A Hospedeira - Coração Deserto escrita por Laís, Rain


Capítulo 40
Revelação


Notas iniciais do capítulo

You have suffered enough
And warred with yourself
It's time that you won

Take this sinking boat
and point it home
We've still got time
Raise your hopeful voice
you had a choice
You've made it now

Falling slowly
sing your melody
I'll sing along

(Falling Slowly - Glen Hansard e Marketa Irglova)



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POV — Logan

— O que há com você? – perguntou Estrela, meio carinhosa, meio impaciente. – Por que não quer ficar com nossos amigos?

Tínhamos voltado de nossa incursão no fim daquela tarde e todos estavam satisfeitos, porque a despensa cheia nos daria alguns meses de tranquilidade. Como há algum tempo todos estavam tendo que comer com frugalidade, o jantar de hoje seria especialmente incrementado e generoso e havia uma comemoração, programada para a hora da sobremesa, “regada” a frutas frescas e chocolate. Eu já tinha comido durante o trajeto e estava a fim de ficar sozinho remoendo minha frustração, então disse a Estrela que ela podia ir jantar sem mim.

— Só estou cansado – respondi secamente, e isso praticamente resumia tudo.

Eu estava realmente cansado do joguinho enlouquecedor que ela tinha feito comigo o dia todo. Uma hora ela se comportava como um bichinho assustado e arredio, mantendo-se alerta a qualquer movimento das Almas ingênuas e inocentes que encontrávamos. No instante seguinte, ela ficava distraída de repente, olhando pensativa para o nada, imersa sabe-se lá em que tipo de pensamentos.

Durante todo esse tempo, ela me manteve distante, respondendo minhas perguntas com monossílabos e caretas. Entretanto, me seguia com os olhos se eu me afastasse um pouco. Quando eu voltava para perto dela, às vezes a encontrava com os olhos marejados, outras, com um sorriso bobo nos lábios e uma ânsia estranha nos olhos.

— Está tudo bem – ela respondia a cada uma das incontáveis vezes em que a questionei sobre seu comportamento estranho. – Eu juro que não tem nada errado comigo —  me garantia sem que eu, no entanto, acreditasse.

Mas eu sabia que tinha. E não poder fazer nada a respeito estava me matando. Ignorar um problema, agir como se algo que a estivesse afetando não afetasse a mim também, ia contra a minha natureza. Garantir que ela estivesse segura e feliz era o que me mantinha firme neste mundo em que eu sempre tinha me sentido à deriva. Era a única coisa sobre a qual eu acreditava ter controle depois que meu mundo foi virado do avesso e tudo parecia fora de órbita. E Estrela estava tirando esse controle de mim.

Era estranho que eu me importasse tanto. Afinal, não era novidade que Estrela escondesse as coisas de mim. Mas no começo disso tudo, naqueles meses que mais parecem fazer parte de outra vida, eu sabia que o quer que ela estivesse protegendo tinha que proteger de mim, porque eu representava o inimigo.

Só que agora era diferente, eu estava do outro lado, protegendo os humanos junto com ela e mais duas Almas, as únicas em um dos poucos lugares neste planeta que não pertenciam à nossa espécie. E isso, essa estranha família, era minha causa agora também, mas essa loucura só parecia fazer sentido quando eu me sentia amado por ela, quando eu sentia que ela precisava de mim tanto quanto eu dela. Então o que aconteceu com “meu protetor”, “meu amigo”, “meu homem”? O que aconteceu com “irrevogavelmente fundidos”?

— Você devia deixá-la em paz. Ela vai te dizer o que é quando estiver pronta pra conversar – Jeb tinha me dito hoje mais cedo, depois de decifrar o motivo de minha irritação por causa de meia dúzia de resmungos aleatórios que me escaparam. Juro que um dia descubro como ele faz isso!

De qualquer forma, não era necessário que ele dissesse. Como eu tinha dito a ela, eu estava realmente cansado. Tentar derrubar uma parede de concreto o dia todo fazia isso com as pessoas.

— Estou com sono – respondi sem maiores explicações e a ouvi soltar uma lufada de ar em resposta, denunciando sua frustração.

Eu estava tão irritado que mal conseguia olhar para ela, por isso me limitei a virar de lado na cama, encarando a parede e obrigando-a a encerrar o assunto. Eu não queria dizer algo que a magoasse, então não queria conversar. Se ela não me deixava “entrar”, se não se abria comigo, então que pelo menos me deixasse em paz.

Eu me lembrava da sensação de estar simplesmente exausto de tentar fazer parte de algo e não conseguir. Aconteceu pela primeira vez com Logan quando ele era pouco mais novo que Jamie, numa das muitas vezes em que bateram nele antes que ficasse forte o suficiente pra revidar.

Ele nunca se aproximava de ninguém, mas tinha feito uma exceção para esse garoto chamado Joshua, seu “irmão” num dos lares adotivos. Eles tinham a mesma idade, um temperamento parecido e a necessidade em comum de se proteger contra os mais velhos.

Um dia, Joshua se apaixonou por esta garota riquinha e meteu na cabeça que o único jeito de a conquistar era comprar um presente estúpido para ela. Eles não tinham nenhum dinheiro, quando faziam algum “bico”, tinham que ajudar no sustento da casa e nunca sobrava nada pra bobagens. Mas havia este cara, um dos irmãos mais velhos, que fazia uns “trabalhos” com gente da pesada. Ele tinha dinheiro guardado e Logan sabia que Joshua o tinha roubado quando viu a garota usando uma pulseira reluzente na mão que enlaçava a do amigo.

Naquela noite, enquanto os “pais” estavam fora, o “irmão” mais velho decidiu que era Logan quem o tinha roubado e ele e seus amigos se certificaram de que cada parte de seu corpo em que um hematoma pudesse ser coberto pelas roupas seria um alvo para repetidas pancadas.

Logan sofreu cada uma delas em silêncio, seguindo mais uma vez seu instinto de proteger, pois sabia que Joshua não era tão forte quanto ele. Mas no fim de tudo, quando estava encolhido no chão sentindo o peso de sua lealdade, seu algoz decidiu que era a hora de dar-lhe a pancada mais forte:

— Só pra você não dizer que eu nunca te dei nada fora uma surra, irmãozinho, vou te dar um conselho. Tome cuidado com quem anda. Nosso outro irmãozinho não é tão durão quanto você. A língua dele se solta com muito mais facilidade – disse o garoto antes de chutá-lo uma última vez e largá-lo no chão de um beco escuro.

Joshua me entregou? O desgraçado jogou a culpa em mim?

Ali mesmo, ele decidiu que não era uma grande perda. Não era como se ele realmente acreditasse que pudesse ter, enfim, alguém que se importasse com ele e, como de costume, nenhuma lágrima foi derramada.

Daquele momento em diante, ele nunca mais dirigiu a palavra a Joshua. Não o entregou, no entanto. Queria que o traidor tivesse o desgosto de encará-lo todos os dias e saber que ele tinha aguentado tudo em silêncio, mas que um dia, quando ele menos esperasse, a verdade poderia escapar.

Logan saboreou, dias depois, o prazer de saber que a garota tinha trocado Joshua por outro e que o tinha humilhado com requintes de crueldade quando o fez. Não era o suficiente, mas era bom o bastante para começar.

Apenas não para aquela noite. Naquele dia, ele tinha ido para a cama com um saco plástico cheio de pedras de gelo para aplacar um pouco da dor de um de seus pulsos torcidos. A sensação fresca sobre a pele machucada era boa no começo, mas logo a ardência parecia insuportável. Ao perceber que gelo queimava como fogo, assim como coisas que pareciam boas podiam se transformar em algo ruim, Logan riu da metáfora cruel.

Por mais que seus músculos gritassem, doendo como se estivessem implodindo, ele não afastou o plástico da pele, apreciando a descoberta de que aquela dor era tão aguda que não o deixava pensar em mais nada. Ficou ali deitado com o corpo inteiro dolorido e o pulso em chamas, deixando que uma dor calasse outra maior, até que não sentiu mais nada. De repente, o frio não doía mais. Tinha se tornado parte dele.

Ele ficaria de luto por sua esperança tola de amizade aquela noite, toleraria sua fraqueza até que o frio fosse parte dele como o das pedras de gelo dentro do saco plástico ainda em torno de seu pulso. Então ele esperou olhando para o teto escuro, sem se permitir pensar em Joshua e fingindo que Lindsay, sua irmã “de verdade”, a única que tinha merecido seu amor, era apenas um sonho bom e não uma lembrança dolorosa. E mais uma vez ele esperou por horas, como faria muitas e muitas vezes em sua vida, até que não sentiu mais nada.

Era isso que eu estava fazendo agora. Deixando que o gelo implodisse meus músculos, esperando até não sentir mais nada, quando de repente o calor da pele dela me preencheu. Ela tinha se deitado atrás de mim, abraçando-se ao meu corpo e encostando a testa em minha nuca.

— Você está bravo comigo, não está? – perguntou ela, o calor de sua respiração em minha pele vencendo lentamente minha resistência.

— Não sei.

— Não sabe?

— Não.

— Ok. Então eu vou ficar aqui até você descobrir o que está sentindo. Se você não quer sair e ver a alegria dos outros, a alegria que você deu a eles, então nós dois ficaremos aqui até você dormir.

— Pode demorar um pouco.

— Tudo bem.

— Não sei o que dizer.

— Então não diga nada. Não precisamos conversar se você não quiser. Eu posso te dar isso – ela disse, e eu entendi a indireta.

— Me desculpe – pedi, porque era verdadeiramente impossível ficar bravo com ela quando estava sendo tão doce.

— Por quê?

— Porque a razão de eu estar assim é que eu não posso te dar isso. Eu me sinto à deriva.

— Você é sempre tão forte. Às vezes eu me esqueço.

— De quê?

— De que você também pode ser assim, tão humano. O que você quer dizer com “eu me sinto à deriva”?

Peguei a mão dela que corria leve sobre meu peito e beijei a palma. Toda minha irritação tinha subitamente ido embora, porque não havia nada que eu pudesse fazer para me defender do amor que sentia por ela. Não havia como esperar passar.

— Eu protejo as pessoas, Estrela. É quem eu sou. É minha forma de manter algo sob meu controle. Eu... meio que preciso disso – confessei envergonhado. – Todas as vezes que você se negava a dizer o que havia de errado, eu me sentia como se você estivesse me pondo pra fora de casa. – Dei uma risada breve e desolada pela sensação tristemente verdadeira por trás disso. – É como se eu fosse um barco sem rumo e as pessoas preferissem saltar ao mar aberto em vez de ficarem comigo. Eu me sinto como se não pudesse te proteger.

— Você não precisa me proteger. Não há nada de errado comigo.

— Por favor, pare com isso.

— É verdade. Não há nada... de errado.

— Mas há alguma coisa. Algo que você não está me dizendo.

— Eu queria te dizer. Por isso te pedi pra ficarmos juntos hoje, porque eu queria tempo ao seu lado para achar as palavras. Mas eu não consegui. Tive medo da sua reação e da dos outros.

— O que é? – perguntei, me virando bruscamente na cama e encontrando os olhos dela. – Por que está com medo? – E, de forma tão súbita quanto foram ditas, as palavras dela finalmente chegaram mais fundo. – Por que você está com medo de mim?

— Não, me desculpe. Não é medo o que estou sentindo. Longe disso. É só medo de dizer, acho que não sei como.

— Comece pelo começo — implorei. – Por favor.

— O começo é um bom lugar – ela disse sorrindo um pouquinho e meu coração se encheu com a visão. — Quando eu ceguei aqui e fui inserida na hospedeira de Peg, as coisas não estavam... normais com meu corpo. E depois, quando você me deu esta nova hospedeira, havia tanta coisa acontecendo que eu não tive tempo de aprender certas coisas sobre... sobre ser mulher – disse ela timidamente.

— Não estou entendendo.

— Eu demorei pra perceber, porque é tudo muito diferente com este corpo – ela continuou como se não me ouvisse. Como se agora que tinha começado a falar, não conseguisse mais parar. Então era melhor que eu parasse para escutá-la. – Eu não sinto nada. Exceto por estas mudanças de humor insuportáveis e um cansaço terrível. Num dos dias de nossa incursão, eu mal consegui levantar da cama, então fui a uma Instalação de Cura.

— Você está doente? – perguntei assustado, mesmo sabendo que o que quer que fosse, já estaria resolvido depois de um encontro com Curandeiros. Mas por que ela não me contou?

— Não, eu não estou doente – disse Estrela sorrindo e pondo a mão em meu rosto para me acalmar. – Eu sei que é perigoso. Depois da conversa de ontem, eu sei o quanto isso nos deixa vulneráveis, porque o que está em risco a partir de agora é ainda mais valioso do que podíamos imaginar e nós já temos John com que nos preocupar.

— Estrela...

— Eu comprei isto pra você –  ela me interrompeu, tirando uma pequenina caixa azul de dentro de uma mochila e estendendo-a para mim. – É um presente. Caso eu não consiga achar as palavras. – E nesse momento sua voz se alquebrou com o peso das lágrimas que ela estivera segurando. – Abra.

Eu olhei para o pequeno quadrado em minha mão, ciente de que havia algo muito importante ali. Por um instante, senti-me nervoso como se naquela caixa minúscula houvesse um universo inteiro. Fiquei confuso quando vi o pequeno objeto redondo de plástico branco e verde que havia dentro dela.

— O que é isso? – perguntei.

— É uma chupeta – disse ela, ficando minimamente decepcionada com o fato de eu não saber o que era aquilo. – Costuma-se dá-las aos bebês, para acalmá-los.

— E por que você está me dando algo que deveria estar guardando para John?

— Porque, em breve, John não será o único. – Ela sorriu por entre as lágrimas que começaram a escapar. — Porque você nunca mais ficará à deriva – disse enquanto eu voltava à superfície. — Porque sempre haverá alguém por quem roubarmos a chave da geladeira. – E lágrimas quentes começaram a rolar por meu próprio rosto, sem que eu tivesse me dado conta delas até que tivessem expulsado todo o frio.

— Eu estava certo, Estrela. Havia mesmo um universo nesta caixa.

Ela sorriu e naquela noite todos os outros sorriram conosco. Porque este era um lugar de esperança e porque aqui as geladeiras não tinham chaves.

Fanart mais linda do mundo por DannyMandT


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Notas finais do capítulo

Olá, hosters do meu coração. Como podem ver, muitos de vocês acertaram em suas suposições sobre qual era o segredo de Estrela. Aparentemente, era algo previsível, rsrs. Espero que tenham gostado da notícia mesmo assim.
Fico feliz de poder colocar Falling Slowly como a trilha deste capítulo, porque essa é uma das minhas músicas favoritas (é a Rain aqui falando). Ela me faz sentir... sei lá... com o coração ardendo de um jeito bom. E acho que é assim que nosso casal deve estar de sentindo.
Dedicado a Luna Black, por ter achado que nossa história valia a pena uma segunda recomendação e a quebra de sua regra de 3.
E também a Luddy, meu querido fantasminha, por seu comentário tão lindo que eu coloquei nos lábios de Estrela: "Porque sempre haverá alguém por quem roubarmos a chave da geladeira". Créditos a ela.