A Hospedeira - Coração Deserto escrita por Laís, Rain


Capítulo 37
Antagonistas


Notas iniciais do capítulo

No one knows what it's like, to be the bad man
To be the sad man, behind blue eyes
No one knows what it's like, to be hated
To be fated, to telling only lies
But my dreams they aren't as empty
As my conscience seems to be (...)
No one knows what it's like
To feel these feelings
Like I do
And I blame you

(Behind Blue Eyes - Limp Bizkit)



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POV – Logan

Eu não teria apostado que seria fácil me adaptar à nova vida. Não que rotina, calmaria e trabalho pesado fossem problemas para mim. Quando se é uma Alma, os gestos cotidianos que visam o bem comum são mais do que bem-vindos. Eu apenas não achei que seria fácil me adaptar à presença dos humanos. Nunca pensei que conseguiria ou mesmo que tentaria entendê-los.

            No entanto, eu me pegava constantemente dando asas a um estranho impulso de observar atentamente tudo o que eles faziam, suas expressões, seus sentimentos, o porquê por trás de suas ações...

Eles também nos observavam e pareciam movidos pela mesma curiosidade. As conversas após o jantar, um hábito que Jeb tinha manipulado muitos a cultivarem para ajudar na aceitação de Peg, tinham voltado. Porém, Peg me explicou que essas conversas tinham se tornado bem menos unilaterais com o passar do tempo.

No começo, ela tinha me dito, eles faziam muitas perguntas, mas com o tempo passaram a contar coisas sobre seu passado também. E eu estava me apaixonando pela paradoxal simplicidade do enigma que eles representavam.

Era instigante e perfeito ver com que facilidade as peças se encaixavam quando você aprendia a entendê-los. Tão pretensamente confusos nas teias que se formavam entre seu passado e suas ações presentes. Tão sincrônica e vívida a maneira com que cada emoção era uma resposta às atitudes dos outros. A vida com eles era como uma dança intrincada e harmônica.

Quando entendi isso, aprendi a agradá-los. Eu sabia o que dizer, como agir, quando responder com palavras ou onde se encaixaria melhor o silêncio. Foi fácil fazer com que a tolerância deles por mim passasse rapidamente a algo mais natural e espontâneo. Eu já podia quase dizer que tinha amigos.

Melanie e Doc, por exemplo, eram compassivos e agradáveis e eu gostava de ficar perto deles. Gostava de Jared, porque apreciava a dignidade orgulhosa por trás de suas palavras e ações. Achava divertida a maneira honesta e espontânea que Jamie tinha de lidar com as coisas. Gostava do jeito assustado de Heath e dos sorrisos cúmplices de Lily. Sentia-me confortável com o senso de normalidade que Geoffrey e Trudy davam a tudo. E, claro, havia Jeb. Aquele velho maluco e brilhante de quem eu tinha gostado desde o primeiro dia.

Pela primeira vez, eu conseguia entender o que havia de tão precioso nas lembranças de Peg, que fez Estrela se apaixonar por este lugar e Sunny nunca tentar sair.

Eu mesmo já não me imaginava longe daqui, e quando eu e Estrela nos fechávamos em nosso quarto no fim da noite, uma pequena caverna que tínhamos herdado de duas garotas que se mudaram para a célula de Nate, eu sabia que, embora parecesse uma loucura para alguém como eu, esta era a vida que finalmente nos faria felizes.

Mas é claro que nem tudo era perfeito nesta nossa vida pretensamente idílica. Muitos continuavam fazendo seu melhor para nos ignorar. Outros tantos tentavam, embora não funcionasse, nos hostilizar com comentários irritantes e olhares atravessados. Eu não me importava seriamente com nenhum deles. Não era eu que teria que passar a vida me vestindo com as roupas e me alimentando com a comida trazida por aqueles que eu desprezava. Era patético e, de minha parte, nada digno de nota.

Porém havia um desses irrefletidos antagonistas que não era nada insignificante, por causa do que ele representava para algumas das pessoas que eu amava. Embora se mostrasse mais tolerante com Estrela, Kyle continuava me odiando. E nessa manhã, enquanto eu trabalhava sozinho no milharal, ele fez questão de deixar isso claro

— Agora sim é que eu te arrebento a cara, seu merda! – gritou enquanto vinha furioso em minha direção.

Embora todos dissessem que não precisava, eu vivia em alerta mesmo assim e Kyle não era exatamente discreto em suas abordagens, por isso eu já tinha antecipado sua aproximação muito antes de ele anunciá-la aos berros.

Ele era maior e mais forte, mas eu era muito mais rápido, então não foi difícil desviar de seu soco de direita, segurando seu braço com minha mão esquerda e atravessando o outro em torno de seu peito enquanto o empurrava sobre minha perna posicionada para lhe dar uma rasteira.

O resultado foi um baque surdo de um sujeito muito enfurecido e descuidado despencando sobre a plantação, e me olhando com uma cara incrédula e indignada.

— Quer uma dica, Touro Bravo? Da próxima vez não anuncie com tanta antecedência – disse eu, mantendo uma certa distância, mas em posição de guarda enquanto ele se levantava bufando. – Ah! E respire mais baixo também. Um monomotor é mais silencioso que você!

Depois de se levantar desajeitadamente, Kyle ainda veio para cima de mim com cara de quem estava mascando arame farpado, mas parou a poucos centímetros, enfiando o dedo na minha cara.

— Eu só não quebro você no meio, porque muita gente aqui, principalmente Jeb, se tomou de simpatias por você, mas se não parar de colocar ideias na cabeça de Sunny, minha paciência vai se esgotar um segundo antes de eu arrastar sua cara pela parede de pedra.

Ah! Então era isso. Sunny.

Ela e eu vínhamos nos tornando grandes amigos desde que voltei para cá. Nós quatro, aliás. As Almas do lugar. Com Peg ainda era um pouco estranho, porque olhar para ela ainda me lembrava muito dos primeiros tempos com Estrela. Mas com Sunny foi natural desde o primeiro dia. Ela era frágil, delicada e eu gostava de protegê-la. Simples assim. Era parte da minha natureza como antipatizar com ogros rabugentos. Nada de mais. Era apenas a proximidade natural que nós quatro tínhamos por sermos semelhantes num lugar onde, diferente do resto do planeta repovoado por nossa espécie, nós éramos os alienígenas. Mas Jeb um dia tinha me avisado que nem todos entenderiam dessa maneira.

— Se tem uma coisa que você não pode contar que Kyle seja é racional! – ele me alertou certa vez.

Eu quase podia ouvi-lo agora, por baixo da respiração ofegante e das palavras violentas de meu antagonista declarado. Mas aí, mais uma vez, uma necessidade incontrolável de proteger Sunny, desta vez contra a injustiça do ciúme dele, me tomou. Além disso, aquele dedo na minha cara estava realmente me tirando do sério.

Agarrei a mão dele e joguei-o com força para trás. Ele cambaleou só um pouco, afinal o sujeito era mesmo uma montanha, mas eu estava começando a ficar irritado e essa adrenalina foi o suficiente para afastá-lo de mim, mesmo que só alguns bons centímetros.

— Em primeiro lugar, O’Shea, estou com você engasgado desde o dia do tribunal e só não te deixei isso claro antes, porque respeito as regras do lugar e porque Sunny te ama. Mas se eu fosse você e quisesse manter meu dedo, não o colocaria novamente na minha cara, porque se você o fizer, vai ter que retirá-lo de lugares bem desagradáveis depois.

A ameaça o fez vacilar minimamente. Eu estava me tornando muito hábil em identificar as alterações de expressões nos rostos desses humanos, e pude perceber claramente que ele sabia que eu estava falando sério. Por isso ele cerrou os punhos com força como se estivesse se preparando para me bater, mas não fez isso.

— Em segundo lugar, você não me “quebra no meio” porque sabe que não seria tão fácil assim. Não sou como as Almas a que você está acostumado. Sorte sua que eu não estava aqui quando você tentou fazer isso com Peg, porque eu não sou seu irmão.

Por um segundo, Kyle baixou os olhos. Arrependido talvez. E suas mãos caíram instantaneamente do lado do corpo. Parece que não haveria mais uma briga. Quase cheguei a me arrepender de ter dito isso quando ele levantou os olhos para mim. Ele estava sinceramente sofrendo pelo que tinha feito no passado e eu podia entender isso.

— Desculpe. Eu sei como é o arrependimento. Também já machuquei Peg. E bem mais do que você.

— É, no quesito “passado de burradas” até que somos parecidos.

— Algumas coisas não se pode mudar, não é? Bom, mas vamos deixar essa merda toda pra lá, porque, como você disse, é passado. O que você veio aqui me dizer, afinal?

Então sua expressão ficou dura novamente e o momento de cumplicidade acabou quando o Kyle teimoso e rabugento de sempre voltou à tona.

— Sunny quer ir numa incursão com você e Estrela. A resposta é não. Pode tirar seu cavalinho da chuva!

— Por que não?

— Não. Ponto. Ela ainda não está pronta para isso. É muito perigoso.

— Perigoso pra quem? Só será perigoso se algum de vocês humanos estiverem por perto. Caso contrário, nunca desconfiariam de nós, nunca fariam nada contra ela. Nesse sentido, é mais seguro pra ela estar lá fora conosco do que aqui dentro com você, ou seja, não precisamos que você vá e você sabe disso. Então eu te pergunto: quem é que não está pronto?

O rosto de Kyle se retorceu numa careta de ódio e eu podia até enxergar a explosão iminente se formando dentro dele. Eu podia entender isso. Era difícil perceber que, pelo menos lá fora, Sunny estaria melhor sem ele e que ela estava começando a se dar conta disso. E não ajudava nada que quem estivesse dizendo isso fosse eu.

— Você só pode estar ficando maluco se acha que eu vou deixá-la sair por aí sem mim – disse ele, já sem nada da energia e da assertividade de instantes atrás.

— Não estou dizendo que você não deve ir – falei, querendo amenizar um pouco a situação. – A verdade é que Sunny não se sentiria segura sem você. Só não fique achando que isso será assim pra sempre. Uma hora ou outra, ela vai perceber que não depende de você pra tudo. Tente tornar-se necessário de outra maneira.

Kyle arregalou os olhos, furioso como que eu tinha dito, mas também parecendo ponderar o óbvio.  Ele podia parecer estúpido, mas não era. O fato de querer sempre ter razão era um reflexo de sua teimosia, não de sua incapacidade de perceber a verdade. Ele respirou fundo e balançou a cabeça de um lado para o outro, a boca contraída numa linha reta de desgosto.

— É tudo culpa sua, seu Buscador de merda. Tudo isso que está acontecendo é culpa sua. 

Bom, de certa forma, era mesmo. Se eu não tivesse atirado em Peg naquela noite, talvez eles tivessem conseguido fugir e tudo estaria como sempre esteve aqui nas cavernas. Talvez Estrela tivesse sido trazida para a Terra do mesmo jeito. Quem sabe, com sorte, ela teria recebido uma hospedeira adulta, ainda que bem jovem.

Eu a encontraria. Sei disso. Acredito nesse desdobramento com uma certeza tola e injustificada. Nós ficaríamos juntos.

Eu não sabia por que pensava assim, como era possível estar tão certo de algo que não tinha nada a ver com probabilidades ou preparação. Talvez seja isso o que os humanos chamam de fé. Talvez amá-la além de qualquer lógica seja o que eles chamam de destino. Talvez seja apenas a verdade.

O fato é que eu não me importava mais se parecia tolice acreditar, de maneira inabalável, na existência de caminhos ainda não vistos. Há algum tempo eu tinha aprendido a abdicar da necessidade da razão. Eu não precisava saber por que estava feliz. Bastava-me apenas sentir isso.

No entanto, por mais feliz que eu estivesse por estar com Estrela, eu estava feliz por estar com ela aqui. Por mais que eu sentisse muito ter atirado em Peg e causado toda a dor que causei, foi isso que nos trouxe a este lugar, a esta nova vida que eu estava aprendendo a amar. Então eu simplesmente não conseguia sentir o peso dessa culpa que Kyle me atribuía, embora entendesse a necessidade que ele tinha de me acusar.

Atribuir culpa. Esse era seu modus operandi toda vez que algo o incomodava. Era realmente extraordinária a maneira como algumas pessoas eram fáceis de se ler.

— Tanto faz, O’Shea. Se você precisa de um culpado... – respondi, dando-lhe as costas e voltando ao meu trabalho na colheita.

Kyle, no entanto, parecia ter tomado gosto pela atividade das raízes, porque permaneceu plantado enquanto o tempo se recusava a passar para mim, que já tinha dado o assunto por encerrado. Eventualmente, minha determinação em ignorar os buracos que seus olhos faziam nas minhas costas se esvaiu.

— O quê? – rosnei, voltando a encará-lo.

— Como você faz isso? Como se lida com um de vocês?

Mas que droga era essa agora?

— Você está me pedindo conselhos? – cuspi, quase engasgando com a ironia entalada em minha garganta. – Por que não vai perguntar ao seu irmão?

— Sunny ouve você – ele disse simplesmente, como se isso fosse autoexplicativo.

Vai um óleo de peroba para essa sua cara de pau? Posso consegui-lo na próxima incursão. Ou melhor, Sunny pode fazer isso!

— Céus, Kyle! Acho que não posso te ajudar, porque como você tantas vezes fez questão de apontar, somos muito diferentes. Eu não saberia o que dizer – respondi com uma cara deslavadamente inocente, satisfeito por poder torturá-lo. – Talvez você devesse ouvir o que ela diz de vez em quando.

Caramba! É tão fácil que não tem nem graça. Não, espera, tem sim! Pensei, rindo internamente.

— Bom, isso foi... ABSOLUTAMENTE INÚTIL! – berrou ele, “apertando o ar” com as mãos de um jeito que me fazia ter certeza de que ele estava imaginando meu pescoço entre os dedos. – Obrigado por nada, seu babaca!

— Disponha, otário! – retruquei sobre o ombro enquanto voltava minha atenção para as espigas de milho novamente, dando risada de como era fácil irritá-lo.

Era só o que me faltava!

Eu ainda ria quando o ouvi bufar feito um touro bravo e virar as costas para ir embora, chutando o chão como se fosse minha cara. Mas aí pensei em Sunny e me senti culpado. Agora mesmo é que ele acabaria tornando as coisas mais difíceis para ela.

Droga! Era muito mais fácil quando eu não me importava com ninguém!

— Ei, Kyle! — gritei, e ele parou, mas não se virou, para deixar claro que não voltaria.

Claro que você vai me fazer correr atrás de você, não é?

— Escute, dê uma chance a ela – eu disse quando o alcancei e ele se virou para mim. – Sei que você faz isso porque acha que está cuidando dela. Ela me disse que tinha muito medo de sair daqui no começo, mas isso já passou. Não tem sentido ficar segurando Sunny aqui, sendo que ela pode nos ajudar. Ela quer isso, quer se sentir útil. Senso de comunidade é tudo pra nós, faz parte da nossa natureza.

— Por que ela mudou de ideia? Por que não tem mais medo? É por sua causa, não é?

Puxa vida!

— Não, gênio! É por sua causa! Porque desse seu jeito torto, você está provando a ela que se importa, que ela tem um lugar pra onde voltar.

— Mas...

Kyle preparou-se pra dizer alguma coisa, provavelmente para contestar a legitimidade do medo dela, mas logo se calou. Como eu disse, ele não era burro, embora fosse bem pouco perceptivo e muitas vezes tivesse a tendência de empacar.

— Pense um pouco nisso antes de tomar sua decisão – falei, dando a ele a ilusão de que eu me importava com o que ele decidiria. Se Sunny quisesse ir, eu não a deixaria se importar com a “permissão” dele e a levaria de qualquer maneira. – Mas leve em consideração que se nos dividirmos, nós três podemos conseguir muito mais coisas, muito mais rápido. E poderemos visitar menos cidades também, porque não nos exporemos tanto. Quanto antes voltarmos, menos arriscado pra todo mundo. Além do mais, sempre existe a possibilidade de Peg precisar ser levada a uma Instalação de Cura caso se sinta mal, e eu gostaria de poder fazer isso por ela.

— Vou pensar. Já que não vou ter que aguentar você por perto a maior parte do tempo, acho que consigo.

Hum, que linda é a gratidão!

— Mas, sabe, babaca... – continuou ele – Até que, pensando bem, você não é tão mau assim.

— Pena que não posso dizer o mesmo de você, otário! – respondi, conseguindo pela primeira vez sorrir para ele e indo embora antes de começar a me dar bem com Kyle.

— Só não pense que eu sou seu amigo! – gritou ele de longe.

— Tanto faz – gritei de volta, rindo do quanto esses humanos eram quebra-cabeças muito simplórios de se decifrar.


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Notas finais do capítulo

Olá, hosters do meu coração.
Aqui quem fala é a Rain. Quem quiser me dar a honra de ler a minha primeira experiência no mundo dos hentais, aí vai o endereço: http://fanfiction.com.br/historia/318702/Monstro_De_Olhos_Verdes_-_So_O_Comeco/
É uma versão estendida do capítulo Monstro de Olhos Verdes, aquele em que a Estrela acorda em sua nova hospedeira e ela e Logan têm sua primeira vez. Aguardo vocês lá. Apenas se certifiquem de respeitar a classificação etária, já que sou uma fictora muito responsável ;)
Este capítulo vai especialmente dedicado a LiliHale, autora da nossa mais nova recomendação. Obrigada, Lili.