Marco Zero escrita por Datenshi


Capítulo 14
Passagem 13: Quadrinera




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Passagem 13: Quadrinera


            O vento balançava as cortinas brancas da janela. Apesar do barulho constante, vindo das ruas, o ambiente naquele quarto de hospital era calmo. O teto estava pintado de cinza e as paredes eram branco-gelo, onde estavam pendurados alguns quadros com autores de nomes estranhos como “Luk Leonard” ou “Gerard Ancielmont”. Havia um guarda-roupa branco ao lado da janela, um criado-mudo e uma cama.
            Melissa descansava sobre a cama. Estava coberta de lençóis brancos e macios. Ela abriu os olhos alguns minutos depois de ter escutado uma sucessão de barulhos típicos de relógios.
            Tic-Tac... Clack! Tic...Tac...Tic...Tac...
Quando notou que não estava sozinha, Melissa virou a cabeça para os lados. Seus olhos cinzentos encontraram um homem de óculos de lentes refletoras azuis, vestindo um terno azul-marinho. Os cabelos penteados para trás lhe davam certa postura culta, além da mão que mantinha esfregando o queixo ao olhar os quadros expressionistas nas paredes.
            - Ancielmont conseguiu alcançar um traço perfeito ao retratar estas planícies do sul... – ele continuou a observar os quadros na parede. - Pensei que você não iria acordar. – disse à Melissa.
            - Você não é o enfermeiro... – Melissa apoiou o corpo sobre o braço direito. Só então havia percebido que estava vestindo um pijama azul-claro, de flores amarelas desenhadas sobre a camisa, e uma calça azul-claro. Acima do criado-mudo havia uma blusa vermelha, semelhante a que Melissa vestia, porém com o zíper triangular, exageradamente grande, com o mesmo aspecto estranho costumeiro de Marco Zero – psicodélico para alguns. A calça verde repleta de bolsos parecia bem mais nova do que a antiga. Ambas as peças de roupa estavam dobradas sobre o móvel.
            - Eu não estou cuidando de você neste momento. Além do mais, eu não tenho uma fisionomia que pareça com a de um enfermeiro. – o homem abriu um sorriso e retirou os óculos. Seus olhos eram castanhos, com pequenas riscas escuras que conduziam à profundidade negra central. – Quando você escutar histórias sobre um homem estranho, que carrega vários relógios nos pulsos, levando corrupção e informação por onde passa, este homem não terá culpa da condição que carrega.  Alguns chamam de maldição, outros de benção. Quem poderá cobrar algo de alguém que nem sequer conhece os desejos, medos ou objetivos? Quem poderá dizer o quanto é benéfico moldar o Tempo presente e manter-se impecável durante toda a eternidade às custas dos pagamentos e almas que se ganham nos contratos por informações?
            - Somente o homem que carregar esta condição. – respondeu a garota.
            - Exatamente, senhorita. – o homem voltou a sorrir. Parecia bastante simpático aos olhos de Melissa. – Porém, eu não estou aqui para negociar vendas.
            O vento que soprava a janela havia parado. A janela, misteriosamente, estava suspensa no ar, como se tivesse sido congelada no tempo. Congelada no tempo...
            - E o que o senhor veio fazer aqui? – Melissa se mostrava curiosa.
            - Não me chame de senhor, senhorita Melissa Mabelli. Prefiro que me trate pelo meu nome. Dievaut Vacchi, ou o “Vendedor de Informações”. Eu tive acesso a algumas notícias estarrecedoras. Diziam que um Enviado havia chegado em Marco Zero...
            Aquela resposta serviu deixar Melissa mais atenta. Poderia correr perigo naquele quarto de hospital.
O homem continuou:
            - Entretanto, não estou atrás de retirar proveito dos seus poderes, como a maioria esmagadora dos grandes administradores deste local faz quando sabe que um Enviado está por perto. – Dievaut puxou uma cadeira para perto de si e sentou. – Eu estou à procura dos meus semelhantes...
            - Existem mais pessoas que conseguem controlar o Tempo?
            Ele deixou escapar uma risada cínica:
            - Você não me entendeu. Não estou me referindo àqueles que conseguem controlar o Tempo, pois eu sou o único que possui este dom. Não sei se a senhorita percebeu, mas eu sou um Enviado também. – ele enfiou a mão direita dentro do terno e retirou um relógio dourado, do tamanho de um palmo de mão, que possuía as suas engrenagens à mostra e ponteiros acobreados. O barulho do objeto era bem maior do que o dos outros que Dievaut carregava. – Este é o meu selo. E, com as palavras que eu havia dito, creio que você já deve ter notado que eu sei que a senhorita é uma Enviada.
            - E o que um Vendedor de Informações ganharia ao buscar um outro Enviado que lhe é semelhante?
            - Não é apenas “um outro Enviado”, senhorita Mabelli. São mais Enviados do que eu e você, mas não chegam a um número maior do que dez. Um número muito alto de Enviados com capacidades especiais vagando nesta dimensão causaria alguma catástrofe.
            Dievaut soltou um suspiro e se levantou. Melissa acompanhava cada movimento daquele homem estranho.
            - Eu queria ficar mais um pouco para que nós conversássemos sobre este assunto, já que coisas deste tipo somente podem ser discutidas entre Enviados. – ele colocou os óculos no rosto. – Tenho negócios nesta cidade. Sorte que o inverno começa na próxima semana. Quadrinera fica mais fascinante nesta época do ano, quando a neve cobre os telhados das fábricas e os guardas da JUBILO, com todos aqueles uniformes, rifles e chapéus, se destacam da paisagem branca.
            Melissa lembrou do incidente no zepelim. Haviam chegado à Quadrinera?
            - E os meus amigos? Você sabe de algo sobre eles, vendedor?
            - Ora, eu sou um Vendedor! – disse, sorrindo. – Se eu soubesse de alguma notícia, teria que vendê-la a você.
            O corpo do Vendedor se tornou translúcido e desapareceu. A cortina voltou a balançar com o vento. Melissa sentiu que o tempo voltara a correr dentro do quarto. Foi então que a porta se abriu.
            Entrou uma jovem de cabelos castanhos, aparentando ser um pouco mais velha do que Melissa. A julgar pelo vestido branco e o chapéu branco, ambos com cruzes vermelhas bordadas, era uma das enfermeiras que trabalhavam no hospital.
            - Oh! Você já acordou?
            - É que eu fui acordada, na verdade...
            - Deve ter sido a janela que eu esqueci aberta! Desculpe-me... você se chama Melissa, não é mesmo?
            - Sim.
            - Seus amigos estavam muito preocupados.
            Ao ouvir a enfermeira, Melissa sentiu o coração relaxar. Sentou na borda da cama. Poderia estar em outro mundo, distante de casa, mas não trocaria os seus novos amigos por nada.
            - Eles pensavam que o seu estado era grave, mas o doutor que te examinou falou que você estava apenas desmaiada. Você lembra do que aconteceu para você ter perdido a consciência? Os seus amigos não quiseram falar sobre isso.
            Melissa abaixou a cabeça e pensou se deveria falar ou não. Algo sacudia a sua mente para que mantivesse segredo. Aquela conversa com o estranho Vendedor esclareceu parte das suas dúvidas.
            - Tudo bem se não lembrar. – a enfermeira sorriu, simpática. – São apenas perguntas de praxe do hospital. Você toma algum medicamento diário?
            - Não.
            - Fuma ópiomug, bebe álcool freqüentemente, ingere echo-drops, virii ou blacktrack?
            - Não... O que são blacktrack, echo-drops, ópiomug e virii?
            - Você deve ser muito nova para ter escutado sobre estas coisas... As suas roupas foram trocadas, você percebeu?
            - Notei...
            - Uma JUBILO que acompanhava você, acho que se chamava Viollet, pediu que eu deixasse isto aqui. São roupas de inverno.
            Melissa se levantou. Pegou as novas roupas com as mãos e levantou-as. Abriu um sorriso.
            - Parecem com as minhas roupas antigas, só que novas e... – a garota examinou cuidadosamente o corte do tecido. - ...com um estilo novo.
            - É a nova tendência em Marco Zero. Foi o que disse a jovem... – explicou a enfermeira. – Nossa!!! – a enfermeira exclamou ao observar o rosto de Melissa. - Você parece estar faminta! Quer que eu traga algo para comer?
            O estômago de Melissa se contorceu.
            - Alguns biscoitos, torradas com geléia e um copo de leite. Isso basta? – a enfermeira  caminhou até a janela e fechou-a.
            - Eu ficaria muito agradecida!
           
* * *
           
            O ambiente fora do Hospital Acadêmico de Quadrinera, onde Melissa estava, era movimentado. Os prédios, de arquitetura vitoriana, comprimiam as ruas, a modo que parecessem bastante estreitas e sinuosas. Não se via desorganização pelas ruas de Quadrinera: eram traçadas retas, atravessando os quarteirões de prédios, armazéns e fábricas, entre algumas praças que abrigavam árvores de poucas folhas, e as quadras eram bem definidas, exibindo o grande planejamento que a cidade sofrera na sua construção.
Sobre o asfalto negro passavam vários caminhões portando de maquinarias desmontadas e grandes caixas, vindos das fábricas dos subúrbios da cidade, junto de pequenos carros (quase todos os carros convencionais eram de cores cinzentas ou escuras, de formato não tão redondo quanto os nossos carros, e seu cano de escapamento era distorcido para o alto, de modo a soltar fumaça como soltam os ônibus do nosso mundo), soldados da JUBILO dirigindo motos ou pequenas maquinarias voadoras.
Pelas calçadas andavam pessoas comuns, vestidas com casacos, sobretudos, cachecóis e roupas de tecido grosso para se protegerem do inverno que estava por vir. Alguns transeuntes se destacavam, como os membros da JUBILO que sempre usavam estranhos chapéus (e estes pareciam variar conforme evoluíam sobre sua hierarquia militar) e seguravam rifles, ou os operários das fábricas de Quadrinera, reconhecidos pelo capacete amarelo, com um hexágono cinza pintado na borda frontal, e os macacões, repletos de bolsos e chaves de fenda, por cima de suas roupas.
Alcest cruzou a avenida. Subindo a calçada, o espantalho reparou em dois soldados da JUBILO que penduravam um cartaz sobre os tijolos cinzentos da parede de uma tabacaria. O cartaz possuía o desenho do estereótipo típico de operário que era fácil de ser encontrado em Quadrinera. Estava escrito:
            “JUBILO: avante para a igualdade!”
            - Estão tão explícitos assim? – os olhos do espantalho oscilaram. – Há algo de errado, Larsh?
            O garoto vinha caminhando logo atrás, com suas mãos enfiadas nos bolsos da calça jeans. Desviou de dois pedestres que vinham distraídos, que nem sequer o viram, e atravessou a avenida quando os veículos pararam por conta da luz laranja do semáforo.
            - O que há de errado? – indagou para si próprio, irônico. - Nós termos deixado o hospital há meia hora! – respondeu.
            - Ora, Larsh! – Alcest ergueu os ombros, franzindo a testa. – Precisávamos procurar Viollet!
            Os dois pararam no meio da calçada.
- Ela disse que voltaria logo...
            - Ela nos falou isso há quase duas horas, Larsh.
            - Por que nós não voltamos para o hospital? E se a Melissa já estiver acordado?
- Você tem razão. Vamos esperar Viollet no hospital.
            Larsh e Alcest voltaram caminhando para o hospital. Ficava distante a apenas quatro quadras do ponto onde estavam.
            - As palhas do meu pescoço estão enrijecendo... – Alcest cutucava o seu pescoço com as mãos de madeira talhada.
            Larsh observou por alguns instantes as outras pessoas na rua.
            - Por que você não compra um cachecol?
            - Seria uma boa idéia.
            - Eu também preciso de uma roupa mais grossa... – Larsh estava vestido com uma calça jeans e uma simples blusa preta. – Este inverno que está por vir não vai ser um dos mais fracos... – ele olhou para o céu e examinou o formato de algumas nuvens cinzentas que estavam passando sobre a cidade naquele momento. – Lembrei agora do que você havia me ensinado sobre a relação que existe entre o formato das nuvens e a neve.
            Alcest sorriu. Era bom ver que o seu trabalho como tutor não tinha sido em vão. Mais alguns metros foram percorridos até que eles chegassem na escadaria de entrada do Hospital Acadêmico de Quadrinera. Subiram os degraus até a porta de vidro. Havia uma garota cabisbaixa, olhando algo no próprio pulso, vestida com uma camisa vermelha de zíper subindo pela manga longa esquerda e uma calça verde repleta de bolsos. Melissa estava sentada sobre um dos sofás azuis na sala de espera.
            - MELISSA! – berraram os dois jovens ao vê-la.
            Melissa levantou a cabeça e sorriu ao ver seus dois amigos entrando na sala. Ela se levantou e foi de encontro a eles, feliz por revê-los.
            - Nós pensávamos que você não iria acordar hoje! – disse Alcest. – Chegamos em Quadrinera no fim da tarde de ontem.
            - Está tudo bem com você, Melissa? – Larsh indagou. Depois, reparou as novas roupas da garota. - Sua roupa está bem ao estilo “Marco Zero”!
            - Sim! Os enfermeiros daqui cuidaram bem de mim... – ela sentiu a falta de algumas pessoas. – Onde está Viollet? E o Janni? E o zepelim, como está? E as marionetes?! Como estão?
            - Tenha calma. – Alcest pediu, sereno. – Viollet saiu às pressas para atender a um chamado da JUBILO. Janni e as marionetes foram comprar as peças necessárias para consertar os danos no zepelim.
            - Oh, tudo bem então... – Melissa sentou no sofá. Larsh e Alcest sentaram ao seu lado. – Todos estão bem?
            - Graças ao poder do seu selo. – Larsh falou, sorrindo. – Nós não sabíamos que estava tão aprimorado...
- Acho que foi a adrenalina... – Melissa escondeu o pulso na manga longa da camisa vermelha. – Queria saber melhor como funciona.
            - Isso você terá muito tempo para saber e, talvez, prática. – Alcest se levantou do sofá. – Provavelmente os membros da JUBILO irão pedir permissão para estudar o seu selo no pulso, Melissa.
            - Por que você fala isso, Alcest? – perguntou.
            - Acho que estamos aqui por uma causa militar... – Alcest olhou para os lados, certificando-se que não estavam sendo espionados. O hall estava deserto. – Quadrinera foi apenas uma das primeiras cidades do Norte a ser dominada pelas tropas revolucionárias da JUBILO.
            - Mas, pelo que eu saiba, Quadrinera deixou de ser anexada ao domínio de Primaria. – Larsh falou, lembrando dos seus antigos estudos de Geografia. – Isso aconteceu quando o governante daqui foi expulso e os membros da JUBILO libertaram a cidade, que sofria com a exploração nas linhas de produção exigida pelo Governo Echaellon e com a desorganização na distribuição de informações, além do tributo extra pago pela população a cada mês.
            - Só que, com a libertação da cidade, os membros da JUBILO ganharam a confiança dos infocratas daqui e tomaram o controle da cidade, o que não acontece de forma bastante sutil. – Alcest gesticulava à medida que explicava a condição histórica do local. – Eu não sou contra o governo de revolucionários como os membros da organização que Viollet participa. Eles estão fazendo um bom trabalho na manutenção de Quadrinera. Já faz alguns meses que a cidade foi dominada e está desenvolvendo cada vez mais o seu potencial com o domínio da JUBILO. Isso assustou o Governo, já que ideais revolucionários se espalhavam facilmente. Não somente isto: os líderes das cidades vizinhas, como Trienaut, Saint Poltien e Divania, estão amedrontados com a rapidez com que os membros da JUBILO fazem novos adeptos e criam novos aliados.
            - Aliados contra quem? – Melissa perguntou.
            - Contra o Governo Echaellon e contra a classe dominante de informações que retém a maior parte das informações conhecidas, criando diferenças de intelecto entre as pessoas que estão sob as ordens deles. 
De fato, era impressionante o nível de informações que Alcest carregava. Larsh cruzou os braços, afundando no sofá. Disse, inexpressivo:
- O problema é que ninguém sabe ao certo até onde vão os tentáculos do Governo...
            Uma voz feminina, vinda da porta, interrompeu as palavras do jovem Sievenen:
- A nossa tarefa aqui é falar os planos de Gunter para a JUBILO, apresentar a nossa nova e poderosa aliada e discutir formas para se sobressaltar diante da ameaça do inimigo!!! – Viollet entrava no hospital. A Caçadora de Informações usava coturnos pretos, que faziam barulho a cada passo dado, uma calça roxa com vários bolsos de formatos diferentes nas laterais e uma blusa de botões, justa, de mangas longas, violeta com listras verticais de cor lavanda. O chapéu roxo de ponta fina permanecia intacto, com a aba frontal levemente dobrada para o alto. Como sempre, o rifle, que mais lembrava um aparato usado pelos desbravadores espanhóis na “conquista” da América Latina, estava posicionado nas costas por um suporte. – Vocês gostaram da minha segunda casa?
- Este hospital? – Larsh sorriu, sarcástico.
- Não! – Viollet olhou feio para Larsh. Ambos haviam entendido a brincadeira. – Estou falando de Quadrinera!
- Oh sim! Melissa ainda não teve oportunidade de conhecer a cidade.
- Por que vocês não me levam para conhecer por aqui? – sugeriu Melissa.
Viollet não estava com o vestido roxo, como conheceram-na Larsh, Alcest e Melissa.
- Uma coisa de cada vez, Melissa. – disse. – Consegui alguns quartos em um hotel deste bairro por conta da JUBILO. Ficaremos em Quadrinera por um tempo indeterminado. O que vocês acham?
- Por mim está tudo bem. – respondeu Melissa.
- Você está com novas roupas! – exclamou Viollet.
- E esta sua roupa nova?
- É a farda da JUBILO de inverno. – respondeu, olhando para a própria roupa.
- Nós precisamos comprar roupas novas para o inverno. – Alcest lembrou. – Larsh está longe demais de casa para ir pegar um casaco.
- E você precisa de algo para esquentar estas suas palhas! – Larsh cutucou o pescoço do espantalho.
- E eu preciso conhecer a cidade!
Melissa se levantou do sofá, junto com Alcest. Larsh jogou a cabeça para trás, olhando o teto. Viollet esfregou as mãos.
- Então, vamos às compras!
* * *
            - Sir Gunter...
            O homem de sobretudo negro levantou o rosto sem pêlo algum.
            - Prossiga, Sir Dargten...
            - Eu, como Governante da Província de Saint Poltien, encontrei pessoalmente dois jovens que apoiavam esta recém corrente ideológica chamada JUBILO, como você havia citado anteriormente no tópico de ameaças da nossa reunião. A garota, de sapatos estranhos, e o espantalho que a acompanhava diziam vir de Burggin. Aqueles soldados estão repassando a sua ideologia de igualdade aos montes! Imagine então o meu pavor por ser governante de uma cidade próxima de uma das bases destes sujeitos!
            Gunter sorriu. Continuava na sala de reuniões do Governo Echaellon, junto de vários outros homens envoltos em capas negras, sentados em poltronas confortáveis, escrevendo com canetas-tinteiro, mergulhados nas trevas.
            “Então a Enviada e o seu bando estão definitivamente na JUBILO...”, refletiu.
            - Todos nós sabemos que a JUBILO é um movimento contra o Governo e a sua obra. – disse Malquiad, do centro da mesa. – Não devemos subestimar a força destes homens. Conseguiram o controle de Quadrinera recentemente, retirando-a da hegemonia de Primaria.
            - Não podemos duvidar da ousadia destes radicalistas, senhores! – bradou um dos homens que estava sentado à mesa.
            - O que faremos? Eu não quero perder o meu conteúdo informativo! – protestou outro homem.
            - Senhores... – Malquiad sorriu. – Peço-lhes calma. Não será com pânico que nós enfrentaremos esta ameaça aos nossos domínios.
            - Continuem cumprindo com as suas obrigações, senhores. – Gunter se levantou. – O que há de errado com uma cidade rebelada em oposição a várias cidades em controle? Ainda possuímos mais informações e o maior contingente de tropas do que eles!
            - O Coletor falou o que deveria ser dito. – Malquiad se levantou. Todos na mesa fizeram o mesmo. – Encerraremos esta reunião por hoje. Peço que voltem para os seus domínios e retornem apenas com o meu pedido.
            Depois de recolherem os seus pertences, todos os homens saíram pela imensa porta de marfim. Atrás do grande grupo que saía, Gunter e Malquiad conversavam algo fora da percepção dos demais.
            - Eles estão em pânico... – Gunter abotoava o sobretudo negro enquanto saía da sala. – Isto facilitará o golpe.
            - Alguma nova notícia de Enviados? A visita feita por Dievaut me foi surpresa...
            - Até agora, somente Dievaut caminha com este título sobre os nossos domínios. – Gunter manteve em sigilo a chegada de Melissa. – Recentemente tive acesso a alguns memorandos antigos, informando sobre a presença de outros Enviados em Marco Zero.
            - Provavelmente são lendas populares, Coletor. – Malquiad, com arrogância, o interrompeu. - E quanto a vossa Rainha? Quando será que ela aparecerá para os seus devotos?
            - Milady ainda está armazenando as principais informações de Marco Zero.
            - Mande algum auxílio médico por minha conta, caso necessite. Quero ter a certeza de que ela me verá com bons olhos no seu reinado.
            - E certamente o verá com bons olhos, senhor.
            Gunter abriu a porta para o governante superior de Primaria. Esperou-o passar e, sutilmente, abriu um sorriso sarcástico.
            - E certamente irá notá-lo...
            Fechou a porta, mergulhando a sala em trevas permanentes.
           
* * *
           
            O sol estava começando a se pôr no horizonte curvo e alaranjado: esta era a visão de Melissa. Ela estava no alto da sacada de um quarto no sétimo andar do hotel onde estava hospedada.
O local era bastante aconchegante, mesmo tendo sido oferecido pela JUBILO. Era um quarto de paredes pintadas de cor creme e móveis que Melissa achava serem do século XIX, mas discordava ao lembrar que estava em Marco Zero. Havia um lustre no centro do teto e duas plantas estavam posicionadas em cada lado da varanda. A cama, muito confortável, ficava ao lado do guarda-roupas de madeira clara. O chão era parcialmente coberto por um grande tapete azul-marinho, do mesmo tom da cor das cortinas que decoravam a entrada da varanda.
Sentada em uma confortável cadeira, Melissa descansava por alguns minutos, relembrando o dia.
O passeio por Quadrinera tinha sido agradável. Melissa lembrava de cada detalhe.  Ela, Larsh, Alcest e Viollet visitaram a Praça de Soulfeherge, onde foi proclamada a independência da cidade perante o domínio de Primaria. Também puderam ver as fábricas de maquinarias, as refinarias de combustível, a Casa Anil (prédio do antigo governo da cidade) e o Quadrado Tardo, lugar que Melissa mais gostou. Tratava-se de uma enorme avenida, rodeada de lojas que vendiam diversos produtos. Os moradores de Quadrinera batizaram o local deste jeito por causa da forma (a área do local era um grande quadrilátero) e porque, nas tardes de ócio, sempre se sentavam nos bancos ao longo da avenida para conversar e encontrar os amigos, como se não estivessem pressa em fazer coisa alguma. O engraçado era que “Quadrado Tardo” cabia perfeitamente ao posto de nome do local. Foi neste mesmo local onde Viollet levou todos para fazerem as compras de inverno.
Nas primeiras lojas, Larsh comprou novas roupas: uma calça jeans e uma blusa preta, semelhantes às roupas antigas, uma blusa azul-escuro de botões, onde vestia por cima da roupa, e uma capa  cinza-metálico que possuía um pequeno capuz. Alcest ganhou uma nova vestimenta, já que a antiga fora danificada por Vazzi. Roupas de espantalho:  calça marrom de tecido liso, blusa de mangas longas de cor azul com listras vermelhas em xadrez, porém a palha continuava saindo das extremidades das mangas. Viollet havia comprado meia dúzia de caixas de doces, paixão que todos ficaram sabendo no instante em que a jovem devorou oito trunfas de chocolate, com recheios variando entre licor, cereja e sacarynne (uma espécie de fruta doce e exótica que deixa a língua estalando por alguns minutos). Melissa, como não possuía cubos de troca para a “compra” de produtos, pediu que Larsh presenteasse Alcest com um belo cachecol amarelo, onde estavam bordados triângulos negros nas pontas.
Alguém estava batendo na porta.
- Quem é? – Melissa berrou da varanda.
- Viollet... – respondeu do outro lado.
Melissa abriu a porta. Encontrou a jovem com um grande sorriso no rosto. Era estranho ver que ela continuava de chapéu mesmo dentro do hotel.
- O que aconteceu?
- Hoje nós teremos uma reunião com os membros de alta patente da JUBILO!
- Hoje?!
- É melhor você descer para o hall. Eu vou avisar ao Larsh e ao Alcest.
- Já estou indo... – sorriu. - Só vou fechar a porta da varanda que deixei aberta.
Melissa se despediu de Viollet e fechou a porta. Caminhou até a varanda. O céu, outrora alaranjado, se tornava roxo-escuro. Melissa viu os últimos raios de sol morrerem sobre Quadrinera, agora iluminada pelas luzes dos postes nas avenidas e pelo vermelho emitido das caldeiras ferventes das fábricas nos subúrbios. Um belo espetáculo.
Fechou a porta de vidro e as cortinas azuis. Minutos depois, desceria para o hall.

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