Nameless escrita por Guardian


Capítulo 20
E então?




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 Sentado na cadeira e arranhando distraidamente o tecido que cobria as pernas cruzadas já dormentes, Mail observava em absoluto silêncio o loiro que dormia na cama.

 Já amanhecia, mas os primeiros raios de sol eram eficientemente barrados pelas escuras cortinas que cobriam toda a janela e assim o quarto permanecia no breu e o sono de Mello, imperturbável.

 E Mail apenas ficava ali, ignorando o incômodo da posição contínua e o ardor dos olhos cansados, encarando a figura adormecida como se assim pudesse descobrir o que havia de errado com ela. Os olhos azuis a todo momento lhe saltavam na memória e lhe causavam a  mesma sensação de antes. Via as cobertas movendo-se a ritmo constante acompanhando a respiração dele, os fios claros caindo e cobrindo o rosto, uma mão pendendo molemente para fora da cama. Vislumbrava também a ponta do cabo do revólver que o loiro sempre deixava debaixo do travesseiro. E ainda assim, era estranho pensar que era ele ali.

 Tinha trazido Mello para o quarto, o coberto e deixado uma garrafa d’água ao seu lado, mas não tinha conseguido sair de lá. Simplesmente... Não conseguiu.

 “Por que eu o trairia?”

 “É a resposta que eu gostaria de ter, antes que aconteça” Mello respondeu naquele mesmo tom que simplesmente não combinava com ele, e com os mesmos olhos que não pareciam certos em seu rosto.

 “Por que eu o trairia?” O ruivo repetiu de forma mais solene e incisiva agora, tentando acima de tudo, encontrar suas próprias respostas para o que induzia os pensamentos do loiro no momento.

 “Atirei em você”.

 “Não passa de uma cicatriz agora”.

 “O mantenho preso”.

 “Não me lembro mais como é o gosto do oposto disso”.

 “Não sou ninguém”.

 E essas três palavras, somente uma curta trinca de palavras, mais do que qualquer das inusitadas sentenças anteriores, chocou Mail. Definitivamente, aquele não era Mello.

 E embora o ruivo não tivesse como saber até que ponto estava certo em suas confusas constatações, aquele à sua frente olhando-o e falando de maneira tão diversa realmente não era Mello Wright. Era Mihael Keehl. Era o garoto forçosamente arrancado de sua infância, aquele que deixara de dizer o que queria quando queria a partir do momento que não tinha mais o irmão para rir ou repreender suas atitudes. Mihael, que tinha como maior preocupação de seus dias ser ou não obrigado a participar dos maçantes eventos que os pais organizavam.

 Mail sentiu de súbito a vontade de beijar aqueles lábios levemente inchados e vermelhos voltar a tentar dominar seus sentidos, de abraçar o corpo quente tão convidativo, mas não cedeu. Se retornassem à ação de antes, não tinha dúvidas de que não teria forças para interromper uma segunda vez e permaneceria no escuro daquelas indagações. Não importava que olhos o encarassem então, ele sabia que a mente seria sobrepujada pelo corpo.

 Então ao invés de atender aos pedidos internos que ecoavam pelo desejo não saciado, ele apenas encarou mais profundamente as órbitas azuis e levou uma das mãos aos bagunçados cabelos loiros, tirando-os do caminho da face que custava a reconhecer.

 “Eu também não sou ninguém”.

 Qual tinha sido, afinal, o sentido daquilo?

 “Você me trairia, Mail?”.

 Mail jamais traíra alguém. Quer dizer, ninguém que algum dia tenha de fato confiado nele. E Mello confiava... Não confiava? Três meses antes diria que isso seria impossível; há dois, consideraria a questão durante algum tempo antes de responder um “Talvez”; há um, o “Provavelmente sim” viria bem mais rápido e confiante. E agora, não tinha dúvidas da afirmativa. Então porque o loiro haveria de perguntar? Não entendia de onde tinha surgido aquela expressão que tomou seu rosto ao fazê-lo, para início de conversa.

 Ele não o trairia.

 Essa era a maior certeza que tinha sem nem pensar duas vezes e não se arrependia por alimentá-la.

 Talvez o tempo acabasse por mostrar que o contrário não era verdadeiro, mas mesmo se isso acontecesse, mesmo que cenas de seu passado se repetissem com esse novo personagem, não se arrependeria.

 O loiro começou a se mover na cama com alguns resmungos acompanhando os movimentos preguiçosos e ainda inconscientes, prenunciando seu despertar e atraindo de imediato a volta do olhar verde sobre si. Parte do ruivo desejou que o álcool tivesse feito o bom trabalho de apagar a madrugada da memória do loiro, e assim, de limpar aquele olhar tão desprovido de tudo.

 Em parte, não podia negar, porque não queria ter outra conversa daquela natureza. Não gostava delas.

 Mello apertou os olhos algumas vezes antes de finalmente abri-los em definitivo, e não sabia se estranhava mais por não fazer ideia de como havia ido parar na cama ou por encontrar um brilhante par verde o encarando de um dos extremos do quarto.

 De fato, estranhou tanto ambos, que foi só em um segundo momento que se deu conta dos efeitos maravilhosos da ressaca que o visitava.

 - O que está fazendo? – perguntou em meio a uma careta incômoda, a voz saindo rouca e a garganta mostrando-se mais seca do que era agradável. E não entendeu quando Mail sorriu.

 Sorriu, ao olhar para o rosto pálido da noite mal-dormida e enfim reconhecer os olhos que o fitavam.

 Sorriu, ao ouvir o tom de leve mau-humor que sempre temperava suas palavras ao acordar.

 Sorriu, porque aquele era Mello. O que ele conhecia, que o atraía, que transformava seu próprio espírito lentamente naquilo que sempre deveria ter sido. Seu Mello.

~*~

 - Vai sair? – foi a indagação de Mail ao perceber que o loiro começava a catar algumas das roupas espalhadas pelo quarto e as empilhar em cima da cama desfeita. Tudo o que ganhou em resposta foi um distraído aceno afirmativo. Mello movia-se de forma quase autômata, sua concentração toda centrada em manter a mente livre de... Bem, tudo. Céus, como queria que os malditos comprimidos fizessem logo seu efeito sobre aquela dor de cabeça dos infernos!

 Porém, antes de – já vestido e ainda procurando ignorar os efeitos de sua estupidez – chegar próximo ao seu objetivo, uma batida fraca e ritmada soou. Estava com as chaves em mãos e quase as usando, quando parou. Nem vale mencionar o quanto aquele simples bater na madeira ribombou em sua cabeça como um grande sino próximo demais.

 Mail nem precisou do sinal recebido para rapidamente se trancar no quarto que mal havia deixado.

 Irritado com a velocidade reduzida com que seu raciocínio estava trabalhando com a ressaca e a privação de sono, Mello pensou que deveria reconsiderar e colocar de uma vez a droga do “olho-mágico” que tanto fizera questão de recusar ao se mudar.

 Era Klaus.

 Ficou surpreso, não pôde evitar, mas nada demonstrou. Estava saindo justamente para procurar pelo mais velho, em um interesse que nem se daria o trabalho de disfarçar, já que tentar seria absolutamente inútil visto aos acontecimentos da última noite. Não iria de repente encarnar algum espírito fraternal consolador, mas também não sentia nenhuma grande necessidade de negar o que achava e o que sentia com tudo aquilo. Talvez fossem os efeitos finais do álcool falando.

 Teve consciência de encará-lo por um tempo maior do que faria normalmente, analisando-lhe as feições e quase automaticamente comparando-as com as quais se despedira não muitas horas antes. Abriu espaço para ele entrar, sem dizer palavra alguma. Devia ser a primeira vez que nenhum comentário ou reclamação eram feitos.

 O moreno estava tão pálido quanto na noite anterior, e agora com as bolsas escuras embaixo de seus olhos seu semblante parecia ainda mais abatido. A roupa também era a mesma, não deixou de reparar Mello.

 - Sua cara está péssima – o moreno comentou, e a ausência da vitalidade de sempre fazia aquela voz soar desconhecida, como se tivesse tomado emprestada de outra pessoa.

 - Compre um espelho antes de falar de mim – rebateu sem olha-lo mais. Conseguiu arrancar um riso superficial do outro, distante demais do seu normal para parecer natural.

 - Detestaria me olhar no espelho agora – Klaus comentou enquanto caminhava devagar até o sofá, sentando nele com um suspirar quase inaudível – Tomaria um belo susto, aposto.

 - Não toma todos os dias? – Mello ergueu uma sobrancelha, aproximando-se também do centro da sala, mas permanecendo em pé. Se sentasse custaria a conseguir levantar de novo.

 - Se fosse uma constante, o susto ainda valeria?

 - Existem diferentes níveis e modos de alguém se assustar. Ou talvez sua memória apenas seja ruim e pareça sempre como algo novo.

 E a risada baixa e fraca que deixou Klaus desta vez soou bem mais verdadeira do que a anterior, sem que ele próprio se desse conta.

 - Não é a toa que está fazendo Direito – comentou fechando os olhos por alguns segundos e deixando a cabeça repousar no couro macio. A tênue sombra de um sorriso ainda permanecia.

 Quando tinha sido a última vez que tiveram um momento desses? Qual foi a última conversa descontraída entre eles? Fazia tanto tempo que Mello havia se esquecido de que elas um dia existiram, e agora, lembrando, revivendo, os efeitos que os comprimidos encontravam dificuldade em combater estavam sendo amenizados de forma considerável. Sua cabeça não parecia mais tão pesada e dolorida, assim como seus olhos não se incomodavam mais com o contato com a luz do dia. Era um efeito um tanto... Inesperado.

~*~

 Em dado momento, quando a atmosfera quase de uma tarde comum com pessoas comuns tratando de assuntos comuns começava a parecer irreal demais, Klaus respirou fundo e tirou um grosso pacote de dentro do casaco. Talvez aquele intervalo inesperado houvesse lhe dado a vontade, ou quem sabe a coragem, de fazer o que tinha em mente ao ir até lá; talvez apenas achasse que a tal atmosfera poderia ser rompida a qualquer instante e resolvesse ser ele a fazer isso.

 - O que é isso? – Mello não fez qualquer menção de pegar o que lhe era estendido, apenas lançando-lhe um olhar rápido antes de retornar a atenção para o homem sentado à sua frente. Claro que sabia o que era. E exatamente por isso não pegaria.

 - Seu pagamento – Klaus respondeu levemente confuso, o braço ainda estendido. Estava cansado demais para procurar por significados ocultos na postura do loiro, e se assim não fosse, teria percebido que não havia o menor ar de graça ou ironia nele.

 - Não preciso disso.

 O moreno ergueu uma sobrancelha – Não é questão de precisar ou não. Fez um trabalho, recebe o pagamento correspondente.

 Não houve nenhuma alteração no semblante de Mello – Não fiz nenhum trabalho.

 Klaus olhou-o por mais um longo segundo antes de suspirar uma segunda vez, sentindo bem demais o quanto sua mente recusava a trabalhar em velocidade normal – Apenas pegue de uma vez, Mello.

 - Você é surdo? Eu disse que não fiz merda de trabalho nenhum, então não tem nenhum motivo para eu ganhar a droga do dinheiro.

 Nem nesse ponto a voz dele se alterou. E Klaus não percebeu.

 - Não fez o trabalho? – a não compreensão do que passava pela cabeça do mais novo, e o sentimento de urgência de encerrar aquilo de uma vez, de mesmo sabendo ser um esforço inútil, tentar deixar para trás o que havia acontecido, fez o tom dele sair levemente mais exasperado do que pretendia ou esperava – Então o que foi que você fez?

 E Mello lançou-lhe um olhar estranho, um que sua mente não conseguiu traduzir naquele momento, antes de dar de ombros como se a resposta fosse a mais óbvia possível. Talvez devesse ser, mesmo que as palavras diretas jamais fossem deixar aqueles lábios.

 - O que deveria fazer.


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