Marco Zero escrita por Datenshi


Capítulo 10
Passagem 9: Reflexões




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Passagem 9: Reflexões

                O barulho das portas se abrindo preencheu a sala redonda durante alguns segundos.
- Trago boas novas, milady! – disse o homem de olhos vermelhos à jovem de vestido roxo que estava sentada no trono de fios e peças metálicas. - Sei que o vosso poder lograria as informações da minha mente em um só instante, mas tenho o privilégio de poder lhe informar, ó milady. – Gunter reverenciou a jovem, ajoelhando-se. – Segundo minhas fontes me informaram, a Enviada e o seu pequeno grupo de rebeldes estavam pelas ruas da cidade de Saint Poltien.
- Deixe-os de lado por algum tempo. A Enviada não passará de uma pequena ameaça depois de algumas semanas...
- Creio que ela não possui recursos suficientes para liberar tantos poderes. Pelo que eu vi, mal consegue controlar um décimo do que pode fazer. Que assim seja o seu desejo, milady.
- Perfeito, meu servo. – os fios de cabelos moveram-se calmamente. Lembravam o movimento de uma brisa leve. – Meu novo correspondente mandou notícias na noite passada. Permita que ele crie alianças com as cidades que cercam Primaria.
- Eu já estou colaborando. O Governo Echaellon não suspeita da nossa intervenção?
- Nada. – respondeu. – Mas por que te preocupas com isso? Não lembra que a Echaellon entrou em declínio desde o meu surgimento?
- Não me preocupo com a minha existência. Pouco me importo se descobrirem a minha traição ao Governo. Preocupo-me somente com a sua segurança. Sei que nossos esforços estão proporcionando ganhos de poder e informação, mas uma investida das forças do Governo colocaria milady em risco.
            - Meu Coletor, Gunter... – a jovem falou serenamente. – Tão fiel…
            - Só cumpro a minha obrigação, milady, e nada mais.
            O Coletor reverenciou a jovem mais uma vez e caminhou até a porta. Abriu-a e passou. Ele andou até a saída do imenso corredor  de lâmpadas e enfeites metálicos.
Tratava-se de um espaço aberto. Várias colunas de metal projetadas na diagonal sustentavam um teto de vidro onde plantas vermelhas cresciam pelo topo.
Gunter abotoou o sobretudo negro até o pescoço, onde a gola cobria o rosto até a altura dos olhos. Caminhou por um longo tubo de vidro coberto de plantas, chegando na escadaria feita de degraus de cristal e suportes de aço, descendo o emaranhado de fios e cabos de força, o local mais alto de uma vasta cidade repleta de prédios de mesmo estilo e arquitetura, decorados com grandes figuras de cristal e metal azulado. Torres gigantescas funcionavam a todo vapor com suas luzes vermelhas piscando a cada segundo, quase tocando o céu de uma estranha cor azul beirando o marrom. Fontes e pequenos bosques de plantas avermelhadas estavam espalhados pelas praças da cidade, verdadeiros antros de discussão e debates sobre política e economia. Pedaços de estátuas gigantes, como cabeças enormes de guerreiros e esculturas de homens em poses de reflexão, estavam espalhadas pela extensão do território, porém não impediam o avanço das construções e prédios, que pareciam pequenos diante da grandiosidade das obras de arte colossais.
Aquela era Cernes, uma das maiores cidades de Marco Zero.
           


O céu ficara cinzento de uma hora para outra e a chuva caía incessantemente sobre aquela região campestre. O único refúgio para proteger-se da chuva era debaixo das grandes árvores posicionadas no topo de cada colina ao longo da estrada de terra. Nem o gramado avermelhado dava um brilho a mais na vista. As grandes nuvens cinzentas dominavam o céu outrora alaranjado.
A fuga de St. Poltien pegou Melissa e os outros de surpresa. A chegada em Quadrinera estava prevista para dois dias. Já se passaram dois dias e eles não estavam nem na metade do caminho.
De pé, de frente para a campina avermelhada, Melissa mirava o céu da mesma cor dos seus olhos. Esperava pacientemente que a chuva cessasse para continuar o caminho que percorria. Melissa estava com uma das mãos enfiadas nos bolsos da calça de moletom verde. A outra mão, a que possuía a marca de Enviada, estava na sua frente. Ela observava a marca dos ponteiros alaranjados, seguindo em órbitas elípticas. De qualquer forma, sabia que havia algo de surpreendente dentro daqueles rabiscos na sua pele, algo que lhe daria o dom de decidir ajudar a quem estaria certo ou errado por trás de toda aquela alegoria de golpes de governo e organizações de resistência.
Seria uma possibilidade nova. Melissa compreendera o que era capaz de fazer com todo aquele potencial escondido naquela marca estranha. Desde que pulverizou instantaneamente mais de quarenta espantalhos na cena do paiol abandonado, a garota mirava admirada o seu pulso. Demonstrava isso ao observar, admirada, as paisagens de Marco Zero, dando uma certa olhadela no pulso como se agradecesse à fuga do mundo real, ou melhor, do mundo antigo onde vivia. A única vez que presenciou as descargas de energia saindo do seu pulso para deslocar e distorcer as informações em volta foi deslumbrante. Restava apenas saber manusear corretamente o dom que obtivera e tentar fazer o melhor por aquele mundo novo, um mundo que seria uma nova possibilidade de vida sem escola chata ou gente hipócrita. Tinha alguém para deixar para trás? Se não reconhecia propósitos onde estava, em Marco Zero teria o seu novo objetivo: conhecer, lograr informações e ajudar quem precisasse, para conhece-los e buscar mais e mais informações. Era como se uma sede incontrolável a tomasse, forçando suas pernas a caminhar e conhecer as extensões praticamente infinitas daquela dimensão... real ou não.
- Está apreciando a chuva? – Alcest perguntou. Estava balançando suas pernas, sentado em um dos galhos da árvore de folhas pardas que encontraram para se proteger.
- Estou tentando imaginar como é Quadrinera. – ela respondeu, tentando fugir dos pensamentos em que estava mergulhada. Continuou a observar o céu.
- Não é lá muito diferente de St. Poltien. Digo, não tão diferente com aquela gente toda fazendo suas coisas e andando para lá e para cá sem motivo algum. Mas a agitação de Quadrinera é completamente diferente. Mecânicos de um lado para outro, peças de maquinaria se movendo pela cidade e pequenos prédios metálicos. Quadrinera é o local onde era produzida a maior parte dos produtos que são consumidos em Marco Zero.
Larsh aproximou-se:
- Quadrinera? – indagou, tentando entrar no assunto. – A cidade se libertou do Governador que estava por lá, que era subordinado do Governo Echaellon, e se tornou independente. Hoje a JUBILO toma conta de todo o local e de toda a produção industrial, servindo como uma segunda base de operações, já que é a segunda cidade de maior poder que eles controlam.
- Quadrinera é como uma industria gigante?
- É um complexo industrial imenso de cor cinza. Metal para todos os cantos, mecânicos de um lado para outro. Os operários de lá não são arrogantes como os pedantes que infestam St. Poltien... – respondeu.
A chuva já estava quase cessando. Larsh , Alcest e Melissa tinham reparado que Viollet estava concentrada em uma tarefa estranha.
- Ei, Viollet. – o espantalho a chamou. - Onde você comprou esses binóculos?
- Na mesma loja de St. Poltien que compramos suprimentos. Larsh deve lembrar...
- Eu não consigo lembrar. – disse, refletindo.
- É que eu paguei com algumas das minhas informações. Custava algo em torno de doze Psi. Melhor continuarmos no nosso caminho antes que chova novamente...
O grupo saiu do refúgio debaixo da árvore parda. Optaram por seguir sobre o gramado avermelhado, já que a estrada de terra batida estava um verdadeiro lamaçal.
- O que é Psi? – Melissa nunca tinha escutado o termo antes.
- Peso Sustentável por Informação. – Viollet respondeu, guardando o binóculos no bolso lateral do vestido. – É uma espécie de relação entre peso e informação que serve para relações de compra e venda. Na verdade não é algo que se chame de comércio que existe por aqui, apenas sistemas de troca. – ela retirou do bolso um cubo de um material de aparência semelhante a do chumbo. – Isso é um cubo de trocas. Ele possui toda a informação “comercializável” que eu tenho na minha mente: dados de informações variáveis como conhecimentos históricos, geográficos ou literatura, por exemplo.  Se eu quero “comprar” alguma coisa, basta colocar o cubo nas Máquinas de Compra que automaticamente a informação usada é deletada do meu cubo de trocas e vai para o cubo de trocas do vendedor. Entendeu?
- Boa parte... – Melissa respondeu, parecendo interessada no funcionamento daquele estranho sistema.
- Capitão!!!
            - “La! La! La! Onze garrafas de rum para piratas maus maus maus!”
            - Capitão Janni! Pare de cantar!
            A marionete sem cordas se aproximou do seu capitão. Janni meteu-lhe um soco na cabeça, virando o corpo para trás e gritando:
            - TRATANTE! NÃO VÊ QUE EU TAVA CANTANDO?!
            - Desculpe, Capitão! – Marcielu gemeu de cima da pilha de caixas em que foi jogado. – Era sobre a pólvora no armazém do zepelim...
            - Você deixou a pólvora em local seco? – o boneco respondeu que sim. - Então está tudo bem! Se eu estiver cantando e você me atrapalhar novamente, Marcielu, eu te mando limpar os sanitários! – Janni estava praticamente abraçado com o leme de ferro do zepelim. – “La! La! La! Doze garrafas de rum para piratas maus maus maus! Deixo minha barba crescer para parecer um desses piratas maus maus maus.... e beber garrafas de rum!!!”
            O zepelim de ferro cruzava os céus de Marco Zero. Toda a tripulação de bonecos de ventríloquo estava a bordo, vestida com roupas e lenços de piratas. Conversavam entre si enquanto faziam os seus deveres de marujos:
            - Eu não vejo o Capitão tão atônito desse jeito desde que nós destruímos aqueles corsários granadianos! – disse o que limpava o convés com uma toalha.
            O boneco que estava em cima das cordas da vela protestou:
            - Você só pode ser burro, Vitorillu! É óbvio que o Capitão está assim porque está atrás desse tal Enviado. E ele só está enfezado desse jeito porque não encontrou o Enviado em St. Poltien.
            - Você está certo, Narcissu. O Capitão está raivoso porque o Enviado não estava em St. Poltien. Mas ele irá encontra-lo, e o Enviado vai dar um jeito na Carin...
            - QUE PORCARIA É ESSA QUE VOCÊS ESTÃO CONVERSANDO? ANDEM COM O SERVIÇO OU EU MANDO TODOS PRA  A LIMPEZA DOS SANITÁRIOS!!!
            - Mas é só você que usa os sanitários, Capitão Janni... – disse Marcielu.
            - Você tem razão, Marcielu... - o Capitão levou uma das mãos até a cabeça – Que se danem os sanitários! Eu preciso mesmo é encontrar esse tal Enviado, ou minha Carin vai esperar mais alguns anos para voltar a viver...

            Alcest corria mais à frente do grupo:
            - Por que nós não ficamos naquela árvore?
            Em poucos minutos a chuva caía novamente, mais forte do que a anterior. Sem algum abrigo por perto, Alcest, Larsh, Melissa e Viollet corriam sobre a grama molhada, subindo uma colina que, de tão alta, impedia que vissem o que estava mais adiante. Fora isso, um nevoeiro cobria parte da região, diminuindo a visibilidade das coisas à frente.
            - Eu não quero que entre água no meu rifle! – Viollet segurava o rifle apontado para baixo. Normalmente a garota levava o rifle para o alto, exibindo a sua arma para qualquer observador.
            - Se continuarmos na chuva... – Larsh deu uma breve pausa para recuperar o fôlego. - ...vamos pegar uma gripe!
- Continuem correndo! – Melissa falou lá de trás. - Estamos quase subindo essa colina! Pode ser que algum abrigo apareça!
- Espantalhos não ficam doentes!
Alcest abriu um grande sorriso. Melissa gostava de quando o espantalho se mexia e suas articulações faziam um barulho engraçado de palha seca dobrando, mais precisamente quebrando.
            Alguns metros acima e o grupo conseguiu alcançar o topo da colina. Eles conseguiram ver apenas um enorme casarão de madeira na frente do cruzamento de duas estradas de terra, pois a visibilidade estava ruim. O local parecia bastante animado mesmo com o frio e da insegurança trazida pelo nevoeiro. A luz amarelada das lâmpadas saía pelas janelas de vidro, desenhando sombras de pessoas e criaturas sobre a vegetação vermelha. Na porta do local estava uma placa de néon azul, com “Intermezzo” escrito com lâmpadas redondas de cor verde que piscavam freneticamente como as lâmpadas de placas de algum bar da periferia.
            - Intermezzo... Achamos abrigo! – Larsh soltou um suspiro, como que agradecendo aos céus pela localização daquele casarão.
            - O que é aquilo? Um bar?
            - Você verá, Melissa. Poderemos descansar por ali por muito tempo, até o nevoeiro passar...
            Viollet tratou de guardar o rifle no suporte que carregava nas costas e Melissa enfiou as mãos nos bolsos das calças. Alcest cutucou Larsh no ombro:
            - Você conhece o Enzo Quebra-Cabeça? – indagou, entortando a cabeça para o lado esquerdo e fazendo algumas das palhas do pescoço estralarem.
            - Claro que sim... – Larsh sorriu e deu um tapa leve nas costas do espantalho. – Nunca te falei dele?
            - Não... O Enzo conhece gente demais...
            O grupo se aproximou do casarão. A madeira era coberta por uma grossa camada de tinta azul-petróleo. As armações das janelas possuíam entalhes disformes em cada aresta, de um mesmo tom das paredes. Aquele típico burburinho de bar aumentava a cada passo, o que entusiasmava Melissa. Que tipo de local estaria em uma encruzilhada no meio do nada?
            Larsh abriu a porta.
            O piso era branco-gelo, límpido e claro, e as paredes tinham sido pintadas com tinta roxa que mais lembrava suco de beterraba. Um sujeito tocava um acid jazz piano nos fundos do bar, enquanto outro homem acompanhava o ritmo dançante em uma espécie de bateria eletrônica de caixas e pratos enormes.
As mesas ficavam vizinhas às janelas. Melissa observou um casal de namorados em uma mesa, provavelmente marcando o próximo encontro; um grupo de marionetes caía às gargalhadas enquanto bebiam canecas de cerveja preta estava na mesa de trás, um bando de jovens conversando entre si e abrindo rolos e rolos de papel com projetos mecânicos na mesa do outro lado. Dois espantalhos dormiam bêbados na mesa dos fundos e uma mulher, de macacão jeans e chapéu de operário, limpava as mãos sujas de graxa antes de fazer um pedido na mesa da frente.
Bancos de madeira estavam posicionados ao longo da extensão de um balcão de vidro, onde uma grande cobra de feições humanas estava em pé em cima de uma das banquetas quando conversava com dois homens em trajes vitorianos. A cobra tinha um rosto quadrado, de feições bem definidas; os seus olhos eram brancos como o chão do local e usava um cavanhaque no queixo. A criatura tinha escamas grossas, compostas de peças de quebra-cabeças em tons variando do verde para o azul-marinho, saindo da cauda até formar uma carapaça no alto da cabeça.
Ninguém sequer reparou na chegada do pequeno grupo. A música preenchia o local. Estava na hora dos solos de bateria, típicos do jazz rápido. Viollet bateu as botas no chão, tentando retirar o excesso de terra nas solas. Melissa ainda observava tudo, perplexa pelo ambiente que se revelou. Alcest foi o último a entrar, parecendo tímido demais.
Apesar do fascínio pela nova visão, Melissa notou o jeito estranho do espantalho. Algo estava oculto por detrás daqueles olhos completamente negros.

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