Marco Zero escrita por Datenshi


Capítulo 3
Passagem 2: A loja de inventos


Notas iniciais do capítulo

Um Gramado no meio do nada? Um garoto esquisito que oferece ameixas? Onde Melissa foi parar...
Nesta passagem é mostrado para o leitor que Marco Zero não é apenas graminha e moinho. De um modo metafísico, Alcest mostra a Melissa a porta para o mundo exterior, onde um novo personagem deste estranho mundo é apresentado...



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Passagem 2: A loja de inventos

            O caminho pela frente era longo. Melissa já havia caminhado uns oitocentos metros e nada de surgir algo no horizonte curvo e gramado. Alcest não estava cansado, continuando a falar seus pontos de vista sobre o mundo que o cercava, até que a garota o interrompeu com uma pergunta que lhe deixou surpreso:
            - Tem certeza de que este é o caminho certo sabendo que mais à frente só tem mais grama?
- Como eu tenho de ter certeza? Foi você que preferiu andar por este caminho...
            Melissa apertou os olhos de raiva. O garoto continuou:
            - O caminho correto era pro lado oposto.
            Apenas o moinho queimado modificava a visão verde e azul. Retornaram todo o percurso até entrarem no local semidestruído. Uma poeira rala e baixa estava por toda parte, além de objetos estranhos e coloridos que estavam espalhados pela sala central. As engrenagens moviam-se conforme a força do vento aumentava ou diminuía, dando sempre uma impressão de que as paredes de madeira estivessem prestes a cair.
Era bem mais escuro ali dentro do que no gramado. Apenas feixes da luz do sol passavam pelos buracos e frestas na madeira, além de uma porção de luminosidade que era trazida pela enorme janela no alto da torre, com as pás do moinho passando alternadamente.
Melissa viu várias caixas, com carimbos alertando fragilidade, amontoadas nos cantos da sala, além das pilhas de livros maiores que uma pessoa comum. Papéis com anotações estavam espalhados por todo o chão, junto com a típica palha seca.
- Vai ficar aí parada? – Alcest estava a espera-la ao lado de uma porta azul.
- Foi mal... – desculpou-se.
- Por favor, você poderia pegar aquela caixa ali pra mim? – ele pediu educadamente e, por causa desta cordialidade toda, a garota o atendeu. – Devemos sempre estar prevenidos, non?
- Prevenido de que!?
- Hehehe!
- Por que você está sorrindo!?!?
- Este universo é um holograma integrado...
- Er...
- Tudo bem, sem comentários e explicações adicionais. Temos de ir pegar esta minha encomenda.
Alcest abriu a porta. Revelou apenas um corredor com uma porta em sua extremidade. Ele continuou andando, acompanhado por Melissa, abrindo a saída. Entraram em um salão idêntico ao hall do moinho queimado.
- Voltamos!
- Calma, calma! Nós NON voltamos ao moinho.
- Nós VOLTAMOS ao moinho... – retrucou, reparando nos feixes de luz do sol pelas frestas na madeira, caixas e pilhas de livros.
O garoto espantalho abriu a porta. Não estavam abaixo de um céu azul e límpido. O céu lembrava uma grande lona alaranjada. Não se via o gramado infinito. Agora a vista era uma campina de grama vermelho-claro, cortada por uma estradinha de terra dando até uma pequena vila de construções estranhas. Melissa ainda notou que algumas das casas de paredes tortas lembravam as casas do seu mundo, se bem que falar de “outro mundo” causava certo desconforto à garota e, ao mesmo tempo, contentamento: antigamente adorava tapear suas primas mais novas dizendo que era uma alienígena.
- Onde estamos? –perguntou imediatamente assim que saiu de suas lembranças.
- Ali é Burggin, uma vila de engenheiros, artesãos e comerciantes. Eles têm de tudo um pouco...
Pela estrada estava passando um garoto aparentemente humano, da mesma idade que Melissa. Ele segurava uma bicicleta de pneus tortos e armação distorcida. O cabelo negro e oleoso caía até o queixo. Estava vestindo uma camisa preta simples, junto com a calça jeans marcada pelo uso constante.
- Alcest! – saudou.
Os olhos negros oscilaram, definindo uma expressão de dúvida, ainda sim expondo contentamento por ter encontrado o antigo amigo:
- O que aconteceu com a sua bicicleta, Larsh?
- Fui deixar as entregas da loja em uma casa depois da floresta. Acabei me ferrando com aquelas criaturas que aparecem à noite e por pouco não fiquei pior do que minha bicicleta...
Alcest olhou para Melissa. Ela deveria estar se perguntando “Criaturas estranhas que aparecem à noite!? Onde é que eu vim parar!?!”.
- Esta é Melissa, uma garota recém-chegada lá pelo gramado... – ele a apresentou para Larsh, que limpou a lama da mão na barra da calça e estendeu-a, cumprimentando a garota. – A propósito, sr. “entregador de encomendas”... onde está a minha encomenda da loja?!
- Já deve ter chegado na loja.– explicou o garoto. - Estou voltando agora para lá, não querem ir pegar a encomenda?
- Esse era pra ser o seu trabalho... – lembrou, com sarcasmo.
- Larga de ser preguiçoso. – sorriu. - É bem ali...
Seguiram para dentro da vila, que além dos típicos humanos, personagens estranhos a habitavam: gatos falantes e seres que lembravam fadas, só que vestindo jardineiras verdes.
Um quarteirão, dois quarteirões, três...
A visão daquele lugar enchia os olhos de qualquer um, porém causava bem mais impacto à mente de Melissa, até porque... cá entre nós, não surgem gatos falantes e fadas estranhas todo os dias.
O trio parou em frente a uma loja azul, no final da quarta esquina. Havia uma grande placa onde estava escrito “Loja de Inventos do Senhor Iglio: Manutenção, troca, venda, compra e contrabando. Um cliente satisfeito é sinal de dinheiro no nosso bolso!”. Logo que abriram a porta, um sino tocou. De dentro, um homem gordo e velho, de olhos puxados e bigode ralo, usando um estranho chapéu-balão, surgiu nos fundos da loja, berrando:
- Demorou demais na última entrega, tem um pacote para hoje, nas redondezas. O nosso cliente em St. Poltien reclamou agora a pouco dizendo que não chegou sua encomenda... O que foi isso!?
- Quando fui entregar a encomenda de St. Poltien, fui surpreendido por umas criaturas na floresta, que me roubaram os pacotes e acabaram com minha bike...olha só...
Larsh levantou os restos metálicos da bicicleta. O velho Iglio não deu atenção ao objeto do rapaz, reparando nos dois acompanhantes dele:
- Aquele eu sei que é o espantalho que mora no campo! Mas, quem é ela?
- Ela chegou lá pelos gramados hoje de manhã. – Alcest explicou. – Non trará problemas, posso afirmar.
- Forasteiros não são bem vindos por aqui. Você sabe as leis, espantalho: se a garota sair da linha, o Governo acabará pisando por aqui...
Espantalho. Só agora Melissa havia notado a enorme semelhança de Alcest com um espantalho de milharais. Observou que as “fitas coloridas” que saíam das mangas longas da camisa eram na verdade palha seca de todas as cores. Aparentemente era só este o indício que o seu guia fosse, outrora, um objeto inanimado.
- Senhor Iglio, todos nós desta vila sabemos que Alcest não é culpado dos crimes que lhe acusaram e Melissa é uma garota que não irá causar problemas. Você só está assustando-a. – falou Larsh, defendendo os seus amigos.
- Ninguém pode afirmar que ele é inocente. – disse o velho. – Não me importo com seus comportamentos, só não quero o Governo nas redondezas com todo aquele aparato tecnológico...
- Eu queria apenas pegar minha encomenda. – Alcest já estava impaciente.
O velho Iglio mostrou um caderno velho. Abriu-o e folheou algumas páginas, encontrando o nome do pedido.
- “Pacote Fss-192.”– pigarreou. – Acho que a alfândega pegou meus carregamentos, ainda não chegaram meus caixotes por aqui... Devo ter perdido este pacote, sabe como são estes guardas da alfândega, sempre desviando o rumo das coisas...
- Mas eu paguei por isto!!!
- Com o seu pagamento eu paguei o salário atrasado do meu único empregado...
Todos olharam para Larsh.
- Bem...eu...eu...eu já gastei o dinheiro!
- MAS EU PAGUEI POR ISTO! – o espantalho quase chorava de tristeza.
- Podemos fazer uma troca justa.– Iglio colocou uma mochila jeans em cima do balcão. – Achei isto no meu jardim hoje cedo.
- MINHA MOCHILA! – Melissa gritou, correndo para pegar seu objeto.
O dono da loja esticou seus braços, levantando a mochila o mais alto que podia, e onde a garota não conseguia alcançar. Pelo grito da garota, o velho ambicioso percebeu que a mochila possuía algum custo.
- Na-na! – brincava jogando a mochila de um lado para o outro com seus grandes braços molengas e elásticos. - Vamos fazer um trato: vocês três irão entregar um pacote na grande cidade de Primaria e levarão a mochila da moça com vocês. Se inventarem de fugir ou desviar o caminho, eu chamarei os guardas do Governo para prender o espantalho e a mocinha de sapatos estranhos.
A garota olhou para os próprios pés. Ainda lhe restavam os all-stars...
- Primaria? – Alcest perguntou. – Eu não posso entrar lá! Fui banido daquela cidade!
- Procurem um jeito... – respondeu friamente o dono da loja.
- Irá me prender por que? Que motivos eu tenho!? – Melissa já estava com nojo daquele porco capitalista.
Um braço elástico e mole do velho ergueu-se até a prateleira, pegando um embrulho menor do que um palmo. Abriu um sorriso sarcástico:
- Aqueles guardas são facilmente comprados por mercadorias e informação...tfhehe!
Alcest olhou para Melissa, e vice-versa. Era uma situação crítica.
- Está bem...- disse o espantalho. – Dê a mochila para a garota. Eu irei entregar este pacote ordinário, nem que eu me arrisque por isso...
- Não vá! Deixa a mochila pra lá! – falou Melissa.
- Eu irei de qualquer forma, Melissa. – Alcest tomou o pequeno embrulho das mãos do dono. - Este velho maldito só quer um motivo para me entregar aos guardas!
Os dois entreolharam-se. Realmente precisava daquilo? O velho Iglio, que trabalhava na loja desde que o vilarejo foi montado, se tornando um verdadeiro porco capitalista. No início da loja, ele presenteava as crianças camponesas com aviões de brinquedo e doces das mais diversas formas e sabores, agora não passava de um mesquinho comerciante, que nas últimas noites não voltava para sua casa, ficando sempre trabalhando em algo secreto nos fundos do estabelecimento. Ninguém do vilarejo sabia ao certo o que havia sugado toda a felicidade daquele homem que estava acabando nos negócios...
- Eu aceito o seu trato. – confirmou Alcest.
Melissa tentava pôr ordem nas coisas:
- M-mas não precisa ir! Não precisa toda essa confusão pela minha mochila! Eu posso viver sem...
- Eu também vou! – Larsh levantou a voz.
- E suas entregas!? – berrou Iglio. – Não vai sair daqui sem fazer suas...
- Eu me DEMITO! Não agüento mais esse seu blá-blá-blá chantagista. Se quiser que seus sócios recebam os pacotes, faça você mesmo suas entregas! – o garoto jogou a bicicleta quebrada na parede. – Vamos embora!
Então os três bateram a porta da loja de inventos e saíram enfezados pelo meio da rua simples do vilarejo.


- Eu não agüentava mais! Eu não agüentava mais!
- Calma, Larsh. Foi até melhor ter se demitido porque aquele velho só estava te explorando... – a garota o consolou.
- Verdade. Vai ser bom fazer esta entrega com vocês. Faz um tempo que não ando em Primaria.
- Teremos de pensar em um jeito de entrar lá sem que me vejam...
Melissa, Alcest e Larsh caminhavam pela rua, já desembocando na estrada de terra. Estavam seguindo para além de onde suas mentes ordenavam, impulsionados pela grande amizade que estava por nascer...

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