de desespero. Mantenha-se próxima da verdade, eu escutava a voz de Logan dizer e, naquele momento, o pavor era a minha realidade. Todo meu mundo podia ruir se eu não engolisse meu medo e agisse rápido. – A senhora pode me ajudar, por favor? – perguntei levando as mãos ao rosto e deixando o nervosismo fazer seu trabalho.

A mulher olhou indecisa para o próprio celular e depois para mim, mas demorou apenas um segundo para decidir que eu merecia prioridade. Pensei em simular um desmaio ou algo assim, mas nesse caso eu não conseguiria sair daqui sem que chamassem Curandeiros ou insistissem em me levar até em casa. Então apenas esperei, tendo certeza de que a palidez devido ao medo seria suficiente.

Enquanto a mulher vinha até mim, vi Kyle contornar o furgão e correr para os fundos do mercado, escondendo-se nas sombras. E quando o vi ao menos temporariamente seguro, me senti um pouco melhor.

— O que foi, querida? O que aconteceu? – A mulher perguntou gentilmente, segurando minhas mãos que estavam convenientemente frias pelo terror que tinha me assaltado.

— Não sei o que há de errado comigo hoje. O calor está me afetando em especial. Acho que estou com a pressão baixa.

— Oh, criança! Pobrezinha! Vamos voltar para dentro da loja, onde deve estar mais fresco.

— O dono do mercado se ofereceu para me acompanhar até o carro, mas eu achei que já estava bem e quis evitar-lhe o incômodo – disse, esforçando-me para despistá-la.

— Pois, ao que parece, você fez mal. Tenho certeza de que não teria sido incômodo algum para ele. Vamos até lá. Na verdade, também estou muito nervosa e me sentiria mais segura lá dentro.

— Por quê? O que houve? – perguntei olhando em volta, fingindo-me de assustada. – Qual o perigo de ficarmos aqui fora?

— Não tenho certeza se há mesmo perigo – ela disse, e isso queria dizer que ela não tinha visto os olhos humanos de Kyle. Mal contive meu suspiro de alívio enquanto ela continuava. – Mas pensei ter visto algo. Um rapaz passou ao meu lado e eu olhei para o rosto dele. Foi só um vislumbre, mas ele me pareceu... humano! – ela exclamou com expressão aterrorizada, um calafrio subindo por sua espinha.

— Minha nossa! É preciso reportar isso aos Buscadores!

— Oh, sim! Era exatamente isso que eu ia fazer quando você me chamou.

— Quando eu a chamei? Então isso acabou de acontecer! Nesse caso, a senhora está se referindo àquele homem grandalhão que acabou de passar?

— Isso mesmo! Um que por pouco não trombou em mim. Vou te dizer uma coisa, criança, aquele moço me deu arrepios.

— Oh, que alívio! – disse eu, sorrindo afetadamente enquanto ela me olhava com uma interrogação que tomava seu rosto inteiro. – Aquele moço? Eu o vi também, agora há pouco ele passou por mim saído provavelmente do restaurante ao lado.

— É mesmo? E reparou bem nele?

— Sim – dei um risinho bobo. – Ele era muito bonito, minha hospedeira ficou... entusiasmada – disse eu, fingindo timidez.

— Ah, querida, não precisa se envergonhar! Eu sei bem como são os processos químicos destes corpos – falou a mulher em tom cúmplice e com uma expressão profundamente aliviada. – Então você tem certeza de que ele era um de nós?

— Tenho, sim, olhei bem nos olhos dele – afirmei com convicção.

— Bem, e a julgar pela sua queda de pressão, a visão parece ter produzido um senhor efeito! – brincou ela.

— É mesmo. Já me sinto até melhor só de pensar nele. Acho que vou dar uma volta na direção que ele seguiu, quem sabe não o alcanço!

— Faça isso – disse ela sorrindo. — Precisa de ajuda com suas compras? Depois eu já aproveito seu carrinho.

— Claro, obrigada – respondi, sabendo que Kyle não estava no furgão e que ele não estava cheio o suficiente para levantar suspeitas.

Depois que ela me ajudou e nós nos despedimos trocando gentilezas e amenidades, entrei no furgão e esperei que ela se afastasse. Kyle saiu da escuridão do beco estreito entre a lanchonete e o mercado e correu até mim, entrando rapidamente pelos fundos do veículo.

— Mas o que deu em você? – perguntei indo até ele e quase o derrubando com a voracidade de meu abraço. – Você perdeu o juízo?

— Desculpe – ele respondeu. – É que eu estranhei a demora. Você nunca leva mais do que alguns minutos em cada lugar. Aí eu vi aquele homem pegando suas coisas e segurando você, eu... Acho que perdi a cabeça.

— O que você pensou? Achou que eu tivesse posto tudo a perder? Você não confia em mim?

— Claro que confio, Sunny! Eu já me desculpei. – Como se palavras vazias resolvessem alguma coisa! – Eu só achei que ele tivesse desconfiado.

— E no que resolveria você aparecer com seus olhos humanos diante dele, se fosse esse o caso?

— Eu só pensei... Sei lá, eu não pensei. Quando o vi te segurando, achei que estivesse em perigo.

— Eu nunca estarei em perigo em meio à minha própria espécie a menos que me vejam com você. Você precisa se convencer disso.

Kyle desviou os olhos dos meus, o maxilar contraindo-se como ele fazia quando estava irritado e, subitamente, quando vi a vergonha injustificada em seus olhos, eu entendi.

— Você não está acostumado com isso, não é? – perguntei segurando seu rosto em minhas mãos, forçando-o a olhar pra mim. – Você não está acostumado a sentir que não pode me proteger.

Mais uma vez ele desviou o olhar, tirando minhas mãos de seu rosto e segurando-as entre as suas. Depois me olhou de novo e eu pude ver os efeitos da trovoada que ressoava ao longe, sufocada imprudentemente como um sussurro inofensivo em seu coração e que agora ameaçava explodir. Eu tinha descoberto a tempestade dentro dele e Kyle nunca gostou de se sentir vulnerável, exposto.

— Eu não preciso de sua proteção contra minha própria espécie, mas isso não significa que eu conseguiria fazer isso sem você. A única razão para que eu tenha forças para mentir, para fazer o que me soa incomodamente como roubar de meus semelhantes, a única razão que tenho para relativizar o que sempre achei que era certo é você. É por você que faço tudo isso, e mentir não é um fardo pesado demais apenas porque sua presença me lembra de tudo que eu colocaria em risco se não o fizesse. Você e nossos amigos, nossa família... Eu faria qualquer coisa por você.

— E eu por você. Sou um idiota — ele disse me abraçando –, mas nunca fui imprudente desse jeito. Apenas não consegui me controlar quando pensei que eu pudesse te perder como achamos que tínhamos perdido a Peg.

— Quer saber? Eu quase morri de medo quando te vi sair do furgão! Por favor, nunca mais faça isso! – pedi, sabendo que eu não aguentaria outra dessa. – Mas agora que passou, estou me sentindo poderosa. Talvez possa ser divertido você me deixar ser sua heroína de vez em quando, só de brincadeira – provoquei, deixando claro que estava falando do tipo de diversão de que ele gostava.

Kyle arregalou os olhos quando entendeu o que eu quis dizer e, em seguida, os cerrou como se fosse um predador olhando sua presa.

— Vamos sair daqui agora! – ele disse, sentando-se ao volante e dirigindo pra longe dali e para mais perto desta nova, ousada e surpreendente versão de mim mesma.


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Notas finais do capítulo

Capítulo dedicado a Evy em agradecimento por nossa nova recomendação.

Olá, Hosters!
Sei que já disse isso antes, mas agora estamos realmente próximas do fim. Se houver alguma peça que vocês acham que ainda falta se encaixar, mandem suas sugestões. E não temam, Coração Deserto não terminará de vez. Há planos de uma segunda temporada.
(Ouço gente feliz com a notícia ou não?)
xoxo