Marco Zero escrita por Datenshi


Capítulo 17
Passagem 16: Spray, Giz de Cera, Barbantes Grossos e Muita Tinta Vermelha




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Passagem 16: Spray, Giz de Cera, Barbantes Grossos e muita Tinta Vermelha

            Extensos gramados vermelhos se estendiam sob o céu prateado, preenchido de nuvens densas, frias e opacas, que se confundiam com o metal em volta da janela de vidro. Eram superfícies irregulares, rampas cobertas por carpete vermelho, com alguns picos abençoados pela presença de uma ou duas árvores sem folhas: centuriões de celulose, petrificados pela lentidão do tempo bucólico, a vigiar o campo.
            Quadrinera havia ficado para trás há cerca de três horas. Suas belas construções, seus campos industriais e seus inúmeros soldados da JUBILO estavam distantes por quilômetros e quilômetros.
            A maquinaria-furgão seguia por uma estrada cortada com precisão cirúrgica sobre os gramados vermelhos. O céu escurecia a cada quilômetro percorrido pelo veículo, mais veloz a cada minuto. Havia pressa do motorista em chegar na pacata Burggin. Havia pressa de Viollet para cumprir a primeira fase do plano.
            - Você não fica cansada de dirigir? – Alcest indagou sem tirar os olhos do painel. Fazia pouco menos de vinte minutos que estava estudando o funcionamento interno da maquinaria.
            - É que eu quero chegar logo. – Viollet segurou firmemente o câmbio e passou para a sexta marcha. – Fica difícil conseguir um hotel decente de madrugada.
            - Mas Burggin só tem um hotel e aquilo sempre fica vago, até onde eu me lembro.
            - Você morava por lá, não é?
            Ouviu-se o estalar de palha no pescoço do espantalho.
            - Bem... Em parte sim...
            - O moinho não fica por lá?! – ela balançava sutilmente a cabeça para um lado e para o outro, enquanto girava levemente o volante para manter o veículo na estrada.
            - Sim, fica...
            - Então? Basta organizar suas coordenadas e você estará em Burggin.
            - Tudo bem... (crek!) Então moro em Burggin.
            Viollet suspirou e manteve silêncio. Alcest virou a cabeça para ela:
            - E você?
            - Prefiro não dizer.
            - Como assim “Prefiro não dizer”? Trienaut? Granadiana?
            Ela apoiou o cotovelo esquerdo na janela, batendo os dedos da mão na lataria externa do veículo. Agora segurava o volante apenas com uma mão, posicionada bem no centro do objeto.
            - De qualquer lugar. – franziu a testa. - Já disse que não gosto de dizer.
            - Certo. – Alcest sorriu. - Eu também não disse de onde era. – cruzou os braços e fechou os olhos, ainda sorridente. - Ficamos quites.
            - Você deve ser de Primaria, pelo tanto que falam. - ela coçou o nariz com o dedo.
            O espantalho assumiu uma feição séria.
            - Não. – disse, seco.
            - De onde, então? – Viollet levantou a sobrancelha direita. Desviou a atenção na estrada para o espantalho.
            Os olhos negros se contraíram ao olhar para a paisagem à frente.
            - De lugar nenhum.
            A conversa no banco da frente não violou a corrente de pensamentos que Melissa tecia em sua consciência.  Mesmo após alguns dias, Marco Zero parecia ter mudado muito – era o que Melissa pensava. Sendo uma peça fundamental, recém-chegada em um contexto complexo de disputas por informações (poder), era de extrema importância que procurasse compreender o que estava acontecendo. Talvez estivesse conseguindo.
            Apenas por um instante, ela mirou Larsh dormindo, mergulhado entre as estepes surrealmente reais da Sonolândia. O jovem Sievenen parecia mais cansado do que o normal, mas as marcas da expressão séria que sempre mantinha haviam sumido. Voltou a sorrir constantemente, a falar, ser mais expressivo. Não estava apático, não como Melissa o conheceu, e o cabelo estava com um corte curto. O garoto havia pedido para passar em uma barbearia no centro de Quadrinera antes de sair da cidade: não havia mais cabelos longos e oleosos. Deram lugar a curtos fios espichados para o alto e para os lados, retardando Larsh à aparência de dois anos atrás, mas com as cicatrizes da vida estampadas nas suas retinas castanhas.
            Por algum motivo desconhecido, isso fez Melissa lembrar da espiral marrom formada na superfície da xícara de café expresso que o Sênior Teodor bebia, resultado de quatro ou cinco remexidas em sentido anti-horário para acionar açúcar.
            - Açúcar me faz sentir bem... – ele havia dito para ela e Alcest quando todos estavam sentados em uma mesa retangular no salão reservado do Café Basille, em Quadrinera.
            - Pode pegar diabetes desse modo... – ela o advertiu.
            - Açúcar em excesso no meu sangue? Isso me deixaria melhor. – ele sorriu. Melissa lembrou que ele costumava fazer questão de mostrar todos os dentes quando sorria. – Não vai pegar uma xícara também?
            - Não gosto de café. – ela até aceitaria, mas, recordava-se bem, não estava tão disposta após o que Janni havia dito. Ter grandes responsabilidades te deixa degenerado ou possuir grandes dons te degenera?
            - O café está a seu dispor... Talvez haja outra coisa para beliscar... – disse Teodor, cordialmente. – Alguém sabe se aqui vende rocambole?
            Lazio afastou a xícara de café colombiano da boca, dizendo:
            - Sênior, seria mais apropriado...
            - Ro-cam...
            - ...nós falarmos sobre as metas em Divania...
            - ...bo-le.
            - ... do que escolher entre rocamboles de coco ou chocolate. – o Superior Laziö afastou as xícaras de café da mesa. Viollet recusara o convite da bebida, enquanto Larsh comia um fatia de bolo de maracujá em um prato branco decorado com pinturas verdes. Alcest, como sempre, não se servia de nada e Melissa, por não gostar de café, ficou apenas observando.
            - BEM OBSERVADO, LAZIÖ! – Teodor havia sofrido o efeito da cafeína. - TRAGA OS MAPAS DE DIVANIA!
            - Sim, Sênior. – ele se retirou da mesa.
            - E PERGUNTE AO SUJEITO DO BALCÃO ONDE EU POSSO CONSEGUIR ROCAMBOLE DE CHOCOLATE!
            - Sênior... – Laziö balbuciou, pensando em falar alguma coisa ao Sênior, mas vacilou. - Ah, Sênior... Tudo bem...
            O JUBILO de chapéu-coco voltou os olhos para os convidados à mesa. Foi como alguém ter dado uma martelada na sua face, adulterando os padrões cômicos para uma feição firmemente séria.
            - Nós explicamos a situação de Divania ontem, correto? – perguntou à mesa.
            Todos fizeram que sim. Teodor continuou.
            - A JUBILO está com um contingente de tropas suficiente para apoiar o golpe que os rebeldes de Divania querem fazer. O governante da cidade é Lacza Sonssielmont, um tirano, digamos de passagem. Aquele rato pode ser executado por crimes de lavagem de informação, assassinatos a membros de oposição, censura de informações e manipulação e corrupção de meios informativos.
            Larsh virou o rosto.
            - O Governante Sonssielmont podia ser executado dez vezes!
            - Todas estas acusações devem ser ruins... – Melissa refletiu.
            - PÉSSIMAS! – Teodor bradou. – É por isso que nossos soldados querem ajudar a cidade a se libertar. Além disso, possuiríamos mais um ponto de apoio, bem mais próximo de Primaria e Cernes do que Quadrinera.
            - É em Primaria que são realizadas as reuniões dos Governantes, não? – Alcest perguntou.
            - Isso mesmo, Alcest! – Viollet respondeu ao espantalho.
            - E Cernes é a capital do Governo Echaellon. – complementou o Sênior. - Precisamos dominar todas as cidades próximas de Cernes para conseguir derrubar o governo.
            - Mas não seria loucura? – Larsh se debruçou sobre a mesa. – Cernes é a maior cidade de Marco Zero... Aquilo é um continente inteiro feito de prédios e construções de vidro, plantas e aço azul...
            - Nossa meta é libertar as cidades que estão sob a opressão dos Governantes, caro Larsh. – o Sênior passou a mão pelo chapéu-coco. – Só assim teremos forças para derrubar o governo.
            - Mas e quanto à Divania? O Senhor Samani?– Melissa lembrou que, na última reunião, o objetivo do grupo era encontrar Bernadien Samani.
            - É melhor chamá-lo apenas de Bernardo. – explicou Teodor. – Ele parece não gostar do próprio nome...
            - Sim... E..?
            - Oh sim! Bernardo Samani é do Serviço de Inteligência da JUBILO. Acho que já contei isso a vocês...
            - Ainda não. – Melissa respondeu, mordendo o lábio inferior.
            - Ele foi um dos primeiros a ter contatos com Enviados e possui um vasto conhecimento sobre o assunto. Bernardo já viajou para os locais mais longes, isolados e esquisitos de Marco Zero e pode ajudar você, Melissa, a expandir seu domínio sobre o selo. Isso favorecerá tanto você quanto nós.
            - O único problema é que o senhor Samani está esperando o momento exato de entrar com as tropas em Divania. – Viollet falou, levantando a aba do chapéu. – Ele precisa esperar o sinal dos revolucionários para fazer a investida.
            - Ou seja: não pode sair do front em hipótese alguma. – completou Teodor. – Vocês terão de ir à Divania, como foi dito. Porém... Não existe acesso por estradas à Divania. A melhor solução é pegar um trem em Burggin, com destino à Trienaut, e descer em Divania.        - Provavelmente será a melhor opção, Sênior... – concordou Viollet. – Eu levo Melissa e os outros. Dirijo até Burggin e escolto o grupo até Divania.
            - Está feito.    
            Laziö se aproximava, segurando dois rolos grossos de mapas e anotações. Teodor virou-se para o JUBILO, pedindo:
            – Os mapas, Laziö, os mapas...
            Os mapas... Deste modo esvaeceram as cenas do Café Basille na mente de Melissa. Ouvia-se o vento chocar-se contra a lataria do veículo onde estavam e as vozes de Alcest e Viollet, conversando no banco da frente. Melissa olhou para a sua direita e viu os dois rolos de papel, com cerca de um metro de altura cada, contendo os mapas da região de Divania.
            - Não percam esses dois! – ela viu o Sênior Teodor falar na sua frente em um flash de memória.
             Melissa notou que precisava apertar os olhos para enxergar o que estava à frente. O interior da maquinaria estava escuro. Era o reflexo do ambiente lá fora. Ela olhou pela janela. Viu o denso céu noturno, de cor roxo-emudecido, abraçando as planícies sem cor, outrora vermelhas.
            - Eu tinha me esquecido de acender as luzes aí atrás! – Viollet virou a cabeça para Melissa, que a cumprimentou com um sorriso amigável.
            - Tudo bem... Larsh estava dormindo.
            - De uma maneira ou de outra ele vai ter que acordar...
            Viollet acionou dois botões no painel. Extensas lâmpadas de vapor de magnésio se acenderam nas laterais interiores do furgão, o que acordou Larsh.
            - Já chegamos perto de Burggin? – esfregou os olhos com o dorso das mãos.
            - Estamos no caminho, Larsh... – Viollet fazia uma curva suave pela estrada. – E não vá ficar perguntando “Já chegamos?” o tempo inteiro. Eu sei que é divertido, mas quem está de piloto hoje sou eu.
            - Só você sabe dirigir aqui... – Alcest fazia desenhos sem lógica no vidro da porta ao seu lado.
            - É bom ser útil, sabe? – ela sorriu de modo sarcástico.    
            Os faróis da maquinaria iluminavam a estrada escura. Adiante, uma placa estava no acostamento. Era um retângulo de aço, sem pintura, apenas com algumas indicações.
            “St. Poltien – Leste, 4 km”
            Larsh vibrou:
            - SAINT POLTIEN!
            - A cidade dos sinos! – Alcest exclamou.
            - A cidade dos engenheiros... – Viollet torceu os lábios em desprezo.
            - PODEMOS PARAR LÁ? PODEMOS DAR UMA PASSADINHA POR LÁ?! – Larsh saltava. – Eu PRECISO voltar! Quero passar em casa e me lembrar dos tempos antigos!
            - Não é uma má idéia... – Melissa sorriu com a felicidade do garoto. – Precisamos passar a noite em algum lugar.
            - E se nos reconhecerem? – Viollet lembrou do incidente ocorrido na última visita à Saint Poltien.  – Não quero ir presa novamente.
            - A lei de Saint Poltien é bem clara: crimes de peso uno, como o que você cometeu, são anulados após dois dias...
            - Humpf... Leis de engenheiros...
             
* * *
            Quatro corpos de bronze, cada qual estacionado em uma rota diagonal pendular. Congelados no tempo e espaço, refletindo a luz do disco lunar de desenhos esquisitos na sua superfície, aqueles sinos gigantes faziam a cabeça dos moradores de Saint Poltien martelar idéias perspicazes, padrões exatos de lógica, cálculos enigmáticos preenchendo as lacunas vazias da Razão. Ninguém sabia ao certo quando aqueles sinos foram colocados nas quatro arestas da cidade. Talvez ordem de algum Governante louco. O que unia os interesses dos jovens engenheiros e profissionais das ciências exatas era um só: fazer os sinos funcionarem.
            Uma hipótese: era uma idéia suicida.
            Nunca os quatro sinos tocaram juntos, em um mesmo momento, em uma única badalada. Se tal tragédia acontecesse, devido à ressonância provocada pelo som infinitamente estrondoso dos sinos, a cidade se resumiria a pó e ruínas, seus habitantes seriam explodidos pela força do ar, aumentada centenas, ou milhões, de vezes pela vibração do som. Vindos das quatro direções cardeais, os vórtices sonoros provenientes das badaladas se encontrariam no centro de Saint Poltien, provocando uma onda sonora destrutiva que se alastraria por toda parte, esmagando tudo à frente, fazendo ecoar uma estranha sinfonia de sinos por um tempo incalculável, um embaralhado cacofônico que jamais seria esquecido por aqueles que, quilômetros adiante, o escutariam. Os sinos da destruição, o prelúdio de uma tragédia sem proporções calculáveis pela álgebra e aritmética perfeita de Saint Poltien...
            Mas era apenas uma hipótese. Uma hipótese que todos os habitantes de Saint Poltien se recusavam a acreditar.
            “Os nossos sinos voltarão a tocar! Reluzirão o deleite do emaranhado sônico vindo do metal vibrante!”, diziam os homens nas reuniões das praças, segurando seus esquadros e calculadoras científicas.
            - É... Talvez eles voltem a tocar... – disse Larsh, mirando o Sino da Muralha Leste.
            Olhar para tais corpos gigantes parados no tempo fazia o estômago de Melissa congelar.  Pior estava sendo observar a frente da casa Sievenen, propriedade da família de Larsh.
            Era uma casa de três andares, de pintura bordô e entalhes neo-clássicos na madeira das janelas do segundo andar. Parecia ser muito bonita há anos atrás, quando Alcest era tutor do filho único da família Sievenen, quando o senhor Petrov Sievenen abrigou o espantalho dos problemas em Primaria.
            Parecia. Não havia certeza agora.
            Larsh estava parado na calçada, em frente à sua casa, chocado. Atrás dele, Viollet olhava, abismada, o estado da casa, Alcest tremia de ódio e Melissa repousava a mão no ombro do amigo.
            As paredes estavam pichadas de spray azul. Mensagens estavam escritas em garranchos. “Lixo Sievenen”. “Podridão”. “Vadios moravam aqui”. Eram tantas as expressões marcadas nas paredes de um lugar que fazia parte das lembranças de Larsh.
            - Eu lamento... – Melissa aproximou-se do garoto.
            - Vamos... Vamos entrar...
            O grupo avançou, apenas empurrando o portão de grades de ferro contorcidas em forma de lótus. As árvores do jardim estavam secas. A grama estava morta. Palha seca espalhada por alguns lugares do gramado.
            Havia desenhos pelas paredes internas da casa, rabiscados com giz-de-cera em cores berrantes e fortes.  Mostravam formas esquisitas, mas familiares. Talvez o autor do ato de vandalismo, ou os autores, desejava exteriorizar alguma lembrança – talvez fosse rancor -, mas não possuía coordenação motora suficiente para desenhá-la. Na maior parede do primeiro andar, um afresco pintado de tinta vermelha, com contornos em giz-de-cera preto, mostrava um jovem de cabelos longos, uma garota de cabelos curtos vestindo um moletom com um zíper em tamanho absurdamente exagerado, uma jovem de chapéu segurando um rifle e um espantalho de olhos escuros: todos enforcados.
            “Cada um de vocês vai pagar meu sofrimento”, estava escrito no topo do “afresco”.
             Longos barbantes pretos e vermelhos estavam espalhados pelas paredes e pelo chão. Em certos pontos, os barbantes se entrelaçavam com formas disformes de tinta vermelha coagulada, parte da mesma que estava espalhada pelo chão em longas pinceladas. Larsh se abaixou e encheu sua mão com os fios de tecido entrelaçado.
            - Como ele teve coragem...
            Melissa o viu tremer de ódio.
            - Ele invadiu a minha casa... As minhas lembranças...
            - Ele quer que você o odeie, Larsh. – Melissa desviou o olhar da pintura na parede.
            Larsh apertou o punhado de barbantes na sua mão. Encarou as quatro figuras na parede.
            - É inevitável, Melissa. – Alcest falou. Ouviu-se o farfalhar das palhas do seu corpo rangendo como um augúrio de ódio.
            Vazzi havia voltado para atormentar a todos.

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