Marco Zero escrita por Datenshi


Capítulo 16
Passagem 15: Poder e Degeneração




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Passagem 15: Poder e Degeneração

O ar estava denso e gélido como os corações daqueles que estavam confortavelmente aquecidos ao lado de cinzeiros lotados com as sobras de longos cigarros entorpecentes ou sob os braços de prostitutas maquiadas com fortes sombras escuras e grossos traços de lápis ao redor dos olhos. Era a vista dentro dos suntuosos aposentos púrpura-morta da Torre T ou em grandes apartamentos decorados em cinza-apático na Varddi Boulevard, parte nobre e rica da primeira cidade fundada em Marco Zero.
Não havia ninguém nas ruas. Poucos costumavam ficar acordados àquela hora, exceto os estranhos seres que trabalhavam nas largas caldeiras e nos alçapões faraônicos na área mais baixa da cidade, no confuso Redondo-Primário-Industrial VI, um dos doze centros de produção em larga escala de produtos que eram exportados para outras cidades e consumidos pelos poderosos do Governo. A cidade descansava ao som da nênia nitro-mecânica fabricada de estranhos zunidos e ruídos borbulhantes produzidos pelas máquinas das usinas dos Redondos-Primários-Industriais. Entretanto, todos descansavam por causa das indicações de seus relógios – todos os moradores dali usavam relógios de pulso ou grandes marcadores redondos no pescoço, como acessório de enfeite. Aquela escuridão noturna era típica da região, que sempre permanecia imersa na noite.
Subindo até as nuvens azuis de um céu roxo-escuro e voando além daquele amontoado de prédios, fios, máquinas, criaturas e informação compilada em formas distantes da nossa realidade repulsiva, todos agrupados na forma da Cidade-Relógio, que ocupava uma circunferência com diâmetro de vinte quilômetros, mergulhamos até o vasto campo escuro.
Um vento cortante caía sobre a extensa faixa de asfalto negro, que começava das entradas de Primaria, seguindo sobre a planície perfeitamente reta até doze quilômetros depois, quando o asfalto dava lugar ao cinza-tédio do solo de um pedaço de Marco Zero consumido pelo tempo. Como sinalização, algumas rotas eram traçadas com postes de luzes amarelas, formando ligações retilíneas entre os doze principais portões de Primaria e a área além do asfalto.
Era em uma destas rotas, a que estava posicionada, se vista de cima em uma altura considerável, no número dez do Relógio-Estado, onde um homem esperava alguém. Ele havia coberto as suas mãos com espessas luvas de couro preto. Lembrou de cobrir a sua terceira mão, do braço escondido nas costas. Aquilo sempre dava aos outros uma breve impressão de que ele fosse corcunda.
O homem, sem nenhum fio de cabelo sobre a cabeça, abotoou o sobretudo negro de faixa vermelha horizontal na altura dos ombros.
- Eles sempre atrasam... Já está se tornando marca registrada deles...
Gunter olhou para trás, encarando a trilha de luzes amarelas e, bem mais ao longe, as luzes frias de Primaria. Era típico de seus modos usar um pincel para marcar a expressão de suas sobrancelhas. Ultimamente não estava se importando com isso. A aparência não era tão importante como os negócios e os acordos que estava se dedicando.
Ele estava de pé, na frente do que parecia ser um banco de praça futurista, feito de metal negro e vidro. O Coletor sentou, projetando seu corpo para frente e apoiando os dois braços sobre os joelhos. O terceiro braço saiu do sobretudo, tateando a sua cabeça lisa.
- É verdade que esse braço a mais foi um prêmio da Rainha, Gunter?
Um homem bem mais alto do que Gunter se aproximava. Era quase um fantasma no meio daquela paisagem desértica e escura de céu e asfalto. O capacete que o estranho usava deixava somente sua boca à mostra, a única parte do corpo visível além das roupas cinza-azulado de aspecto cinza-azulado. A pele daquele pedaço de rosto era ligeiramente cinzenta. Mais acima, duas esferas de metal azul polido protegiam os olhos, fixadas em um suporte preto que envolvia toda a cabeça daquele homem. Aquela postura obscura, a alta estatura, o corpo esguio e o caminhar silencioso denunciavam frieza e sobriedade a quem o observasse, algo parecido com o que acontecia ao Coletor.
- Finalmente você chegou...
- Eu notei que você estava apressado demais quando me pediu para vir até aqui. – ele sorriu. Gunter viu presas afiadas. – Afinal, você nem respondeu a minha pergunta...
Gunter puxou o terceiro braço para dentro das vestes.
- Eu não me atrevo a se referir a ele como prêmio...
- Compreendo, Gunter. – apertaram as mãos. – O que fez você me obrigar a voar cinco horas até aqui? Ajustes no acordo?
- Apenas algumas instruções, Asaf...
Ele sentou-se ao lado de Gunter. Os dois observaram a paisagem inóspita durante alguns segundos.
- Malquiad contratou recentemente você e os seus recursos, não é mesmo?
- Aquele velho não sabe brincar com fogo, Gunter...
- Você e o seu grupo inteiro não recusou ajuda à Rainha e sabe perfeitamente de cada passo de nossos planos.
- Claro! – Asaf soltou gargalhadas. – É a nossa Rainha, Gunter, a perfeita Garota de Cristal para moldar a nossa existência sofrível em sonhos delirantes.
- Se você está disposto a ajudá-la...
Asaf se inclinou para Gunter. Não havia falsidade ou hipocrisia naquela conversa, como havia nos diálogos entre os Governantes no prédio central de Primaria.
- Eu me curvo diante dela e a força de sua sabedoria repousa na sombra de nossas armas. Somos todos dela, somos todos um só.
Gunter sorriu. Sentiu a sinceridade das palavras do líder mercenário de Granadiana.
- Eu me admiro com as suas palavras. Você deveria estar servindo a ela no meu lugar, ao invés de liderar mercenários por informação.
- Não é utopia, Gunter. Nós teremos nossa vez de lograr tudo o que quisermos quando a Rainha subir aos céus, com cabos, fios e maquinarias, sorrindo contente por dividir sua sabedoria conosco.
- E está próximo, Asaf. Diga aos seus homens que esperem a ascensão.
- Eles esperam, fervorosos, a cada dia.
- Nós teremos de esperar o momento certo para a Rainha se levantar do trono oculto em Cernes e proclamar os seus domínios. – Gunter se levantou. – Enquanto este dia não chega, continue seguindo as ordens de Malquiad, mas não esqueça dos nossos propósitos.
- A Rainha não corre este risco, Gunter. Se for necessário, eu sacrificarei alguns homens de minhas tropas para manter a máscara do plano.
- Não será preciso. Malquiad não é tão tolo para não reconhecer suas próprias limitações.

*  *  *

            Os cartazes retangulares, estirados diante dos modernos casarões vitorianos da estreita Segunda Avenida, apresentavam figuras e paisagens deformadas pela superfície trêmula ocasionada pela ventania que descia sobre o centro de Quadrinera. A manhã nublada era rica de pequenos detalhes que passavam despercebidos pelos sentidos de forasteiros, como o barulho das caldeiras nas fábricas ao longe, o cheiro da boa comida dos restaurantes de esquina saindo de suas venezianas ou o frescor gelado da brisa matinal combinado ao fraco calor da luz solar.
            - Suba a escada!
            Duas pequenas criaturas feitas de madeira, trajando macacões azuis manchados de tinta e cola, tentavam pendurar mais cartazes na frente dos casarões.
            - Vamos, Vitorillu, suba a maldita escada!
            - Por que você não vai lá e pendura o cartaz, Marcielu?
            - Capitão... – chamou. – Parece que o Vitorillu não está querendo colaborar conosco...
            - Vitorillu, ande logo com esse serviço!
            - Mas, Capitão, eu tenho me-me-me-do de altura!
            Janni usava um sobretudo cinza com detalhes vermelhos e um chapéu de pirata, lembrando o do lendário Capitão Gancho, sobre a cabeça. O longo cabelo em formato de trança repousava sobre suas costas.
            Ele e o bando de marionetes, cerca de vinte a trinta, estavam mobilizados sobre a calçada da Segunda Avenida. Passava das dez horas da manhã e todos os bonecos de ventríloquo estavam fazendo pequenos trabalhos. Vitorillu e Marcielu penduravam cartazes com anúncios de peças teatrais no topo dos casarões da avenida. Azevillu tocava uma melodia depressiva em um acordeão, ganhando trocados dos que passavam por perto. Resorchiallu e Nevenllu lavavam as calçadas enquanto Charoteallu, Benedivessu e Halquerillu limpavam a vitrine de uma loja de antiguidades. Os outros estavam bastante concentrados nos seus trabalhos.  Janni coordenava cada membro de sua tripulação. Era uma tarefa fácil, devido à disposição e lealdade dos bonecos, mas Janni não se sentia muito bem: estar fora de seu zepelim era como ser um peixe fora d’água.
            - Medo de altura!? Que porcaria é essa, Vitorillu!? Até não parece que nós já voamos além dos quatro mil metros de altura!
            - M-mas eu tenho medo quando a altura é pertinho do chão-ão!
            O Capitão apertou os olhos.
            - Hoje eu prometi pra mim mesmo que não irei me estressar com vocês, principalmente você, Vitorillu... – Janni abaixou a cabeça, deixando a sombra do chapéu esconder seu rosto. – Narcissu!!!
            - Sim, Capitão? – o boneco gritou da outra esquina. Estava vendendo jornais para os pedestres.
            - Venha aqui e substitua Vitorillu.
            Nevenllu deixou o rodo cair e Charoteallu escorregou em uma esponja molhada. Todas as marionetes olharam, espantadas e perplexas, para seu capitão. Não houve nenhum soco, nenhum tapa ou ato brutal contra um semelhante.  Narcissu deu com os ombros:
            - Tudo bem, Capitão.
            Todos voltaram a trabalhar. Narcissu largou o suporte onde guardava os jornais e subiu a escada, pendurando o cartaz no lugar onde deveria ser posto. Vitorillu vestiu o suporte e iniciou seu trabalho como jornaleiro na esquina.
            - Extra! Extra! Antiguidades a preço baixo na...
            Marciellu olhou para o seu capitão, perguntando:
            - Capitão Janni, falta muito para ganhar um bom dinheiro?
            - Continue trabalhando para conseguirmos o bastante.
            - Bastante para fazer o quê, Capitão?
            Janni posicionou o braço esquerdo atrás das costas e, com o membro direito, tirou o chapéu, colocando-o sobre o peito.
            - Vamos nos mandar daqui em breve, Marciellu.
            - Mas eu pensei que...
            O Capitão abriu um sorriso sarcástico:
            - Epa! Marionetes não pensam!
            - Desculpe, Capitão...
            - Mas... O seu caso é bem diferente das demais...
            Ambos observaram Harlenrillu ter problemas com o balde de cola: tiras grandes de papel pregaram na sua perna, fazendo-o tropeçar e rastejar pelo chão, pedindo auxílio às outras marionetes.
            - Veja pelo lado bom, Capitão: ao menos eles ainda sabem diferenciar as cores, falar e fazer tarefas. – Marciellu levou a mão de madeira ao rosto redondo.
            - Prossiga o seu pensamento anterior, Marciellu. Eu fiquei curioso...
            - Eu pensei que nós havíamos encontrado o Enviado, digo, a Enviada.
            O Capitão franziu a testa.
            - É... Pensamos ter encontrado...
            Um berro veio da esquina. Vitorillu vinha correndo, por pouco não deixando cair os jornais pelo caminho:
            - Capitão! Capitão! A garota que salvou o zepelim! Ela está vindo com seus amigos!
            Melissa, Viollet, Alcest e Larsh cruzaram a esquina. Ficaram pasmados com aquela mobilização de trabalho por pedaços de madeira falante.
            - Janni! – todos exclamaram, indo de encontro ao amigo.
            Todos se cumprimentaram, abraçando-se e sorrindo, como em todo bom reencontro que presenciamos. Logo atrás do grupo, esperavam o Superior Laziö e o Sênior Teodor, este sorrindo alegremente como se fizesse conta de mostrar todos os dentes da boca.
            - Quantas marionetes, não é Laziö? Nunca vi tantas no mesmo local desde aquela feira em Russengbaun!
            - Ora, Sênior, é uma tripulação pirata...
            - Ué... E onde estão os tapa-olhos das criancinhas?!
            - Acho que eles NÃO usam tapa-olhos, Sênior.
            - AAAAAWN!!!
            - (...)
            - Então não são piratas! Que coisa mais estranha!
            - Sênior, nada impede dos piratas serem discretos...
            - Besteira, Laziö, besteira! Você está lembrando o senhor, senhor, senhor Rèko falando deste jeito. “Bua, bua, bua! Nada impede dos piratas serem discretos, Sênior Teodor! Modos! Modos, Sênior!”
            - Não precisava imitá-lo deste jeito, Teodor...
            - Ossos do ofício...
            Os dois superiores da JUBILO deixaram a conversa de lado e se aproximaram do grupo.      
            - Muitos sorrisos por aqui, não é mesmo?
            - É nosso amigo, Sênior Teodor. – Melissa apontou para Janni. – Ele nos trouxe a Quadrinera.
            - Arrã. – o Sênior continuava sorrindo, mostrando todos os seus dentes pálidos como marfim. - Eu vi a sua... sua...
            - Meu zepelim. – Janni completou, sério.
            Teodor bateu com a mão direita nas pernas, como se houvesse ganhado um prêmio na loteria.
            - Sim!!! – exclamou. - Seu zepelim, desculpe-me. Eu o vi aterrissar sobre a pista de pouso na ala norte. Estacionou sua máquina nos hangares?
            - Pedi que fizessem reparos nos motores e no casco... – respondeu o Capitão.
            - Está custando muito caro?
            - Eu e os pequenotes fazíamos uns trabalhos para os mecânicos do hangar C-02. Entregávamos mercadorias e trazíamos máquinas pesadas de Trienaut para cá. Desde então eles são camaradas conosco.
            - Oh sim, lembro, lembro...
            - Isso foi antes da JUBILO ter o controle da cidade...
            O sorriso de Teodor se desfez.
            - Ok, não lembro então...
            Laziö se aproximou do Sênior.
            - Acho melhor nós esperarmos Melissa e os outros no Café Basille.
            - Já que você diz, Laziö... – ele passou os olhos por Melissa, Alcest e Larsh. – Nos encontramos no Café Basille. – virou-se para Viollet. – Você sabe onde fica?
            - Claro que sei, Sênior Teodor. – respondeu. – A três quadras daqui.
            O Sênior Teodor e o Superior Laziö se despediram do grupo e deram meia volta, retornando à rua perpendicular à travessia onde se encontravam.
            - Nós estamos fazendo o possível para sair de Quadrinera hoje à noite. – disse Janni, colocando o chapéu de capitão na cabeça após tê-lo tirado em um gesto simbólico de despedida ao dois superiores da JUBILO.
            - Hoje?! – Larsh e Viollet espantaram-se.
            - O que houve para saírem da cidade tão rápido? – Melissa perguntou ao Capitão, que sorriu.
            Janni, que era um tanto mais alto que a garota, inclinou-se de modo que ficasse a altura dos olhos de Melissa. Afundou as mãos sobre os ombros da blusa de moletom vermelho.
            - Se não fosse por você, nós estaríamos montando outro zepelim. – disse-lhe. – Foi muito corajoso de sua parte ter derrubado aquelas maquinarias granadianas.
            - Nós viemos aqui para convidar você e a tripulação para seguirem conosco até Divania. – falou Melissa. – Seria bom ter a sua ajuda.
            - Eu poderia até ajudar vocês todos, mas a minha jornada é outra.
            - Huh?! – Alcest se espantou.
            Janni se afastou de Melissa.
            - Eu ainda estou procurando o Enviado que trará de volta a minha Carin.
            - Você não viu o que eu fiz no zepelim?! – Melissa teve a impressão de que o selo do pulso estava queimando. – Eu só preciso saber um pouco mais sobre meus poderes e poderei trazer a sua Carin de volta. Não é isso que você quer? Por que ir tão longe quando quem você busca está aqui?!
            Dizendo tais palavras, Melissa esperava notar algum sentimento de esperança nos olhos de Janni.
            Não foi bem o que aconteceu. O olhar do Capitão demonstrou frieza.
            - Porque você não é uma Enviada. – ele encarou-a firmemente. – Enviados são degenerados devido às suas capacidades. Você não é degenerada, e está muito longe disto.
            Os bonecos de ventríloquo pararam.
            - Eu notei o tempo inteiro o seu dom, mas, pelo que sei, ainda não chegou a ser coisa de Enviado. Eu devo favores a você, Melissa, ao garoto, ao espantalho e à moça de rifle bonito.
            - Eu quero ajudar. – retrucou Melissa. – De alguma maneira.
            - Você já ajudou bastante explodindo aqueles granadianos. Agora sou eu que te devo uma. – apertou levemente os ombros da garota, em um gesto afetuoso, e voltou à postura de Capitão. Talvez Melissa não conseguiu compreender o verdadeiro significado das palavras de Janni. Era um pedido disfarçado. Algo que suplicava sutilmente para que não se importasse tanto com ele. Sentimentos vindos do espírito indomável e nômade dos piratas dos céus de Marco Zero.
            As marionetes olharam para seu superior como se esperassem o comando final.
            - Terminem logo os seus trabalhos. – ordenou. – Partiremos ainda hoje.
            E a rua foi enfeitada por pequenos barulhos de pinceladas de cola e tinta, vassouradas pela calçada e pela estranha freqüência aguda de reflexão que havia dominado os ouvidos de todos aqueles que não eram feitos de madeira.

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