Marco Zero escrita por Datenshi


Capítulo 11
Passagem 10: Um tutor para o Jovem Sievenen




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Passagem 10: Um Tutor Para o Jovem Sievenen
               
            - Mais canecas de cerveja preta, taverneiro!!! – berrou uma das marionetes daquela mesa lotada de mesmas espécies. – Não vê que nós iremos nos mandar daqui a algum tempo?
            O grupo recém-chegado entrou no recinto, fechando rapidamente a porta para evitar que a água da chuva entrasse. O local estava do mesmo modo de que quando Larsh abriu a porta, com o barulho de conversas, o jazz tocando como música ambiente e as risadas das marionetes estourando vez ou outra.
- O que está achando do local? – repentinamente, Larsh estava animado. Desde que havia chegado em Marco Zero, Melissa nunca vira o garoto tão elétrico e disposto. – Não é o máximo?
- Eu já tinha escutado sobre este local... – Viollet dobrou alguns centímetros da manga longa da camisa de tom roxo para apoiar os cotovelos na mesa. - Pensei que fosse mais amplo...
            - Vamos embora assim que a chuva acabar... Não é? – Alcest estava sentado, de braços cruzados, com a cabeça virada para a janela.
            - Ah, Alcest! Faça uma força pra ficar um pouco mais por aqui! – Larsh insistiu. – A música é tão legal...
Melissa observou os dois. Estavam completamente opostos. Alcest, louco para sair, e Larsh contemplando o local como se fosse um templo.
- Mas, vem cá, isso aqui é um bar? – indagou.
            A música parou. As conversas e gargalhadas também cessaram.
            Os dois homens em trajes vitorianos que conversavam com a serpente do balcão pararam seus assuntos e viraram para Melissa com um olhar repreensivo. A serpente saltou de cima da banqueta de onde estava e se dirigiu até próximo de onde a garota estava. O curioso era que a serpente não rastejava com toda frente do corpo colada no chão. Somente o fim do corpo andava colado no chão, enquanto o resto do corpo se mantinha ereto.
            - O Intermezzo não é um bar. – disse, com a voz ríspida. Inclinou a cabeça para mais perto da garota. – Fique certa de que este local não é do mesmo nível de baixariasss estúpidasss que são feitas em algunsss estabelecimentosss como os de Primaria, Trienaut, Russengbaun, ou Granadiana. Este é um ponto de encontro e de troca de informações, moça. Maisss alguma pergunta?
            Melissa, espantada, observou os olhos profundamente brancos daquela serpente. Todos no local estavam em silêncio, observando a cena (exceto os dois espantalhos que dormiam com as cabeças levantadas, correndo risco de se afogarem na própria baba).
            - Hei, Enzo! Ela é nova por aqui. – Larsh falou, do outro lado da mesa.
            A serpente abriu um sorriso, esticando a pele da sua face quadrada.
            - O menino Sievenen. Larsh, Larsh! Provavelmente… bem, eu devo pedir desculpasss à garota que está na sua companhia, não é mesmo?
            - Fazer o que, né? Eu e a minha mania de ficar perguntando sobre tudo...
            - Eu sou Enzo Quebra-Cabeças, senhorita, o dono do Intermezzo. – saudou a serpente. De repente ela virou-se para os dois músicos no fundo do estabelecimento. – Continuem com a música, irmãosss!
            O homem no piano iniciou uma melodia que mais lembrava alguma sinfonia beethoviana, enquanto o outro homem largou a bateria para pegar uma gaita e soprar alguns acordes, acompanhando as notas do companheiro.
            - O que fazem por aqui? – Enzo balançou sutilmente a cabeça para os lados.
            - Estamos indo para a cidade de Quadrinera. – Larsh falou, erguendo as sobrancelhas e sorrindo.
            - Vocêsss estão bem perto da famosssa Quadrinera. Só alguns poucosss quilômetrosss e vocês estarão por lá...
            Viollet bateu as mãos, esfregando-as. Perguntou:
            - Afinal, qual é o cardápio daqui, senhor Cobra Enzo Quebra-Cabeça?
            - Sem brincadeiras, Viollet... – Larsh advertiu.
            - Oh, desculpe...
            Enzo fingiu um sorriso e olhou para Viollet, que retirou os braços de cima da mesa para repousá-los sobre suas pernas abaixo da mesa.
            - Ora, ora. Temos massasss, bebidasss como cerveja preta e o velho vördrish, e, obviamente, algumas informaçõessssssss.... – Melissa viu quando a serpente desviou o olhar de Viollet e fitou os seus olhos por instantes mínimos até voltar a falar com a subordinada da JUBILO. – Diga-me, ésss uma Caçadora de Informaçõesssssss? A julgar pelo rifle e pelas roupasss.... Também desejasss informações...
            - No momento estou em uma missão para a JUBILO, senhor Enzo... – Melissa sentiu Viollet apertar seu braço por debaixo da mesa. Provavelmente como se dissesse “Estamos te protegendo...” - ...Mas posso lhe assegurar que na minha próxima passagem por aqui eu irei comprar algumas informações úteis.
            - Enzo, você ainda vende aqueles esquorzes de frango e queijo? – Melissa observava que Larsh não tirava o sorriso do rosto quando Alcest jogou a cabeça pra trás, olhando o teto.
            - São seisss Psi o prato, mas como não te vejo faz um certo tempo, Sievenen, faço-o de graça.
            - Perfeito! Quero os esquorzes bem quentes e com bastante molho de tomate!
            O sorriso de Larsh aumentou ainda mais. Enzo saiu e ordenou alguma coisa para um dos homens em trajes vitorianos, que se levantou e entrou em uma portinhola que dava para a cozinha do estabelecimento. Antes que Melissa perguntasse qualquer coisa, Alcest falou com a sua dicção sem sotaque:
            - Esquorze é uma espécie de massa folheada, com recheio de vários sabores, que é levada ao forno com molho e servida com alguma bebida bem gelada...
            - Ah... Tudo bem...
- Como você sabe, Alcest? – Viollet se mostrou surpresa.
- Eu li em uns livros meus...  – respondeu, agora tristonho.
- Você tem livros, Alcest?!? – por pouco Viollet não se levantou da cadeira.
O espantalho virou a cabeça para a jovem:
- Qual o problema de ter livros? Eu tinha uma coleção onde eu morava... Melissa viu, não foi?
- Sim... Lembro de umas pilhas de livros dentro daquele moinho...
- PILHAS DE LIVROS?! – agora Viollet se levantou da cadeira. - Minha nossa! Alcest, você é dono de uma fortuna!!!
- Eram sobre literatura, gastronomia, alguns dicionários e gramáticas, e uns poucos artigos sobre sistemas de informação... Pouca coisa...
- O há de errado em guardar livros? – Melissa perguntou.
Larsh parou de sorrir para ver a cena:
- Livros são fontes densas de informação! – respondeu Viollet. – Quem tem acesso contínuo a eles possui um amplo acervo de informações. Livros! Livros! – ela pôs as mãos na cintura e olhou para o espantalho - Por que você nunca falou nada a nós?
- Bem... Eu não sou nenhum alucinado em informações... – Alcest se levantou. – Eu não sou o único aqui que tem segredos a esconder... – o espantalho caminhou até a porta. – Este lugar não me deixa tão bem. Se precisarem de qualquer coisa eu estarei do lado de fora, contemplando a chuva...
Ouviu-se o estrondo da porta batendo contra a parede.
Viollet desabou sobre a sua cadeira:
- O que ele quis falar quando disse que não era o único que tinha segredos a esconder?
- Acho que você falou algo que ele não gostou muito... – Melissa olhou pela janela, procurando ver o espantalho pela chuva.
- O Alcest não gosta muito do Intermezzo... – Larsh recordava de tempos antigos.
- Será que eu o deixei magoado? – Viollet puxava o seu chapéu roxo para baixo, como se tentasse esconder o próprio rosto. – Eu não queria... Só fiquei espantada porque ele não parece carregar tanta informação...
- Porque ele é um espantalho? – Larsh a interrompeu. – O Alcest é bem além da sua própria natureza, diferentemente dos outros espantalhos que ficam divididos entre os seus instintos animalescos e a vida vegetativa. Foi por isso que ele foi o meu tutor durante alguns anos...
- Tutor?! – exclamou Melissa. - Vocês nunca falaram isso...
- É que ele fica um pouco chateado com o que aconteceu...
A chuva caía no lado de fora do Intermezzo. Alcest se distanciou das paredes do estabelecimento. A grama estava repleta de poças d’água, refletindo as densas nuvens cinzentas do céu. O espantalho se aproximou de uma das poças e viu o próprio reflexo no espelho d’água. Observou as cicatrizes no rosto, o pescoço com costuras novas, a roupa desajeitada e os cabelos molhados inclinados para baixo. A única vontade que teve foi a de contemplar a chuva.
            Repentinamente jogou o corpo para trás, caindo de braços abertos sobre a grama avermelhada. Não se incomodou com a água encharcando as suas roupas. A sua visão se resumia a nuvens cinzentas, àquele imenso infinito chuvoso.
            Se Alcest pudesse fechar os seus olhos negros, certamente o faria. Entretanto, aquelas lembranças vieram à tona sem avisar...

...
            - Bonjour, monsieur!
            - Olá! Nossa… nunca pensei que você fosse chegar tão cedo.
            - Parceque a estrada non estava tão cheia...
            - Ora, jovem... Entre logo na sua nova casa! Ponha suas malas em cima do sofá, depois eu pedirei para a governanta guardá-las no seu quarto. A viagem não foi um tanto desagradável? Sabe que de Primaria para cá é um longo percurso...
            - Non me pareceu ton tortuoise quanto dizem, monsieur...
            - Vejo que você ainda não domina a nossa língua por completo. Você quis dizer “Não me pareceu tão tortuosa.”, não é mesmo?
            - Parfait... Desculpe. Perfeito, monseiur...
            - Não há problema, jovem. Você ficará por aqui durante alguns meses, ou anos, se tudo correr bem. Sabemos que você não foi o culpado por toda aquela coisa que ocorreu em Primaria. Não fique pensando que sua passagem por aqui será um exílio, de forma alguma! Sinta-se em sua nova casa...
            - Fico mui grato, monseiur...
- Quanto ao seu sotaque, você não precisa se preocupar em dominar a nossa língua. Um homem de verdade deve honrar a terra em que nasceu, não concorda?
            - É o que dizem, monseiur...
            - “C’est la vie.” É a vida, como dizem...
            - Oui...
            - O seu novo aluno irá ficar surpreso com a sua chegada, jovem. Larsh! Larsh, meu filho, venha até aqui!
            Um menino de aproximadamente oito anos de idade adentrou na sala de móveis talhados em madeira e quadros expressionistas nas paredes. A criança deixou cair o livro que carregava consigo ao ver o “jovem” que conversava com o seu pai naquele instante.
            - Aproxime-se, Larsh. Este é o seu novo tutor daqui em diante, o espantalho de Primaria, Alcest...
            - Non gosto do meu sobrenome, monseiur... Prefirro que me nomeie de Alcest, somente.
            - Tudo bem, Alcest. Larsh, diga alguma coisa para o seu novo tutor.
            - Ele é um espantalho...
            - Prometo ensinar as suas matérias da escola com dignidad’, mesmo que sejas apenas enfant... A petite enfant...
            - Pai, eu não consigo entender bem o que ele fala!
            - Calma, Larsh. Com o tempo você irá se acostumar ao sotaque do Senhor Alcest...

* * *
           
A porta do Intermezzo abriu novamente. Alcest chamou:
            - Larsh, Viollet, Melissa? – os três jovens pararam o que estavam fazendo para escutar o que o espantalho teria a dizer. – Venham dar uma olhada em algo aqui fora!       
Os três jovens seguiram para a porta. Antes que Larsh passasse pela saída, Alcest o pegou pelo braço.
- Você se lembra do que aconteceu aqui, não?
- Foi algo um tanto marcante... Você não devia ter ido embora. Meu pai ainda queria conversar com você, antes mesmo de se mudar para Cernes. A minha mãe queria ter te costurado o que faltava... Eles ficariam felizes se você aparecesse.
O espantalho sorriu.

* * *

            Na mesa do canto, aqueles dois conhecidos conversavam em um tom de voz baixo, diferentemente dos outros que estavam ali dentro.
            - Eu terei que partir a qualquer hora, Larsh...
            - Você com essas conversas novamente... Isso deve ser coisa da sua cabeça, Alcest...
            - Acho que esse non é o meu lugar... a minha casa. Você deve entender. Non queria ver o rosto do seu pai quando eu ir para longe. Ele confiou muito em mim.
            - Eu sei como o meu pai apostou tudo em você. Ele realmente fez o certo, mas eu acho que você deveria ficar por aqui durante mais alguns anos, até eu sair da escola de St. Poltien. Eu vou precisar da sua ajuda pra passar naqueles testes de cálculo e raciocínio...
            - Há seis anos que eu estou com a sua família. Madame Sievenen parece estar um tanto doente e sempre me parece muito pálida. Ela sempre andou preocupada com o risco que vocês possuem por me manterem longe das garras dos corruptos que pertencem ao Governo...
            - Mas nós poderíamos fazer um esforço maior e...
            - Sua família e você já fizeram muita coisa por mim. Agora eu terei de fazer algo por vocês.
            - Alcest... Mas você é o meu tutor, droga!
            - Você já tem treze anos, Larsh. Já possui um pouco de sabedoria para encarar este aspecto ruim do mundo!  Mesmo que você ainda seja novo, somente os livros non te dirão o necessário para viver. Existem coisas que nos impulsionam a criar motivos para continuar vivendo e nos dão forças para alcançar nossos objetivos e alimentar as nossas expectativas.
            Ouviu-se o ruir das juntas do espantalho.
            - Eu sei que você ainda precisará de alguma ajuda minha, de algum bom conselho de tutor. – sorriu. – Pretendo ir a um local que encontrei em alguns livros que li ultimamente. Non diga a ninguém, mas vou me instalar em Burggin.
            - Por que Burggin?
            Alcest sorriu ainda mais, porém o jovem Sievenen viu que seu olhar estava obscuro.
            - Eu poderei construir o meu próprio mundo por lá com o que ainda me resta... Coisa pouca... - ele se levantou da mesa. - De agora em diante, você non precisará de mim como tutor. O seu professor será a própria vida...
            Larsh esboçou um sorriso, algo que seria raro dali em diante. O espantalho cobriu-se com um manto azul-escuro, escondendo a cabeça com um capuz. Olhou para trás, em despedida.
- Au revoir, meu caro amigo…

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