Snowbound: Beyond Wonderland escrita por Inktrap


Capítulo 2
Capítulo 1 - O Senhor Taylor




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.Capítulo 1
O Senhor Taylor

    No meio da neve, havia uma casa.


    Na verdade, o fato era que, naquele lugar, mesmo que afundadas em fofura branca, havia muitas casas. Pequeninas, acomodadas - parecendo estufadas com seus habitantes e com as minúsculas chaminés soltando muita fumaça. Casinhas baixinhas, roliças, que pareciam mulherzinhas de fidalgo daquela região, que precisavam agora ocupar a posição de donas de casa, atarracadas e gorduchinhas, a se remexer enquanto trabalhavam pesadamente na cozinha, limpando de forma completamente anti-higiênica a testa suada com as costas da mão que acabara de passar no avental sujo. As janelas, em sua maioria rendondas, eram os olhinhos semi cerrados pelas pálpebras - cortinas pesadas de lã que não deixavam o frio ou a luminosidade entrar. Vez ou outra era possível notar um brilho no olhar: as lâmpadas de óleo acendiam a vida naqueles lares aconchegantes, o laranja crepitante do fogo das lareiras tornando as cortinas dotadas de um espectro amarelado, vermelho quente e áspero.


    Era o centro da cidadezinha mais rica do reino nevado, agora chamado de Weisseland, graças a esse fato, já que Terra Branca parecia um nome apropriado, e uma das únicas a sobreviver inteira, de pé, embora a madeira rangesse um pouco e se encurvasse devido ao contraste entre frio glacial e o calor das chamas. Ela era redonda igual suas casas: um muro infelizmente não muito alto, de pedra desgastada e cinza como a pele dos habitantes, fora construído ao seu entorno para impedir os ladrões mais comuns: o vento fustigante que entrava e roubava o calor dos corpos humanos, e as hordas de animais selvagens, perdidos e atordoados, que já não mais se guiavam pelo olfato (pobres narizinhos e focinhos congelados), mas sim pela sensação térmica de um lugar onde era mais quente. O muro só era cortado por um portão, que mais se tratava de um portal, já que era grandioso e bem cuidado, e um trilho de trem velho que, por algum orgulho dos moradores do reino, ainda funcionava e cortava ele ininterruptamente, de norte à sul, onde os governantes moravam e onde o pior frio era evitado por grossas paredes de rochas e as últimas ricas tapeçarias restantes, penduradas nas paredes e deitadas no chão do castelo, reduto final da nobreza decadente que se recusava a morrer e a abandonar o local, ao mesmo tempo nunca esquecendo o que a terra grandiosa um dia lhes oferecera, mas temendo a fúria tempo que abatia o local.


    Voltando à cidade, poderia se dizer que ela não estava morta, mas congelada no tempo. Fantasmas de pessoas as vezes eram vistos a rondar as casas, agasalhados com as peles retiradas dos últimos animais que passaram por ali, uma falsa gordura que perderam por causa da fome que assolava o lugar a cobri-los e aconchega-los, uma carícia raramente recebida.  Os lares eram dispostos um a apoiar-se no outro, a proximidade das casas a proteger os habitantes do frio e, por algumas vezes interligadas, trazendo um pouco de felicidade e calor humano para aqueles corações igualmente congelados como os corpos de que eram donos. Havia sim algumas lojas, as pessoas esforçavam-se para viver normalmente como podiam, embora as prateleiras das mercearias raramente ficassem cobertas com algo mais que uma camada fina como poeira de produtos, que as vezes chegavam espaçados em caixas no trem, um presente dos governantes para seus súditos, presente esse muito dispendioso e caro, conseguido com vendas dos vestidos da corte (que foram substituídos por mantas rústicas e grossas) e dos sapatos perolados dos nobres (agora botas de couro, costuradas com firmeza e eficientes em reter o calor nos pés dos proprietários). Alguns caçadores e aventureiros ousavam sair das muralhas da cidade quando a comida rareava, usando seus últimos resquícios de carne para atrair feras selvagens. Normalmente não era necessário, já que as mesmas podiam ser encontradas mortas, não mais podendo sentir o apetitoso cheiro de sangue, mas as vezes aqueles bravos homens também nunca voltavam.


    Além de mercadinhos, havia outros tipos de lojas. Menos visitadas, raramente alguém entrava nelas. Como se mantinham, era um mistério. Algumas vendiam produtos, jogos, passatempos, para os que ainda tinham dinheiro por lá e para quem o maior problema era como fazer o tempo ir embora, sem se preocupar com o frio, outras, aproveitando-se da condição exótica no qual o reino se encontrava, fabricavam sorvetes, bolinhas que quando sacudidas faziam nevar como mágica, e alguns outros brinquedos e alimentos que divertiam pessoas de outros países que, invejavelmente, nunca viram neve, e as vezes apareciam nas regiões do norte do reino (onde era logicamente menos frio) para realizar uma espécie de turismo, uma das únicas atividades que ainda mantinha o reino vivo e em contato com terras outras.


    Entre aquelas lojas, havia uma em especial.


    Ela era uma casinha igual as outras, mesmo porque o proprietário vivia nela. Perto do muro e do portão principal (havia dois, na verdade, porque o trem precisava entrar e sair da cidade), ela era feita de pedras também, avermelhadas e com as bordas ligeiramente desgastadas, umas empilhadas em cima das outras. Do topo da porta de madeira, saia um pequeno mastro de metal, opaco onde era prateado, ligeiramente acobreado onde a ferrugem o atingira. Dele pendia uma plaqueta de madeira retorcida, onde um nome aparecia escrito em tinta preta. Nela estava escrito em tipos curvilíneos:


Sr. John Taylor
    E em tipos um pouco menores e menos estilizados, logo abaixo do nome:
Roupas e Acessórios
   
    É extremamente compreensível que, em um frio desgastante, houvesse um costureiro por lá, já que alguém precisava juntar as peças de pele dos animais da forma certa para que o frio não passasse por entre pregas mal costuradas ou remendos mal feitos. O que era estranho é que o modo como o nome fora escrito sugeria algo mais, uma costura de luxo. Claro que há de se argumentar que peles são artigos luxuosos, mas naquele reino realmente não havia muita opção que variasse de lã, couro e pele.


    Mas era verdade que o senhor Taylor não era um mero plebeu, cuja costura não diferenciava das mulheres de pobres. Alguém assim não teria uma loja, principalmente naquelas condições.


    John Taylor.


    Aquela era uma época quando os nomes ainda diziam muitas coisas sobre seus donos e, utilizados corretamente, poderiam provocar um grande estrago. Quem acredita em feitiços ou em magia sabe da força que nomes carregam, e ele não era exceção. Possuía um nome que podia dizer muita coisa sobre ele. John, comum, sem nada de especial, o mesmo nome de metade dos homens do mundo. Taylor... Bem, como tantos outros, carregava o sobrenome de sua profissão, e era o que explicava sua loja. Não um costureiro qualquer, Taylor era um alfaiate.


    O título de senhor poderia dar uma imagem errada do homem. Um velho ranzinza, talvez, com as mãos trêmulas que mal podiam costurar direito, azuis de veias pulsantes por baixo de sua pele transparente. Cabelos brancos, ralos, escassos principalmente no centro da cabeça quase careca. Olhos negros fundos, arroxeados de noites mal dormidas enquanto ele tilintava de frio, aparência cansada... Talvez uma ajudante jovenzinha, menina bonita em seus moços anos. Bochechas ainda coradas, a pessoa na loja que fazia todo trabalho e ganhava salário algum, todo o crédito ficando para o velho senhor. As pessoas diriam 'Nossa, como o velho Taylor ainda exerce bem a sua profissão!' e 'Coitado, conta com uma ajudante tão burrazinha, coitada, não deve fazer nada.', mal sabendo dos disparates que saiam de suas bocas falsas, já que fofocas e boatos, principalmente devido à inveja e ciúmes daqueles em jovens anos, ainda com forças para suportar a condição em que se encontravam, eram coisas das quais se ocupavam os moradores daquela cidade para se divertir quando a lareira não aquecia as noites gélidas.


    A verdade é que não havia moça jovenzinha e bonita e burra aos cuidados do senhor Taylor, e ele muito menos era ele um idoso senhor como sugeria.


    Não que as pessoas soubessem disso, claro, raras eram aquelas que visitavam John Taylor em sua atarracadinha casa como todas as outras, assim como eram ainda mais raras as pessoas que notavam a plaquinha com seu nome e profissão balançando ao vento e rangendo uma canção à neve.


     Ao contrário das expectativas (porque os que ouviam falar em John Taylor imediatamente, por alguma razão obscura, pensavam em um velhinho nada simpático), o alfaiate era, aproximadamente, quarenta anos mais novo em aparência do que as pessoas realmente achavam. 'Em aparência' porque ninguém realmente sabia a idade dele, nem mesmo os amigos íntimos, já ele não os tinha. Mas qualquer um que o visse, após o choque inicial, admitiria imediatamente o ledo engano e passaria a admitir que o velho Taylor na verdade era um tanto mais novo quanto imaginaram. Vários anos, talvez.    Na verdade, o moço parecia ter entre vinte e trinta anos.


    Os comentários surpresos nunca se espalharam, mas não era devido algum milagre exercido pelo próprio rapaz. Só o conheciam aqueles que precisavam dele (ou melhor, de sua nata habilidade), então o fato de John Taylor ser um rapaz e não um velho ainda não surpreendia tanto as pessoas assim, embora, quando uma vez algum cliente descuidado mencionou seu nome para a companheira, ela também imediatamente pensou em um velhinho e arregalou os olhos ao saber que não era o caso.


    O que complicava mais ainda era o fato de que, apesar de ter idade o bastante para beber a cerveja dos bares, casar, e ser chamado de homem como tantos outros, ou as pessoas o achavam um velho briguento ou um jovenzinho que mal saira das fraldas. Talvez Taylor suspirasse de pesar ao pensar nisso, mas ele não o fazia, mesmo porque não bebia cerveja e nem casara, embora também já deixara de usar fraldas fazia muito tempo, ele nem se lembrava quantos anos. Estava mais próximo de ser um velho, e talvez fosse por isso que as pessoas pensavam nele assim.


    O único ponto em que os habitantes da cidade que o conheciam concordavam era de que John Taylor combinava exatamente com o que pensavam dele. O achassem em crença novo ou velho, sempre sua personalidade atendia às expectativas. Sua aparência também combinava com o nome. Era tão comum quanto John, tão alfaiate quanto Taylor. Tinha cabelos castanhos de tamanho médio, quase roçando os ombros, nem claros nem escuros, assim como seus olhos. O nariz não era arrebitado nem adunco, os lábios poderiam ser um pouco mais cheios, assim como o corpo - mas também, com a escassez de alimentos, uma constituição frágil não era muito notada como tal, e John Taylor tinha o que a população considerava de peso médio. Não era feio, mas não possuía uma beleza estonteante, afinal, num lugar frio daqueles não era possível, a menos que fosse um ser sobrenatural que não parecesse debilitado pelas condições do tempo. Poderia ser chamado de bonitinho até por algumas moças, mas era tão normal que elas ficariam entediadas só de olhar para ele. Seu sorriso de atendente de loja era gentil, porém distante, os gestos enervantemente suaves. John era tão comum que, passado muito tempo em sua companhia, se tornava insuportável. Taylor era tão alfaiate que - por céus, existiria alguma profissão tão cansativamente chata quanto a de alfaiate? Ele conversava como costurava, sua personalidade e aparência eram como linha no tecido: alternavam-se entre dois opostos, criando assim algo imperceptível se não olhado de perto.


    Só que ninguém olhava o senhor John Taylor de perto, e ele também não se incomodava muito com o fato.  


    Pelo menos não até aquela noite.


    Eram aproximadamente seis horas da tarde do inverno, ou seja, as ruelas já estavam escuras e todas as portas bem fechadas e trancadas. Todos já haviam ido dormir para acordar quando o sol raiasse e ir trabalhar imediatamente enquanto o frio era menor, porque, naquelas horas, o vento ainda ralhava com as casas e uma tempestade se formava ao longe. Não mais sussurrava terrores nos ouvidos dos mortais, chocava-se contra as portas e janelas das casas com violência, assustando-os e fazendo-os se encolher em suas cobertas macias, tentando esquecer de todo o perigo que rondava lá fora. A escuridão só reforçava o medo existente de criaturas da noite, embora o povo fosse muito mais realista do que imaginar fantasmas. Eles sabiam que o que existia lá fora, a neve, o gelo, o frio, era tudo muito pior que a existência de espíritos cruéis. O temor era da força poderosa da natureza, era da morte, e não dos mortos, de qual não havia escape.


       Entretanto, havia algo de diferente naquela noite. Uma capa esvoaçante podia ser vista quando passava por baixo de uma estrela particularmente brilhante - o céu nunca mais possuira lua naquele lugar desde que a neve começara a cair. O contorno era delicadamente traçado pela luz da poeira de estrelas, algum viajante corajoso andava pela cidade naquela hora. As mãos, mesmo enfiadas em luvas, tremiam visivelmente, segurando a capa com força incontida, como se fosse sofrer um ataque de um vendaval mais forte ainda e tê-la roubada de si, o que  acarretaria em seu corpo tornar-se uma estátua de gelo, completamente petrificado.


    Com a névoa negra da noite a cegar seus olhos, ele parecia perdido, à procurar alguma coisa a mais que abrigo. Vez ou outra batia em algumas portas, o punho fechado chacoalhando trêmulo de desespero ao atingir a madeira furiosamente e ser ignorado uma, duas, três vezes, não importando em qual porta batia nem com que força o fazia.


    Mas também, não podia culpar os moradores daquela cidade, que minguara com o passar dos anos nebulosos até se tornar não muito mais que um vilarejo, embora ostentasse orgulhosamente o título de cidade principal do reino - muito menos quando, agora, as cidades do norte prosperavam mais do que aquela, ainda sendo beneficiadas por uma onda de calor de vez em quando, e a passagem de visitantes e turistas, olhando ansiosos e com inocência infantil para os flocos que interminavelmente caiam sobre as vilazinhas, pintando um belo quadro etéreo e puro.


    Ninguém ouvia as batidas do viajante... Eram tão semelhantes às do vento, e ninguém era tolo de deixar o frio entrar em sua morada. Se dependesse do povo adormecido, aquela criatura que vagava na noite continuaria a fazê-lo até que seus músculos começassem a travar, fazendo ruído de engrenagens ao tentar se mover.


    A figura caminhava com dificuldade pela neve, as botas afundando até a metade, os ossos tremendo tanto, tanto... Não foi por sorte achar uma casa com luzes ainda saindo de frestas na janela. Levou algumas horas para isso - e também não foi por sorte que a casa que encontrou era justamente a que procurava (porque sim, era isso que o viajante queria encontrar: uma simples casa).


    Batidas atingiram a porta novamente, e foram tão insistentes, tão cheias de esperança que há muito não existia naquele local, que foram atendidas.


    Ajudava o fato do dono da casa estar acordado, e visto uma figura encapuzada parada perto à entrada da janela do segundo andar, onde ficava seu quarto. Estivera ali sentado, como passava todas as noites, dedal adornando o polegar, agulha e linha grossa na mão, fazendo um trabalho bem feito de que lhe era cobrado. Talvez fosse curioso não dormir - mas fechar os olhos e bem vir a treva dos sonhos lhe era proibido. Então ele só se sentava e costurava. Noite após noite, um interminável fio a entrar e sair de tecido, tesoura cortando e aparando, lápis e papel marcando moldes, a fita métrica enrolando-se como se estivesse viva em manequins e indicando tamanhos a serem corrigidos.


    Antes que o estranho congelasse, John Taylor desceu as escadas após enfiar os pés em chinelas grandes e felpudas, em uma forma de pressa contida. Não precisou meter-se em um casaco antes de abrir a porta e deixar que o vento roubasse o fogo da lareira, o estranho em seus braços.


    Fechou sua casa antes de agarrar uma capa de um gancho na parede, onde outras tantas estavam penduradas, e envolver o visitante com ela, procurando aquece-lo o máximo possível. Sem ao menos questionar - não estava em posição, estava acordado até aquela hora, gastando preciosa vela, e o visitante não perguntara nada, não falara nada - o levou até a poltrona mais próxima do fogo extinto. A sala de sua casa era pequena como tantas outras, apertada, os móveis quase empilhados um em cima do outro, então a única dificuldade existente foi a de deslocamento. A mesa central se sobrepunha aos sofás que a ladeavam, estantes com amostras de tecidos foram empurradas com pressa contra as paredes, de forma a parecer sustenta-las. A escada que dava para o topo ficava escondida entre um alto armário e o banco onde subiam os clientes para terem suas medidas tomadas. A lareira se encontrava no meio da parede, no meio de todo o cuidadoso dessarrumar proposital da sala que dava-lhe uma aparência vivaz e aconchegante, como se mais de uma pessoa solitária vivesse ali.


    Como se o visitante inesperado não fosse o primeiro que John houvera recebido em alguns meses.


    Ao alfaiate, foi só possível ver rugas e pregas no rosto velho, a boca murcha e fraca. O corpo estava encurvado com o peso dos anos e do tempo. Olhos, cabelos - tudo encoberto debaixo de muitas camadas de tecido, que o alfaiate reconheceu facilmente como caros e exclusivos. Era até mesmo impossível distinguir se o viajante era homem ou mulher, mas John optou pelo ultimo, decisão feita pela forma como as vestes caiam ao corpo e através dos panos escolhidos.


    Enquanto esquentava uma xícara de café forte na cozinha (na verdade um fogão a lenha e um pequeno armário que servia como dispensa, ambos bem socados no canto da sala, quase queimando a cortina que os escondiam da vista dos clientes que iam até a casa dele procurando por roupas), o jovem senhor Taylor se perguntava o porquê de uma pessoa tão rica quanto suas roupas diziam ter vindo à noite, escondido de todos. Claro que deveria ter seu segredo também, e era indelicado perguntar. Mas não era inesperada uma visita assim - só que fazia muitos anos desde a ultima vez que algum cliente aparecera em sua casa após as dez da noite.


    Apesar de não parecer, John Taylor estava muito acostumado com segredos.


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