A Hospedeira - Coração Deserto escrita por Laís, Rain


Capítulo 31
Monstro de Olhos Verdes


Notas iniciais do capítulo

Watching every motion
In this foolish lover's game
Haunted by the notion
Somewhere there's a love in flames
Turning and returning
To some secret place inside
Watching in slow motion
As you turn my way and say
Take my breath away
(Take My Breath Away - Berlin)



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POV – Estrela

Meu cérebro berrava protestos furiosos contra a minha ingratidão. Num nível muito próximo da superfície, eu podia enxergar o quanto estava agindo como uma estúpida por não reconhecer e apreciar desde os pequenos gestos de carinho dele, até o amor profundo e devotado sob o qual eu me protegia, sob o qual eu me reconhecia.

Eu sabia que me arrependeria disso, que me odiaria, provavelmente em segundos, por não estar usando meu novo corpo para pular em seu pescoço e beijá-lo até que um de nós perdesse o ar. Mas o problema era o quanto este corpo queria fazer isso.

Eu estava certa de que cairia em mim em poucos minutos, e de que reconheceria o quanto esse comportamento não era digno dele ou daquele momento. Mas naquele exato instante, meu cérebro não dava ordens, porque meu coração estava tomado por um sentimento ardente e brutal que me consumia até os ossos.

Logan estava paralisado com um sorriso terno no rosto que ainda não tinha se apagado. Ele estava de pé, com a mão sobre o interruptor da luz que agora iluminava o quarto. Vi-o mover lentamente a cabeça na direção da cômoda onde o criotanque com Águas Claras repousava. Enquanto seu sorriso desaparecia, ou melhor, derretia-se numa expressão confusa e meio ofendida, ele pareceu se perguntar se era mesmo eu no corpo da hospedeira.

Logo, ele voltou a olhar para mim, a cabeça inclinada para o lado e a sobrancelha tão arqueada que parecia formar uma interrogação. Ele não sabia o que tinha feito. Sabia que eu me lembraria, mas não imaginou que me magoaria. Isso me deixou com ainda mais raiva.

— Águas Claras. Você a beijou – lembrei-o, furiosa como se lava saísse da minha boca em vez de palavras.

— Hã? Estrela, eu... – respondeu Logan, ainda confuso e sem saber o que dizer, embora seus ombros tivessem visivelmente relaxado ao perceber que era mesmo eu aqui.

Estúpida e ingrata! — vociferou meu cérebro mais uma vez, mas eu não tinha ouvidos para ele.

— Você disse que poderia se apaixonar por ela!

— Se você não existisse! – corrigiu ele, começando a ficar exasperado. – Eu disse que poderia amá-la se você não existisse. Você não se dá conta mesmo da diferença?

Bom, neste momento... Não!

— E você cantou pra ela! A canção preferida de Lindsay. Você cantou pra ela! Acha que eu não sei o que isso significa pra você?

Eu estava de pé agora. Frente a frente com ele, enquanto minha voz se transformava num chiado alto. À menção do nome de Lindsay, Logan se retesou e eu me dei conta de que tinha comprado uma briga que talvez não pudesse vencer.

Ao contrário da minha, a voz de Logan se tornou mais baixa. Não havia nenhuma confusão e absolutamente nenhuma ternura em sua expressão fria quando ele disse:

— Você já pode parar com isso agora. Estava bonitinho no começo, mas não mais. Agora você apenas está soando desrespeitosa comigo e com Águas Claras. Eu só estava agradecendo. Por nós dois, aliás. Qual é o seu problema, afinal?

Meu problema? Meu problema é que ela gostou! Meu problema é que você não deveria ter feito isso! Meu problema é que você nem percebe o quanto me magoou!

— Não dá nem pra começar a apontar qual é o problema!

— Bom, eu sugiro que você tente. Porque foi você mesma que disse que eu deveria achar um corpo do qual gostasse. Foi isso que fiz. E agora você está com raiva de mim por isso.

Aaaah! Ele não entende mesmo ou faz questão de parecer indiferente?

Descobri que uma das piores coisas a respeito do ciúme é ser abordada por um argumento sensato quando você está se dando o direito de ser irracional. Eu sabia que não tinha como manter essa minha “explosão” plausível por muito tempo. Chegaria o momento em que eu teria que voltar atrás e, se o provocasse como pretendia, o “jogo” estaria virado e, ao invés de ele tentar me acalmar, eu é que teria que fazer isso e pedir desculpas para ele. Mas, aí, quem disse que quando você percebe a coisa certa a fazer é o que você faz?

— Eu também te pedi por um corpo sem “bagagem”, uma hospedeira que não fosse apaixonada por ninguém.

— E eu também me certifiquei disso. Eu sabia que ela não tinha família ou um companheiro, mas perguntei a ela mesmo assim, só pra ter certeza – respondeu Logan, caminhando inocentemente para a minha armadilha.

— Bom, ela mentiu!

— Almas não mentem, Estrela. Você sabe muito bem que essa é uma característica humana que nós dois acabamos assimilando com facilidade demais para o meu gosto. Mas ela não mentiu. Eu saberia...

Logan era arrogante, não admitiria facilmente que estava errado, mas o fato é que, nesse caso, ele facilmente podia estar, e sua voz falseou no final da afirmação. Em um segundo, seu rosto estava tão torturado que eu me arrependi imediatamente de ter começado esse jogo para irritá-lo.

— Havia alguém...

— Quem? – exigiu ele com a voz rouca, me interrompendo.

Desde o começo, eu sabia que me arrependeria desta briga e agora tinha chegado o momento.

Tarde demais, sua idiota! Agora dê um jeito de arrumar isso! — declarou meu cérebro, revelando-se um vencedor rabugento.

— Eu sinto muito, Logan. Me perdoe. Eu só estava com ciúmes e por isso quis te aborrecer...

— Quem? – insistiu ele, sem dar atenção às minhas desculpas e seu rosto estava pálido e insondável como um lago congelado.

— Você! Era por você que ela sentia alguma coisa. Por isso senti tanto ciúme. Me desculpe, por favor – falei, tentando acabar com aquela situação constrangedora, que, aliás, eu mesma tinha criado, o mais rápido possível.

— Eu? – perguntou Logan com a testa franzida de surpresa, mas com a cor lentamente voltando a seu rosto, o que foi um alívio. – Águas Claras estava apaixonada... por mim? – E nesse momento ele sorriu.

E eu voltei a querer matá-lo.

— Quer tirar esse sorriso tonto do rosto! Não, ela não estava apaixonada por você. Ela te desejava. É diferente! E você não devia ficar contente se ela tivesse sentimentos mais profundos do que esse! Significaria que você traiu alguém que te amava. Fique feliz por não ser esse o caso e deixe de ficar tão convencido! Pra falar a verdade, nem eu sei se estou apaixonada por você com essa cara de idiota que está fazendo agora!

— Ah, Estrela, eu sei disso! – disse ele, ainda sorrindo como um bobo. —Sei que é bom que ela não estivesse realmente apaixonada por mim. Não gostaria de magoá-la. De jeito nenhum! Mas você precisa admitir que, considerado esse... desejo que você diz que ela sentia por mim, eu não poderia ter feito escolha melhor, não é mesmo? Acho que é uma coincidência bastante fortuita!

— Acho que sim... Não sei. Eu não gostei de saber como ela se sentia. Não gostei de sentir ciúme. Não gostei que você a tenha beijado. E, francamente, odiei o quanto ela gostou de quando você a abraçou.

— Em primeiro lugar, Estrela, é um tanto insensível e injusto da sua parte falar sobre ciúme quando eu tenho convivido esse tempo todo com o seu... o seu... encantamento por aquele humano!

Ai! Segundo round de arrependimento se apresentando com força total!

— Tem razão. Me perdoe. Se ajudar em alguma coisa, longe do corpo e das lembranças de Peregrina, eu me sinto bem diferente em relação a Ian.

— Sim, ajuda muito. Especifique “diferente”.

— Eu não o amo – respondi, tentando simplificar o que era impossível de ser simplificado. É claro que eu sentia algo por ele, mas era muito distinto do que eu sentia por Logan, mesmo antes deste corpo que me fazia orbitar em torno dele feito um inseto em volta de uma lâmpada – Eu amo você. Só você. Mais ainda agora.

A expressão no rosto dele era tão linda, tão perfeita, tão indecifrável, que eu quis congelar o momento ali para poder olhá-lo até o tempo deixar de existir. Ainda bem que isso não era possível, porque seus olhos me diziam que o que estava por vir podia ser ainda melhor.

— Bem, Estrelinha, eu estava no meio de uma lista de razões porque o seu ciúme é injusto e infundado. Ainda falta o segundo item.

Ah, deixa isso pra lá, por favor!

Agora que estava superada, eu não queria mais falar sobre minha cena patética. Como eu tinha previsto desde o início, eu estava envergonhada e irritada comigo mesma. Mas era justo que eu aguentasse as consequências de minha “explosão”.

— Está bem. Diga. “Em segundo lugar...”

— Em segundo lugar, eu não a beijei. Aquilo foi apenas um gesto de gratidão – disse ele, com seu meio sorriso provocador nascendo em dos cantos de sua boca.

Tudo bem! Eu vou cair nessa. Só pra ver o que vem a seguir.

— Você está dizendo que eu me lembro incorretamente do que aconteceu?

— Bem, você tende mesmo a ser um pouco passional em relação às lembranças de suas hospedeiras. Da última vez, você nos levou pro meio do nada atrás de um monte de humanos que chegaram muito próximos de nos matar. Mas, não. Não é isso que eu estou dizendo.

— O que é então?

Logan foi se aproximando de mim, os movimentos lentos e traiçoeiros como os de um felino e os olhos pregados nos meus. Uma de suas mãos pousou firmemente em minhas costas, na altura da cintura, puxando-me para perto. A outra subiu pela minha nuca e se enterrou em meus cabelos, seus dedos se entrelaçando nos fios compridos e puxando-os com firmeza e suavidade, levando meu rosto para tão perto do dele que tudo o que eu podia sentir era o calor de sua boca me provocando arrepios e seus olhos brilhantes ardendo pouco acima dos meus.

— O que eu quis dizer, minha Estrelinha, é que aquilo não foi um beijo. Isso é um beijo.

E então ele me mostrou.

As lembranças de Peg não faziam jus ao que era estar realmente nos braços de quem se ama. Nenhuma lembrança, por mais perfeita que fosse, podia se comparar àquele momento e eu me deixei derreter em torno dele, abandonando qualquer controle e me deixando levar para bem longe de qualquer mundo possível. Só eu e ele num mundo imaginário e só nosso, onde nada mais existia a não ser a eletricidade entre nós.

Minhas mãos começaram a percorrê-lo, subindo pelos braços, ombros e descendo por suas costas, e a fúria de seu beijo aumentou. Eu era dele e só dele e seus braços me apertaram tão forte que teria doído se estar colada a seu corpo não fosse a coisa que eu mais desejasse.

— Irrevogavelmente fundidos – sussurrei enquanto minha boca descansava em seu pescoço.

— Irrevogavelmente fundidos – repetiu ele, com uma voz que eu desconhecia, mais rouca, baixa e cheia de desejo.

— Acho que agora posso ver a diferença – brinquei, e ele sorriu. – Mas posso te pedir um favor?

— Todos que quiser. Eu acho. Se bem que da última vez que te fiz um favor, você ficou toda nervosinha – brincou Logan, mordendo de leve a minha mão que estava em seu rosto e sorrindo com a insinuação de minha “ferocidade”.

— Eu prometo que este vai ser simples. Até pra você e sua infinita insubordinação – provoquei. — Eu quero apenas que, daqui pra frente, você seja menos efusivo em seus agradecimentos.

— Defina “menos efusivo” – disse Logan, claramente fazendo-se de bobo.

— Não beije mais ninguém que não seja eu... Não cante adoráveis canções de ninar... e... nunca diga a alguma mulher que você poderia se apaixonar por ela – disse eu, gargalhando quando Logan fazia pequenas continências a cada “ordem” minha.

— Eu posso te beijar todos os dias, toda hora, até você ter que me mandar parar? Posso cantar pra você como quando estávamos na Estação de Cura? E posso dizer que te amo, mesmo quando você estiver tentando me decapitar com seu ciúme injustificado? – brincou ele, que estava especialmente bem-humorado agora, beijando os lóbulos de minhas orelhas cada vez que listava um de seus “itens”.

— Sim, por favor.

— Bem, nesse caso, sim, senhora! – E mais uma vez eu ri daquele Logan brincalhão e engraçado que era uma novidade agradável para mim. – Mas que fique registrado que eu não fui “efusivo” como você está dizendo. Eu a estava dopando para roubar o corpo dela e dá-lo a você. Não há pedidos de desculpa ou gestos de carinho que sejam suficientes para compensar isso.

— Eu sei. Mais uma vez, você está certo. — Agora que não estava mais consumida pelo ciúme, eu conseguia perfeitamente me enternecer por ela e sentir culpa por vê-la partir, mas infelizmente era preciso e eu esperava que ela fosse muito feliz depois em seu novo lar. — Vamos levá-la para as naves, para o planeta em que ela gostaria de viver.

— Sim, a primeira coisa que faremos pela manhã. Ou talvez a segunda – disse ele passando as costas da mão ao longo de meu braço e me olhando com uma cobiça que me deixava sem respirar.

— Você gosta mesmo deste corpo, não é? – perguntei testando a suavidade de que minha nova voz era capaz.

— Sim, eu gosto. Mas o que eu gosto mesmo é do fato de ser você dentro dele. E de você me desejar como eu desejo você.

Então ele me beijou de novo. E de novo. E eu me sentia como se pudesse voar, mesmo que tudo o que eu quisesse fosse fechar minhas asas em torno dele.

— Como você sabe tão bem o que fazer? – perguntei com uma voz que me escapava entrecortada enquanto ele beijava meu pescoço e despertava meus sentidos todos.

— Meu corpo se lembra – ele respondeu, sem parar o que estava fazendo.

— O meu também. Mas nunca foi assim, como é com você. Minha hospedeira nunca sentiu o que estou sentindo agora.

— O quê? Desejo? Amor? – perguntou ele, me apertando ainda mais contra si.

— Os dois combinados. De um jeito que me tira o fôlego e não me deixa pensar em mais nada. Este corpo pertence a você. Ele responde ao seu toque como se estivesse encantado.

— Humm – ele balbuciou, respirando o cheiro de minha pele. – Pra quem não consegue pensar em mais nada, até que você está bem falante. Eu podia pensar num jeito de deixar você quietinha, mas é bom demais ouvir isso. Pode continuar.

— Você é lindo – disse eu, enfiando as mãos embaixo de sua camiseta e puxando-a para cima, forçando-o a levantar os braços para que eu me livrasse dela.

Corri meus dedos pelos músculos de sua barriga e senti sua pele se arrepiar e se retesar ao meu toque.

— Você também é linda – disse ele inspirando todo o ar e deixando-o sair num som delicioso por entre seus lábios. – Minha vez – ele falou em voz baixa enquanto me colocava na frente do espelho. – Vamos explorar esse corpo que é só meu. – Essa última palavra, essa frase toda, aliás, soou surpreendentemente prazerosa aos meus ouvidos.

— Veja que lindo rosto você tem – disse ele passando o nariz pelo contorno do meu maxilar – E essa boca que eu não posso parar de beijar – sussurrou, passando a ponta da língua sobre meus lábios. A simples visão desse gesto no espelho acabou comigo!

Então ele se colocou atrás de mim e, novamente, passou os dedos por baixo de meus cabelos, afastando-os enquanto roçava minha nuca com as mãos.

— Ruiva — disse ele beijando de leve a curva de meu pescoço, depois de ter jogado meu cabelo por sobre meu outro ombro. – Eu gosto muito disso. – Seus dedos se entrelaçaram nos fios vermelhos e compridos, correndo rápidos até as pontas. – São macios. E você cheira tão bem! Está gostando do que vê, Estrela?

— Hum – respondi de olhos fechados, incapaz de articular qualquer som inteligível.

— Porque eu estou ficando muito orgulhoso de mim mesmo com a escolha que fiz – continuou enquanto desabotoava minha blusa e acariciava meus ombros, percorrendo-os com dedos hábeis e firmes. – Gosto especialmente dessa pele. Tão branca e delicada! – Num movimento rápido, mas delicado, Logan me girou e me abraçou, nossas peles em contato, e foi como se pequenos choques percorressem meu corpo. Ele afundou o rosto em minha clavícula e inspirou – E você cheira tão bem, Estrela. É o seu cheiro. E é exatamente como eu imaginava. Acho que não quero parar de tocar em você nunca mais – disse ele, correndo os dedos por minhas costas nuas.

— Então não pare – pedi. – Estou pronta. Acha que pode me dar minhas lembranças agora?

— Oh, sim. Eu posso! – E seus olhos faiscaram com o desejo mais ardente e poderoso que poderia haver.

— Eu te amo – eu disse, jurando não só este corpo a ele, mas todo o meu mundo, toda a minha vida.

— Eu também. Pra sempre.

Isso foi muito bom de ouvir, mas com o que me diziam seus olhos, ele não precisava jurar nada. Eu acreditaria em qualquer coisa que se refletisse sobre o verde profundo e brilhante onde eu estava mergulhada.

Então ele me tomou nos braços e me levou de volta para o nosso mundo. Aquele, habitado apenas por nós dois e pelas novas lembranças que me moldariam e me fariam esquecer as outras.

Fanart da DaniMandT


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Notas finais do capítulo

Tirei essa música direto do baú das velharias, hein? Mas combina muito com o capítulo.
Dedicado ao Lucas Brito pela adorável recomendação.
Quem quiser uma versão estendida desse capítulo (e for maior de 18, hehe), vá até:
http://fanfiction.com.br/historia/318702/Monstro_De_Olhos_Verdes_-_So_O_Comeco/