Cemetery Drive escrita por CDJ


Capítulo 4
Crash




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 Nunca fui de desistir das coisas.

 Meus pais me ensinaram desde pequeno que a vida era feita de batalhas. Tudo o que eu queria de verdade, tinha que lutar para ter. Eu sempre achei que essa regra só se aplicava a coisas materiais, mas eu comecei a perceber que não era apenas desse jeito.

 Angela Stein parecia ser alguém que eu teria que lutar muito para ter. Era estranho querer uma garota desse jeito, porque nunca fui muito cavalheiro. Para dizer a verdade, eu era um idiota no ensino médio. Talvez o meu desejo em ajudar Angela era apenas o desejo de ter alguma coisa para salvar e me redimir dos meus pecados. Ou talvez eu não conseguisse lidar com o fato de estar interessado em uma garota que não era meu tipo. Minha motivação era um mistério, na verdade. Como quando você encontra um animal terrível. Você quer correr, seu instinto lhe diz para correr, mas suas pernas não se movem. Eu me sentia desse jeito. Não conseguia parar de pensar nela e em como ganharia sua confiança.

 Mas como se conquista uma garota como Angela?

 Ela não parecia ser alguém que se deixava levar por jantares caros ou jóias. Eu só precisava mostrar que queria ajudá-la de verdade, mas como fazê-lo quando ela recusava ajuda? Eu nunca poderia salvá-la se ela não quisesse ser salva. Porém, se ela realmente não estivesse à procura de salvação, duvido que ainda estaria viva. Pelos seus cortes, dava para ver o quanto ela já havia sofrido e o quanto havia lutado.

 Deixei os dias passarem. Memorizei seu endereço e, de vez em quando, passava em frente à sua casa. Lógico que sempre foi em vão. Nunca vi ninguém na janela nem no jardim, muito menos entrando ou saindo. Parecia até uma casa abandonada. Mas quando o sol se punha, a luz nas janelas brilhava. Só que também eu nunca havia visto uma sombra sequer a andar pelos cômodos.

 Certo dia, enquanto dirigia calmamente por aquela rua, reconheci um antigo colega na frente de uma velha república. Ele parecia estar fazendo uma festa, porque havia vários galões de cerveja, além de mulheres entrando e saindo. Parei na frente da casa e o chamei, que veio correndo me cumprimentar. Tenho certeza que não me reconheceu, mas estava chapado demais para se preocupar com isso.

 - Vocês estão fazendo uma festa? – perguntei.

 - Festa? – ele olhou para trás para responder, depois voltou a olhar para mim – Isso aqui não é nada! Você tem que aparecer na sexta. Vai ter muito mais bebida e muito mais mulher. Isso aqui vai ta fervendo!

 Dei risada e falei que ia aparecer. Ele deu uma batidinha no capô do carro quando saí e vi pelo retrovisor que gritava para o carro de trás. O fluxo de pessoas aumentou, mas eu virei a esquina e parei de olhar.

 Como a república ficava a menos de três quadras da casa de Angela, eu achei que ir à festa seria uma idéia ótima. Eu podia aparecer, caminhar um pouco até a casa dela e ainda teria uma desculpa se alguém da casa chamasse a polícia ou algo parecido.

 Na sexta feira, eu me arrumei e fui para a festa. Meu antigo colega, Steve, estava certo. A festa estava muito melhor. Dessa vez, o som retumbava nas paredes e fazia o chão tremer, meu coração seguia o ritmo da batida da música. Cumprimentei Steve quando cheguei e ele até tentou me apresentar algumas de suas amigas, mas depois que uma delas vomitou no meu sapato, agradeci e falei que ia dar uma volta.

 Devia ser umas dez horas da noite. A festa havia começado lá pelas oito, dissera Steve, e só ia acabar no domingo à tarde. Essa era uma das razões pelas quais eu não queria me mudar para uma república e, sim, alugar um apartamento. Não dá pra confiar em mim mesmo nessas festas. No mínimo, eu ia acabar perdendo aulas demais e meus pais ficariam muito bravos. A única coisa que eles realmente não tolerariam seria que eu deixasse de aproveitar a faculdade. O resto, tanto faz.

 Caminhei por duas quadras até chegar na esquina do quarteirão da casa dela. Como a república ficava do lado esquerdo da rua e a casa dela, no direito, eu estava na rua da frente. Resolvi só observar de onde estava, para não chamar tanta atenção. Pela primeira vez eu vi algumas sombras no andar de baixo. Agucei os ouvidos e me aproximei. Quando a porta se abriu, dois vultos saíram.

 Eu tinha certeza que o vulto mais alto era Angela, já o vulto mais baixo, que não chegava nem a sua cintura, eu não sabia quem era. Tentei me esconder atrás de uma árvore. Olhei e percebi que o vulto menor era uma garotinha e Angela parecia muito entretida com ela. Como as duas passaram rindo e conversando, imaginei que não haviam me visto.

 Antes de segui-las, me esgueirei por um jardim bonito e arranquei duas flores. Apressei o passo para alcançá-las sem nem encarar o que segurava. Elas viraram a esquina e seguiram por mais dois quarteirões, até chegarem a um cruzamento na avenida. Quase as perdi ao atravessar a rua, porque tive que esperar o sinal fechar, mas já percebi para onde elas estavam indo. O letreiro era visível ao longe e se erguia acima das casas e de alguns prédios baixos. Elas iam ao McDonald’s.

 Quando elas entraram, tive que me esconder de novo porque as paredes eram de vidro. Além disso, haviam se sentado no sofá bem em frente à porta de entrada. Observei por uns vinte minutos e quase fiquei chocado. Todo aquele olhar de tristeza e aquela aura de desespero havia sumido. Tudo o que eu conseguia ver em Angela era uma garota comum, dando risada com uma garotinha mais nova que parecia ser sua irmã. Parecia até que ela não precisava de mim. Pensei em desistir e ir embora, mas não havia roubado duas flores para nada. Encarei as flores. Não eram rosas, o que era estranho já que a maioria das pessoas planta roseiras em seus jardins. Pareciam tulipas, mas eu nunca havia visto tulipas naquela cor. Escuras, quase pretas, as duas tulipas negras que eu segurava me lembraram o porquê de eu estar ali. Afinal, mesmo que ela tivesse alguém para lhe fazer sentir bem, porque se cortava? Ela ainda precisava da minha ajuda e foi isso o que me motivou a continuar esperando pelo momento certo.

 Quando Angela se levantou e se dirigiu ao caminho dos banheiros, eu corri e entrei na loja. Cheguei perto da garotinha e sentei-me ao seu lado no largo sofá. Ela me deu uma olhadela rápida e olhou para as flores.

 - Flores legais – comentou com a voz fina, naquele ar simpático de criança.

 - Você acha? – perguntei, olhando as flores também.

 - Acho – ela assentiu e me olhou – É pra sua namorada?

 Dei uma risada e neguei com a cabeça.

 - Não tenho namorada. Mas e aquela garota bonita que estava com você?

 A menininha sorriu e ajeitou-se no sofá, animada.

 - É a Angela, minha irmã. Você quer namorar ela?

 - Você deixa? – perguntei e ela assentiu, sorrindo – Qual é o seu nome?

 - Mae Rose.

 Olhei pras flores de novo e quase xinguei por não serem rosas, mas acho que ela nem se importava. Devia ter cinco anos, no mínimo. Tinha cabelos louros e grandes olhos verdes; sardas pipocavam em suas bochechas. Era uma daquelas crianças lindas, que só se vê em comerciais de TV de brinquedos. Entreguei-lhe as duas flores.

 - Uma é para você, a outra é para a sua irmã. Você acha que ela vai gostar?

 - Claro que vai – ela respondeu. – E tenho certeza que ela vai querer ser sua namorada!

 Dei outra risada alta.

 - Diz pra ela que o Erik que deu essas flores, tudo bem? Vou sair pra fazer uma surpresa pra ela lá fora.

 Ela assentiu de novo, animada, e sorriu enquanto eu saía e lhe mandava uma piscadela.

 Fiquei esperando de costas para a parede de vidro, então não deu para ver quando ela voltou ou qual foi a reação de Angela ao receber as tulipas. Depois de alguns minutos, a porta de loja se abriu e um grande contingente de pessoas saiu. No fim da fila, Angela vinha caminhando até onde eu estava com raiva e parecia prestes a me fuzilar com os olhos.

 - O que você pensa que está fazendo? – perguntou entredentes, sem se aproximar demais.

 - Você não gostou das flores? – virei o corpo em sua direção e encarei-a, sorrindo.

 - Quem você pensa que é pra falar com minha irmã? Eu nem te conheço, seu psicopata. Pare de me seguir ou da próxima vez eu chamo a polícia!

 Ela se virou, pronta para voltar para a loja, mas eu puxei seu braço e fiz com que me encarasse. Instintivamente, ambos olhamos suas cicatrizes, mas dessa vez ela usava uma jaqueta de manga comprida. Não havia nada para ver. Olhei em seus olhos.

 - Desculpa, mas... Eu realmente quero te ajudar.

 - Eu já disse que não preciso de ajuda. Não preciso de você!

 Soltei seu braço e parei de encará-la. Sentada no sofá do McDonald’s, Mae Rose colocava as mãos nos olhos com medo de uma briga, mas os espaços entre os dedos a deixavam observar tudo o que acontecia. Olhei-a e sorri como quem pede desculpas.

 - Fique longe de nós. Por favor – disse Angela, me trazendo de volta à discussão.

 - Tudo bem – rebati, dando de ombros e voltando a encará-la. – O que você quer ouvir? Quer escutar que cansei de te perseguir, que eu não vou mais tentar te ajudar? Desculpe-me de novo, mas não é isso que eu vou dizer. Sei que você deve achar que todo mundo vai dar as costas pra você e que deve lidar com isso sozinha, mas eu não vou deixar você carregar todo esse peso. Não vou parar de correr atrás até você me aceitar em sua vida e me deixar salvá-la.

 - Não preciso da sua salvação. Acha que vai resolver alguma coisa na minha vida? Não vai. Não preciso de mais coisas que não funcionem direito.

 Abaixei a cabeça. Quando a encarei de volta, não foi com tristeza e pesar, mas com a certeza de que ainda conseguiria ajudá-la. Aquilo a abalou, porque provavelmente havia pensado que já havia me vencido. Mas eu não dava o braço a torcer tão fácil assim.

 - Diga o que quiser, mas uma vez eu escutei que as maiores mentiras que contamos são para enganar a nós mesmos. Você não me engana dizendo essas coisas e não importa quantas vezes diga, nunca vou acreditar.

 Ela não respondeu. Virou-se e entrou. Pegou Mae Rose pela mão e saíram. Ao passar por mim, Angela puxou violentamente as tulipas negras das mãos de Mae Rose e jogou-as no chão aos meus pés. Pisoteou-as até que todas as suas pétalas se desprendessem, depois me olhou com desprezo. Então ela puxou a irmã e as duas seguiram para casa, enquanto eu olhava as negras pétalas que jaziam no chão.


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