Sobre Metal e Sangue escrita por JojoKaestle, LudMagroski


Capítulo 2
Revejo parte do meu jardim e quase estrago tudo




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Meu sono foi vazio. Talvez a mente quisesse me poupar ou estivesse apenas completamente esgotada. Acordei de sobressalto e senti minha blusa colada à pele, meus cabelos caiam sobre meu rosto molhado de suor. Sentada, percebi que estava em um cômodo longo e estreito, toda luz que o iluminava vinha da sala vizinha separada por uma porta parcialmente transparente, o que na prática significava que mal enxergava o que me cercava a uma distância maior que três passos. Quando minhas mãos tatearam para encontrar o final da cama, encontraram uma parede logo atrás de onde estava sentada. Apertando os olhos me virei e imediatamente meus pés me afastaram com violência, fazendo com que caísse de forma não muito agradável no chão. Porque atrás da minha cama estava a areia do deserto e ela se movia.

Ajoelhada, ergui meu tronco sobre a beira do lugar onde antes dormia. Sim, a menos de um metro de altura abaixo de mim a areia se movia e a lua se erguia no céu mais adiante, acompanhada das estrelas. Deixando meu corpo cair no chão, escondi meu rosto entre as pernas e me perguntei se não haveria um momento mais oportuno para enlouquecer. Talvez estivesse morta e este fosse o céu. Suspirei. Claro que não era essa a verdade. Cair da cama no céu não deveria ser assim tão doloroso. E se estivesse morta, Tia Sybil deveria estar comigo. Ergui a cabeça pronta para procurá-la quando alguém acendeu o sol no meu rosto.

– Está melhor? – a voz parecia vir de onde deveria estar a porta. Estreitando meus olhos a imagem do rapaz com trajes cinza do dia anterior entrou em foco. Já não usava uma armadura, mas a lâmina continuava presa à cintura. Com poucos passos estava na minha frente, puxando uma caixa e a usando como cadeira. Seus olhos miraram o meu rosto e me senti analisada da cabeça aos pés. Puxei as pernas para mais próximo e as abracei, olhando para o chão. Não queria mentir para ele.

– Vejo que já conheceu a parede funcional do nosso transporte. – falou, tentando soar amistoso – Olhe.

E com essas palavras voltou-se para alguns controles atrás de si e senti as paredes vibrarem de um jeito engraçado. Terminou quase imediatamente depois de começar. Bloqueando a vista para a areia e o céu lá fora, estavam paredes sólidas de alumínio. Ele deve ter notado minha expressão confusa e logo explicou:

– São paredes um pouco diferentes das que você conhece, Deidre. Elas permitem que possamos ver através delas a paisagem lá fora e voltam a ser o que eram assim que acionamos alguns botões. São muito comuns em transportes que atuam em áreas de risco onde nem sempre radares são eficientes para...

Parou e sorriu.

– Não importa, hoje elas servem apenas para contemplar a lua e as estrelas.

O encarei durante alguns momentos. Quem estava ali na minha frente não se parecia em nada com alguém que cortasse máquinas de guerra em pedacinhos em seu trabalho.

– Onde está Tia Sybil? – perguntei séria.

– Ela era a única que cuidava de você? – ele me ignorou.

– É. Meus pais morreram três anos atrás, ela cuida de mim desde então. – a velha fala ensaiada já não soava tão dolorosa. - Rhes, onde ela está?

A menção ao seu nome não adiantou muito. Continuava a me analisar, tentando com os olhos perceber onde estava doendo. Ficou em silêncio e depois indagou com a voz firme:

– Quantos anos você tem? Não deve passar de dez.

– Tenho treze. Posso não ser a mais alta da turma, mas em idades você não é tão certeiro quanto com a sua espada ou como quer que isso na sua cintura se chame. – tentei fazer com que minha voz soasse firme como a dele - Ela era um robô, não era? Não podemos consertá-la de algum modo?

Rhes suspirou e se deu por vencido.

– Apenas se ela fosse um robô mais simplório. – puxou a caixa para mais próximo e inclinou-se para frente. - Ela era um humanóide. Você sabe o que isso significa?

– Que ela foi criada para andar entre os humanos sem levantar suspeita. Humanóides foram usados em diversas guerras, mas são proibidos agora por causa da pressão popular. – ditei algumas frases das fontes de informações que tinha lido – O que ela fazia me resgatando então?

– O óbvio, te protegia. Humanóides também foram usados como seguranças das mais diversas pessoas, desde os escalões mais altos até aqueles que podiam pagar por um mais simples. O que interessa agora, Deidre, é que muitos estão a serviço do governo, protegendo pessoas que perderam quase tudo nas guerras e que não tem mais ninguém para olhar por elas. Por isso vocês moravam numa cidade no meio do deserto. Foram colocados ali para garantir sua segurança e a de muitas outras pessoas. O problema que temos agora é que você perdeu a proteção que ela deveria te dar e... –

– Eu a amava! - quase gritei, as lágrimas deixando minha vista de surpresa embaçada – e ela me amava também! Ela tentou me proteger da melhor forma que pôde, mas aquilo, aquilo...

Mordi meus lábios nervosamente e desviei o olhar. Sua mão pousou sobre meu joelho com suavidade.

– Deidre, eu entendo. Tenho certeza que era sincero. Mas agora preciso ir, descanse um pouco e quando se sentir mais disposta pode ir até a próxima cabine, lá encontrará algumas pessoas que talvez conheça. Certo? – levantou sem esperar que respondesse e estava na metade do caminho quando minha voz voltou:

– R.E.S. 473-K. – chamei, observando sua reação. O rapaz apenas se virou, indicando seu ombro esquerdo com um aceno de cabeça.

– O sou para meus iguais. Para vocês humanos sou Rhes. Até mais, Deidre.

Segundos depois as lâmpadas apagaram e a única luz que enchia a cabine era proveniente da lua e suas companheiras estrelas.

Consegui dormir durante duas horas relativamente bem, o melhor que se pode depois de ver o mundo inteiro desmoronar em sua frente. Quando o sol começava a se levantar no deserto às minhas costas acordei e, num gesto automático, meu braço saiu das cobertas em direção ao despertador imaginário. Tateei o espaço vazio, levantei a cabeça e na minha barriga uma sensação estranha começou a se instalar. A incerteza. Não estava mais em casa, não sabia como viveria daqui pra frente. Para ser sincera, ainda não entendia muito bem o motivo de ter sobrevivido. A resposta automática seria que Rhes havia me salvado e que, de alguma maneira, lhe devia minha vida. E que Tia Sybil também o teria feito, caso não tivesse sido desintegrada por aquele soldado robô. Naquele momento, enquanto a penumbra dava lugar à luz no céu, decidi que me manteria viva, para que o esforço deles não fosse em vão. Parecia um pensamento bonito, talvez ajudasse a afastar todo o caos. Coloquei meus pés no chão, estava gelado.

A porta no final da cabine abriu-se, mostrando um espaço não muito diferente do anterior. A diferença era que no lugar de uma, no mínimo dez camas se estendiam pelo cômodo estreito. Algumas pessoas estavam deitadas, outras pareciam dar assistência médica às primeiras. As camas não eram muito compridas e por isso o homem que ocupava a primeira delas estava estranhamente encolhido, o rosto virado para a parede. Quando me aproximei, vi que tremia.

– Sylvie? – ele perguntou de repente, fazendo com que eu quase desse um pulo para trás. – Você a viu não é? Eles – e aqui ele se virou apontando para as outras pessoas, que pareciam não notar seu comportamento – me disseram que está morta, mas não é verdade. A vi entrando no outro transportador... A... A ajudei a alcançar a mão da minha esposa.

Sua face se contorcia enquanto falava, os olhos vidrados não olhavam para nenhum lugar específico. Quando não respondi, me deu as costas. Pouco depois voltou a sussurrar coisas muito rápido e o observei com uma sensação estranha de reconhecimento. Aquele homem também perdera tudo.

– Deidre! - a voz vinha de algumas camas adiante. Com um pequeno grito de felicidade, me esforçando para não correr, cheguei diante da senhora Adele, que compartilhou conosco o jardim de sua casa depois que Tia Sybil passou a cuidar de suas flores quando adoecera na última primavera. Uma mulher estava terminando de passar um curativo no braço esquerdo da sorridente senhora que ao me ver fez alguns gestos para que se afastasse.

– Ora, Elinor, francamente! Já mal consigo sentir meus dedos com você apertando com tanta força. – sem se abalar a jovem tirou uma tesoura de uma pequena caixa que repousava na cama.

– Bem a entendo senhora, mas essa é a idéia. Seu braço está quebrado e levará algum tempo para se recuperar. – cortou a tira que juntava o curativo com o rolo e o colocou de volta à caixa, junto com a tesoura – Agora, se puder evitar mexer-se tão vigorosamente, agradeceria.

Adele a ignorou e voltou-se para mim.

– Esta garota precisa de um band-aid para sua bochecha, Elinor! Até uma simples senhora vê o que é necessário quando você insiste em falar baboseiras sem sentido.

Sorrindo, a mulher tirou um pedaço de algodão da caixa e o embebeu com um líquido viscoso.

– Aquele homem, coitado, chorou durante a noite inteira, minha criança, um som realmente terrível de se ouvir. Fico feliz de você não ter tido tal barulho como canção de ninar.

– E eu fico feliz por vê-la bem, senhora Adele. – aqui parei para fazer uma careta enquanto a moça pressionava o algodão no corte que cobria minha bochecha - Tem mais crianças por aqui?

Perguntei porque não via nenhuma naquele aposento, mas poderiam muito bem estar em outros, uma vez que não fazia idéia do tamanho daquele transportador. Adele me olhou com tristeza e depois balançou a cabeça negativamente.

– Nenhuma que conheça, minha querida.

Assenti, a imagem de todos os amigos da escola passando pela cabeça e meu coração pareceu comprimir-se. Olhei confusa para a senhora na minha frente, pois tinha acabado de falar algo que eu não ouvira.

– Perguntei sobre Sybil. – repetiu com uma expressão de alguém que realmente não queria repetir. A encarei durante alguns momentos antes de sentir minhas pernas fraquejarem e a vista embaçar. Escondi o rosto em seu braço sadio, sentindo sua mão acariciar o topo da minha cabeça.

– Você está molhando minha blusa Deidre. – falou. Sua voz falhava.

Lembro de ter ficado alguns minutos aconchegada em seu braço, só me afastando porque seu corpo se mexeu, endireitando-se no leito. Limpei meus olhos com a manga do meu vestido o mais rápido que pude.

– Agora, Deidre, é hora de ser forte. Algumas pessoas disseram que vamos parar a qualquer momento em uma cidade que fica não muito distante da nossa para carregar alguns suprimentos.

– Nunca ouvi falar em nenhuma cidade por perto. – respondi, me esforçando para soar normal.

– Também não, mas deus sabe como minha memória é falha. Ainda assim será um bom momento para ver algo novo, não acha? – e piscou marotamente para mim.

– Imagino que sim. – falei sorrindo.

– Ótimo, ótimo. Então por que não dá uma olhada mais para frente? Mais cedo ou mais tarde vai chegar à pessoa que comanda isso aqui e talvez ela possa lhe dizer quando poderei esticar minhas velhas pernas. – mal terminou, virou as costas para mim e puxou o cobertor até suas orelhas.

Dei de ombros, agradecendo pela sua presença e comecei a andar pelo corredor. Atravessei mais uma cabine recheada de camas e pessoas, mas naquela predominavam crianças. Percebi que algumas pareciam não estar acompanhadas de nenhum de seus pais e estas me olharam especialmente penosas quando passei. Não querendo ficar ali mais do que o necessário, apressei o passo e quase cai para dentro da última cabine do transportador. Aquela era por inteiro diferente das anteriores. Logo à frente estava uma janela que mostrava o caminho que percorríamos e pude notar que a velocidade daquele veículo era muito superior do que imaginava. De frente para essa janela estavam pelo menos três monitores, cada um mostrando gráficos, símbolos e mensagens que eu não entendia. Abaixo dos monitores, algumas teclas brilhavam convidativas. Hesitei me perguntando se seria de todo mal se apertasse algumas delas.

– O que está pensando em fazer? – a voz vinha diretamente das minhas costas. Virei rapidamente, encarando Rhes e mais três outras pessoas que estavam sentadas ao redor de uma pequena mesa, por cima da qual estava estirado um mapa detalhado, o que me dizia que havia interrompido uma reunião.

– N-nada!- gaguejei, sentindo as bochechas queimando. O homem que havia feito a pergunta parecia ser o mais velho e se levantou.

– Vou preparar as coisas lá dentro. – falou para os outros, já atravessando a porta - 21-S, você vem comigo.

A única mulher do grupo se ergueu do assento e o seguiu, sem antes deixar de lançar um olhar aborrecido em minha direção. O único que sobrara na comitiva além de Rhes andou até as teclas e começou a digitar em uma velocidade que nunca vi antes, todos pareciam intensamente decididos que eu sumiria se me ignorassem.

– Sente-se, Deidre. – convidou Rhes e atendi com pressa, agradecida por não estar mais no caminho das pessoas. O jovem descruzou os braços e me encarou. – Como se sente hoje?

– Melhor, obrigada. – falei, olhando para o homem que continuava a dar as costas para mim.

– Temo que não sejamos especialistas em lidar com pessoas. – se desculpou, tentando sorrir.

Fiz um gesto mostrando que estava tudo bem, percebendo que o lado esquerdo da cabine de comando estava transparente e mostrava um vale coberto de areia muitos metros abaixo do transportador. Estávamos em cima de uma duna. Quase joguei a cadeira para trás e me movi para frente da parede-funcional-agora-transformada-em-uma-imensa-janela. Tive que me esforçar para não manchar o vidro com as mãos: a paisagem lá fora era ao mesmo tempo esplêndida e solitária. Quando senti a presença de Rhes ao meu lado, lhe agradeci mentalmente por não me deixar sozinha.

– Estamos chegando à Nova Marchand, 473-K. – informou o homem das teclas, fazendo questão de acrescentar a última parte.

– Continue diminuindo a velocidade e avise 74-S e 520-S que aprontem tudo para o carregamento. – retrucou o jovem ao meu lado e notei que sua voz mudava quando dava ordens.

O homem ainda dava instruções em um pequeno microfone quando sua voz parou de repente. Fiz a menção de virar-me para ver qual era o problema, mas a mão de Rhes segurou meu ombro.

– Vá para trás. – ordenou para mim. Mas a curiosidade foi maior e virei o corpo para onde estavam os monitores e a janela que mostrava o que estava imediatamente em frente ao transportador. Desejei logo depois que não tivesse, porque diante de nós estava apenas a destruição. Um longo véu de fumaça se erguia de Nova Marchand, mesmo da distância de talvez um quilômetro que nos separava era possível ver as enormes feridas que ostentava. Nenhuma construção estava intacta, a maioria se desfazia pela terra aos pedaços. O tom negro de fuligem cobria todos eles, como um cobertor macabro. Mas o pior não estava nisso. O pior era a sensação de ausência. A ausência completa de pessoas. Senti a mão de Rhes apertar meu ombro com mais força.

– Para trás, Deidre. Agora.

Ele não precisaria repetir. Assenti rapidamente e deixei o comando o mais depressa que minhas pernas conseguiram. Meu coração batia descontrolado, minha mente pedia apenas que a paisagem de ontem não se repetisse.

Sem que eu percebesse meus pés me levaram até a cabine onde eu havia acordado e eu me perguntei porque só minha cama ficava ali, mas logo lembrei que as outras cabines estavam lotadas e talvez não tivessem restado sobreviventes o suficiente para ocupar essa cabine além de mim. Minha cidade era pequena mas, comparado ao número de pessoas salvas naquele transportador, pude saber que muitos haviam sido deixados para trás.

Com um leve chacoalhar o transportador parou e eu tive vontade de olhar a cidade lá fora, sair dessa aglomeração de tons escuros e suspiros chorosos que pareciam predominar por todo o ambiente, mas a lembrança do olhar atônito do robô na sala de comando e do aperto de Rhes no meu ombro me fez pensar que eu não teria permissão. Suspirei olhando a parede metálica atrás da minha cama e imaginei que não teria problema algum em apenas olhar o que se passava do outro lado. Olhei os botões que Rhes mais cedo havia acionado e tentei um deles me virando para ver a paisagem do deserto surgir no lugar das paredes de alumínio, mas em vez disso vi duas portas se abrirem ao longo das paredes, o ar climatizado da cabine dando lugar ao ar quente do deserto, o vento espalhando areia sobre o chão liso. Puxei o capuz do meu vestido sobre a cabeça e pulei do transportador olhando a cidade destruída enquanto uns poucos robôs – pude ver Rhes entre eles – desapareciam entre os escombros alguns metros à minha direita.

Eu nunca tinha ouvido falar de Nova Marchand, mas devia ser uma bela cidade quando em seus melhores dias. Entretanto, hoje ela se reduzia a montes de aço negro destroçado e fumaça. Caminhei entre os destroços de construções, robôs e... pessoas. Eu podia ver corpos presos sob placas de aço retorcido, atravessados por lâminas ou simplesmente caídos sem vida no meio da rua. Não parecia haver sobreviventes. O silêncio na cidade reinava e cada passo meu parecia ecoar por todos os lados. Afastei-me caminhando sempre em frente, escalando enormes pedaços de aço e ferro que interditavam o que um dia fora uma rua, evitando as áreas onde grandes blocos de fumaça negra subiam.

O sol refletiu brilhante no aço negro coberto de fuligem que pertencia ao que eu reconheci como um saltador aparentemente destruído. Estava caído no chão rodeado por robôs de guerra – com suas faces lisas e olhos de farol, feitos apenas para matar – e humanóides – como Rhes e Tia Sybil, feitos para parecerem humanos. Aproximei-me da cabeça apagada, mas, não vendo nada de interessante, comecei a contornar o corpo enorme quando um barulho baixo me chamou atenção. Olhei ao redor e, sem notar nada de diferente, me virei para continuar quando um forte estrondo me fez cair enquanto uma nuvem de poeira se levantava ao me redor, tirando minha visão do que acontecia. Imaginando que um prédio tinha cedido e começado a desabar, me levantei pronta pra correr, mas dois faróis vermelhos ladeados um leve brilho azul me encararam. Eu nunca imaginei que pudesse gritar tão alto. Na verdade, todas as vezes que eu me assustava minha voz sumia e tudo que eu conseguia emitir era um grunhido estrangulado, mas vendo aqueles olhos três metros acima de mim em meio à poeira escura, meus pulmões juntaram todo o ar que puderam e meu grito rasgou os céus daquela cidade morta. Corri o mais rápido que minhas pernas podiam, tropeçando e caindo várias vezes no caminho, agradecendo por ainda estar usando as botas de viagem que Tia Sybil tinha me dado. Um saltador em boas condições teria me alcançado com apenas um salto, mas aquele aparentava estar com vários problemas. Eu podia ouvir o estalar de fios soltos e o ranger de suas engrenagens seguir os movimentos das pernas enquanto subia os destroços do que parecia ser uma casa inteira caída. Um dos braços do robô estava totalmente amassado e pendia sem uso, enquanto uma das pernas se movia com dificuldade, mas isso não o impedia de avançar rapidamente em minha direção. Vasculhei minha mente e o ambiente ao redor procurando um meio de escapar ou pará-lo, o pânico tomando conta do meu corpo, eu só conseguia pensar que tinha escapado da morte duas vezes e que a terceira tentativa parecia ser infalível. O saltador atirou uma placa de ferro na minha direção, eu me abaixei segundos antes de sentir a corrente de ar causada pelo objeto passar sobre minha cabeça, perdi o equilíbrio e rolei morro abaixo caindo com força. Levantei zonza, sentindo meu corpo todo doer, para ser pega de surpresa pela visão de Rhes se atirando contra o dorso do saltador.

– Rhes! – meu grito de alegria saiu sufocado, ele não pareceu me ouvir. A lâmina brilhou no sol quando ele a levantou para cravá-la na parte de trás da cabeça do inimigo, mas um movimento rápido do saltador fez com que ele despencasse. Por um momento eu esqueci que três metros de altura não eram nada para um robô e meu peito se apertou com força. Rhes se levantou quase de imediato e saltou na direção do saltador que tentava sem sucesso derrubá-lo novamente no momento em que outro humanóide pulou na parte de trás do corpo do robô e terminou o trabalho que ele havia começado. O saltador estremeceu e atirou Rhes com força contra a parede de uma construção próxima para logo em seguida cair desativado. O outro humanóide saltou de cima dele e correu na direção do companheiro.

– Rhes! – eu grunhi assustada, correndo na direção dele. Ele se levantou devagar, o braço esquerdo pendendo sem vida.

– Preciso de reparos. – seu rosto sério se virou para o outro humanóide que usava uma farda parecida com a dele. “R.E.S. 520-S” eram os dizeres no braço esquerdo do robô que lançou um olhar de desaprovação na minha direção.

– Nós temos uma missão a ser cumprida e precisamos de nosso comandante intacto para isso.

– Eu conheço os detalhes da missão, 520-S. – Rhes olhou para ele aparentemente sem entender.

– Entretanto continua estando em situações de risco em prol da criança humana. – o robô lançou um olhar rápido para mim, como se eu fosse estúpida demais para entender a conversa.

– Nos já tivemos que deixar muitos para trás, a missão se torna inútil se os humanos não forem salvos. – a postura de Rhes me pareceu mais ereta e a seriedade de seu rosto me fez pensar que outro robô estava na minha frente, não aquele de sorriso discreto e amigável que eu conhecera.

– A missão se torna inútil se todos os humanos forem salvos mas não pudermos chegar ao local destinado porque nosso comandante foi destruído para salvar uma única criança. Talvez seus simuladores de emoções devessem ser reparados, 473-K. – o 520-S lançou um olhar de desafio na direção dele.

– Se meus simuladores precisassem de reparos, eu não teria sido estabelecido seu comandante nesta missão. – Rhes terminou a discussão e completou com o mesmo tom de voz – Reúna os outros e peguem os suprimentos mais acessíveis. Água é prioridade. A busca por sobreviventes foi cancelada.

O robô se virou e partiu deixando-nos a sós. Rhes se virou para mim, seu rosto com a mesma expressão séria de antes.

– Quando receber uma ordem você deve cumpri-la, Deidre.

– Desculpe... Desculpe pelo seu braço. – desviei meus olhos para o chão sem conseguir encará-lo e minha voz saiu num murmúrio. Ele se pôs de joelhos na minha frente e afastou meu capuz para trás:

– Deixe-me ver o seu rosto. – seus dedos ágeis seguraram meu queixo com tamanha delicadeza que imaginei como era possível que esses mesmos dedos pudessem também partir um crânio em pedaços. Seus olhos analisaram cada milímetro da minha face com atenção, fazendo meu rosto corar, passando em seguida para meus braços e minhas pernas. – Dói em algum lugar?

– Não. – menti, sentindo meu corpo moído. Os olhos de Rhes imediatamente foram em direção aos meus e ele sorriu.

– Está mentindo. Precisa treinar mais se quiser burlar meus detectores.

– Não é tão mal assim... Já senti dores piores. – eu sorri sem jeito, inevitavelmente me lembrando de meus pais e de tia Sybil, inconscientemente segurando a foto no meu bolso. Rhes me lançou um sorriso cúmplice e estendeu a mão:

– É uma foto deles?

Meu olhar de surpresa logo deu lugar a um pequeno embaraço: aparentemente eu tinha passado mais tempo tocando aquela fotografia do que o imaginado. Estendi a foto para ele e desviei o olhar para a fumaça no horizonte tentando não pensar neles nem em tia Sybil. Rhes analisou a foto por alguns instantes e depois me devolveu silenciosamente.

– Você é uma garota forte, mas eu receio que não possamos dizer o mesmo de mim. – ele deu de ombro mostrando o braço inerte – Vou precisar de algum reparo antes de continuar. Se importaria? – levantou-se e novamente me estendeu a mão.

– Claro que não. – coloquei minha mão sobre a dele, os dois andando em direção ao transportador, e pela primeira vez senti que o buraco em meu coração parecia um pouco menor.



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Notas finais do capítulo

Reviews nos fazem felizes como pandas numa floresta de bambu.
- Joana



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