Snowbound: Beyond Wonderland escrita por Inktrap


Capítulo 3
Capítulo 2 - O Príncipe Maldito




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Quando ele afastou a cortina com uma mão pálida, se deparou com figura inteiramente diferente sentada em seu sofá. Por fim, entendeu, sem dispensar um olhar, o porquê da visita noturna, já que a pessoa que viu estava viajando desacompanhada, e isso explicava muita coisa.

À sua frente, encontrava-se uma mulher magra, velha, murcha, quase como galho seco. As rugas em seu rosto eram mais de preocupação do que os anos que tinha, notou, mas ela conservava certa beleza imperial. Apesar do ar abatido, a partir do momento que descobrira seu rosto, sua coluna se reerguera e ela sentara ereta no sofá, as roupas fazendo um ligeiro farfalhar enquanto ela se ajeitava, sentando-se de forma tão imponente que parecia estar em um trono. Os cabelos eram de um louro apagado, pendendo ao branco, e eram repuxados e enrolados em um coque no topo da cabeça.

Olhos azuis cálidos o fitavam, e ele juntou a mão que não segurava o copo ao peito, abaixando a cabeça e fazendo uma ligeira curvatura no exato momento em que a reconhecera.

A velha rainha daquelas terras devastadas parecia o gelo que a cobria, mas seu olhar irradiava o calor das manhãs de verão, quando o sol ainda ousava afastar parte do frio presente e derreter a mais fina camada de neve. Mesmo soberana de um lugar à beira da morte e do desaparecimento, ela se mantivera altiva e amada.

Justos reis viviam para governar sua terra. Ela, morria com a sua.

- Minha rainha. - polidez, formalidade. Dispensou-as rapidamente, colocando o copo quente entre suas mãos frágeis, sorrindo placidamente ao ouvir um murmúrio de aprovação dos finos lábios, embranquecidos de tal forma que pareciam uma fina linha no rosto da mulher.

John Taylor aprendera desde cedo a não questionar. Esperou-a beber todo o líquido com paciência e um sorriso no rosto, recolhendo o copo somente quando ela o devolveu. Colocou-o ao seu lado na mesa, sobre um porta copos de pano, e permaneceu de pé, esperando-a dirigir-se a ele, o que ela fez após alguns minutos de silêncio. Quando a voz escapou-lhe da boca, o alfaiate pode sentir a hesitação.
- Preciso que me ajude. - falou com o tom de voz de quem não está acostumado a pedir por coisa alguma. Ela mandava, e tinha suas vontades obedecidas. Quem era ele, um mero alfaiate, para recusar algo à rainha de sua terra congelada? Talvez muitos o considerassem ninguém, um homem velho em sua mocidade, tão igual a todos os outros. Mas a rainha entrara em sua casa e, ao olha-lo, parecia decidida.

Ela era a governante daquele reino, e sabia de tudo. Não se questiona como ela sabia, simplesmente se admite que, para uma rainha ou rei não saber o que se passa em seus domínios, era uma vergonha total. Graças a isso, era uma dentre poucos outros a reconhecer, de fato, que John Taylor era o humano mais fantástico a andar por aquelas terras, de habilidades incríveis e extraordinárias.

O alfaiate, entretanto, considerava-se bem comum e indigno de segundo olhar. Mas se sua rainha lhe pedia ajuda, ela deveria estar certa. Quando soberanos erram? Quando o povo se resigna ao erro é que eles não podem mais ser considerados governantes. E John Taylor respeitava demais sua terra, mesmo que ela por ele nada tivesse feito, a não ser anos que lhe traziam um terrível fardo nas costas.

- Estou aos seus serviços.

Com certeza todos os habitantes, não só daquele reino, como daquele mundo, conheciam os contos de fadas - os de espíritos, demônios, princesas enfeitiçadas e bruxas também.

- Bom. - a velha mulher não deu a impressão de estar aliviada, mas seu longo suspiro revelou que, em seu íntimo, estava grata pelo homem não ter recusado a oferta (ela não gostaria de chamá-la de pedido, era... deselegante).

Com um farfalhar das roupas, ela retirou das muitas camadas de tecido um pequeno papel enrolado em torno de si mesmo, em forma de tubo. Uma fita de couro marrom o amarrava, e ela desatou o nó, revelando uma velha pintura amarelada somente nas bordas, que por algum cuidado especial ainda conservava o brilho das cores originais. Sem mais explicações e com as mãos trêmulas de frio e de algo mais que John não percebeu, a rainha estendeu-lhe a com um aviso.

- Cuidado. É muito importante...

Não precisava ter explicado, ela não devia-lhe explicações. Sem saber mais o que esperar, também pensando que deveria encontrar algum motivo na pintura, olhou-a com mais atenção.

Neve.

Era uma paisagem bem comum naqueles anos, mas dessa vez, os campos cobertos de branco e árvores esquálidas, raquíticas como senhores idosos, se encontravam na vista de uma imensa janela, tão grande que parecia um sólido portal de cinzentas pedras. Grossas, sobrepostas. Não se via um arranhão ou fenda nelas, embora parecessem encobertas por uma fina crosta de gelo.

Tinha que admitir que o artista que pintara a figura o fizera com devida habilidade. Somente a visão da paisagem já o deixara a puxar as roupas mais para perto do corpo, o calor se esvaindo ao pensar que deixara a janela aberta. Somente parou de tremer ao notar um curioso detalhe, que a diferia das janelas de muitas outras casas: não tinha cortinas, nem ao menos vidro. Era aberta, sem grades ou proteção.

Ironicamente, era feita para deixar o frio do lado de dentro. E funcionava perfeitamente, como podia observar, já que a Rainha também tremia no sofá, gigantesco para a figura frágil da senhora. Embora isso também poderia ser devido às roupas molhadas que ela ainda trajava.

John com certeza teria se oferecido para fornecer-lhe novos casacos, peles, qualquer outra vestimenta a seu real agrado, mas encontrava-se estupefato, olhando fixamente para o desenho - igual a ela.

A beleza dos traçados leves e suaves era notável, realística, mas havia uma figura que o alfaiate não poderia dizer não ter notado antes.

A verdade era que a pintura era um retrato. Cuidadosamente estilizado, detalhado ao extremo, as suaves pinceladas borrando as cores para que estas se misturassem, criando profundidade em um arco íris enevoado e feito das tonalidades de uma só cor: isso se o artista não acreditasse que o branco fosse uma mistura de todas as outras cores, como era passível de crer se trabalhasse com prismas e luzes.

Etéreo, quase transparente, sentado no batente da janela, se encontrava um...

O que era? Por um momento, confundira-o com mulher. Criatura divina, anjo? Elfo, dragão, raposa disfarçada de gente? John Taylor tinha a capacidade de citar uma centena de espécies diferentes para caracterizar o ser, mas humano, com certeza não o era. Homens eram, como o alfaiate já havia constatado, criaturas vis, e mesmo a mais inocente das crianças exalava uma aura de verdadeira impureza ao seu redor.

Ele poderia ser tudo o que quisesse, tamanha beleza possuía. Os traços não marcavam sua pele como rugas ou dobras, nenhuma mancha ou pinta maculava a tez de uma brancura que faria a mais pura das neves parecer suja em sua comparação. Os cabelos emitiam uma luminosidade prateada, cascateavam sobre seus ombros e braços, que eram delicados e finos, mantidos junto ao corpo em perfeição de boneca de porcelana, dessas que meninas ricas compravam para quebrar e jogar fora quando se sentissem cansadas e entediadas. Os olhos de vidro e gelo deixavam bem claro o que aconteceria se alguém ousasse quebrá-lo, e o ar majestoso e superior exaltava sua posição em relação às outras criaturas em sua cabeça levemente erguida, os lábios fechados em uma inexpressão plácida e controlada dos que sabem da indignidade dos outros em merecer seu sorriso ou sua raiva.

Altivo e de figura resplandecente como neve ao ter raios de sol refletidos nela, seu corpo esguio era coberto de seda e tecidos finos, tão quebradiços quanto o gelo que começava a se formar em seus cílios e pontas de unhas. Espalhados pelo batente, escorriam junto aos fios louros do cabelo ao redor de seu corpo, da janela, do chão frio de pedras frias. Tão impessoal, tão distante. O cabelo brilhava em tonalidade prateada onde era acariciado pelos raios do sol, embora fosse tão claro que chegasse à brancura do resto da imagem. As bochechas não eram rosadas como seria o esperado, os lábios descorados seguiam uma curva natural, criando uma expressão que parecia triste, embora zombassem do pintor. Seus braços e pernas estavam visíveis, desnudos, e graciosamente ajeitavam-se com perfeição à pose dele de divindade que desceu aos reinos mortais. Um dos pés encontrava-se sobre a murada de pedras, e John poderia jurar que vestia um sapatinho de cristal. Bastava olhar com mais atenção e vontade, porém, para soar a badalada da meia noite e a mágica ser desfeita: seus dedos, ao invés de adornados pela nobre e preciosa pedra, estavam cobertos de transparente gelo.

Uma figura cristalizada, entalhada em água congelada, feita de luz e gelo.

Ainda assim, permanecia impassível, mesmo quase indistinguível do seu entorno em cores, atraía os olhares para si como sendo imaculado.

John tocou a pintura com as mãos, muito para seu desgosto, embora não se culpasse, trêmulas e hesitantes, mesmo quando a Rainha não demonstrou-se irritadiça com o fato dele percorrer as pinceladas com os dígitos, sentindo também que o artista fora bom o suficiente para definir, com maior quantidade de tinta, os relevos do quarto, a suavidade e maciez da pele do rapaz retratado. Podia sentir-se acariciando os fios prateados, notando como eles deslizavam por suas mãos como a seda rica que o vestia. Os adornos da roupa eram talhados de acordo, e, arranhando suas digitais, em puro êxtase o alfaiate notou, ao levantar relutantemente os dedos, afastando-os da pintura e vendo os grãos brilhantes que descansavam sobre eles que, na pintura também, eram feitos de verdadeira prata. Quando tornou a pousar a mão, dessa vez ainda mais delicadamente, sentiu o frio cortando sua própria pele ao tocar no rosto do jovem. Tenra e gélida como a neve que cobria o país havia anos...

Por mais desejoso que estivesse, por mais tentador que fosse, John não ousou tocar-lhe os lábios.

As pinceladas que construíam o quarto onde a figura principesca descansava eram fortes, quase violentas, chocando o alfaiate pela brutalidade da gaiola onde o rapaz fora confinado. Sombras escuras, negras, por ora azuladas ou acinzentadas, cobriam os cantos das paredes. O teto e o chão eram brancos, mas cheios de veios azuis arroxeados, como se pulsasse com vida humana, também cruelmente pintados. Mas os traços se tornavam suaves, até mesmo delicados, ao se aproximar do local onde ele se encontrava.

Entretanto, o artista que o pintara não conseguira captar a sutileza do ser etéreo, de olhar forte demais para criar um contraste arrebatador. Dentro de seu peito, John sabia que nunca ninguém poderia ousar tal objetivo.

Era fato conhecido que o Senhor Taylor abertamente não gostava de pessoas mais do que deveria e, conseqüentemente, não era romântico. Só que, subitamente, pegara a si mesmo com os lábios entreabertos e olhos que nunca se afastavam da figura, coração acelerando, batendo só um pouquinho mais rápido, porque a visão era linda demais para não ter efeito em alguém que trabalhava com beleza. Tolos argumentariam que isso é amor, mas amor à primeira vista não existe, e qualquer aparência, John sabia mais que tudo, era enganação. Aquela beleza era para ser observada ao longe, não para ser tomada, não para ser possuída. Desejá-la era uma ofensa tão terrível que, se John o fizesse, cegaria seus olhos para nunca mais poder vê-la outra vez. Ao querer tê-la, se arrebentaria a fina trama que costurava o mistério e o ar que envolvia e tornava-a o que era. Não era amor que o arrebatara, nem desejo. Era a servidão que já o aprisionava há tanto tempo a seu trabalho de criar o belo, a imediata noção de que deveria cair de joelhos e se curvar e não viver mais que para servir aos pés da definição da beleza absoluta que os filósofos comentavam existir somente no plano superior, impossível de ser atingida neste.

Nunca desejaria tocá-lo, jamais ousaria pensar em querer o ter. Para John Taylor, servi-lo tornou-se seu propósito, seu être de vivre. Era estar entrelaçado entre agulhas e linhas mais uma vez, não estar subjugado àquela beleza significando dores tão agudas quanto picadas de alfinetes violando e fazendo surgir filetes avermelhados de dedos antes sem marcas. Porque o alfaiate não possuía dores nem amores nem desejos, ele era absolutamente insignificante e escravo de sua própria maldição particular, que possuía já há não sei quanto tempo.

Para John, bastava olhá-lo. E desde a primeira vez que John Taylor o viu, teve certeza de uma coisa: Ele era intocável. Para qualquer mortal, era como erguer as mãos e tentar segurar ar entre os dedos; era como flocos de neve derretendo ao entrar em contato com o calor de suas mãos.

Ao mero contato, ele sabia que aquele ser, quem quer ou o que quer que fosse, se tornaria poeira e desabaria sobre o peso de ter sido tocado por mãos humanas. Todo seu encanto e mágica seriam desfeitos e ele novamente se tornaria sujo, frágil, triste e tão terrivelmente humano como todos os outros.

Com isso em mente, John Taylor decidiu que faria qualquer coisa por ele.

- Você ainda não me perguntou sobre sua história. - a Rainha murmurou, a voz baixa, tirando o papel das mãos de Taylor com extremo cuidado, as unhas longas deixando marcas no papel que quase deixaram o alfaiate a lamentar pela crueldade das ranhuras. Não fez desfeita, porém, muito embora seus lábios desejassem se curvar em um muxoxo infantil de criança que tem o brinquedo roubado, muito embora a comparação fosse terrivelmente mal feita.

John pediu desculpas imediatamente, tentando se redimir pelo ocorrido e abrindo a boca, que já estava parcialmente aberta dado à sua contemplação do jovem, mas a mulher o impediu com um gesto da mão, fechando os dedos abertos e mandando-o se calar. John prontamente obedeceu, não demonstrando sinal algum de desagrado por ter sido ordenado a algo.

Já estava se acostumando rapidamente à sua condição de obediente serviçal.

- Pois bem - ela começou, o sumiço da ansiedade anteriormente mostrada se fazendo evidente quando ela mostrou um brilho de determinação em seu olhar, que se iluminou como se a juventude voltasse, se não ao seu corpo, à sua alma. Com um último suspiro resoluto, continuou. - Ele é meu filho.

John já havia imaginado algo do gênero, mas a surpresa continuou visível em seu rosto. Não demorou muito para notar que seu ar descontentava sua soberana, assim procurou evita-lo. A rainha já não se encontrava mais na flor da mocidade, a pele já não estava delicadamente estendida sobre a estrutura frágil de seus ossos, e os cabelos perderam o brilho luminoso da adolescência. Ainda assim era bonita, o tipo de beleza experiente que acompanha as mulheres maduras. Entretanto, era completamente diferente do misterioso charme do homem desenhado, agora sabendo o alfaiate ser, ao menos, parcialmente humano. Já ouvira histórias como esta, de frutos do amor proibido entre diferentes criaturas darem origem à seres de beleza incomparável e demoníaca. Entretanto, eram só histórias...

- ... Príncipe...?

Não completou a questão, porém a rainha anuiu com a cabeça. Antevia já a pergunta delicada.

Todos no reino sabiam que a rainha e o rei nunca conseguiram ter filhos. Após anos de tentativas infrutíferas, pesquisas com alquimistas e farmacêuticos, magos, por muitas vezes charlatões, bruxas e feiticeiras, só vieram a conseguir um herdeiro havia aproximadamente cinco anos, alguns dias antes da neve começar a cair naquela terra. Como se a situação não fosse por demais infeliz para todo o povo, que viu suas magníficas comemorações interrompidas pelo pânico que eventualmente se acalmara com o passar dos meses, o herdeiro do trono, na verdade, era uma menininha adorável que ainda deveria estar começando sua educação agora, na desesperança do casal real ganhar um filho homem para assumir o trono. Coroas de flores importadas de países tropicais, arranjos de mesa, velas, tecidos. Os mais coloridos enfeites, os artistas circenses mais habilidosos: tudo o de mais caro havia sido preparado para receber a menina, mas a festa principal nunca ocorreu.

- O filho é ilegítimo, mas é mais príncipe que qualquer outro. - Admitiu a rainha sem pudores, erguendo-se na cadeira onde se encontrava e mostrando um orgulho tão poderoso do príncipe encantado da pintura que John reconheceu o olhar como o do rapaz. Ela esperou placidamente por protestos e indignações do alfaiate, John pode ver em sua expressão tensa e testa curvada, mas ele reconhecia não ser ninguém para julgá-la. Naquela terra, era ela que fazia os julgamentos.

John Taylor somente esperou pela história.


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