Sobre Metal e Sangue escrita por JojoKaestle, LudMagroski


Capítulo 3
O dia em que os deixamos para trás




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Os dias eram vazios no transportador. Não demorou muito até que os meus se resumissem a ficar sozinha sentada sobre o colchão velho olhando a foto de meus pais. Às vezes visitava a cabine da senhora Adele, mas seus ferimentos haviam se mostrado mais severos do que admitira e muitas vezes apenas ficava ao seu lado e a observava enquanto dormia. Sentia como se tivesse sido empurrada do alto de uma escada e só agora tivesse parado para olhar o tamanho da queda. Era só um dia comum: eu tinha acordado, tomado café e ido para escola. E de repente eu havia perdido minha tia, meus amigos, minha casa. O mundo tinha sido puxado sob meus pés. Eu era uma garota sozinha viajando no deserto a caminho de uma estação mais segura onde eu e sabe-se lá mais quantas pessoas ficariam até que a guerra terminasse. Ou até que o exército inimigo nos encontrasse. Para ser sincera, a primeira opção me assustava mais. Quando a guerra terminasse as famílias se reencontrariam e voltariam para reconstruir suas casas, procurar seus amigos... Mas o que eu faria? Para onde eu iria? Estar viva me parecia tão... Errado. Quando meus pais se foram eu sequer tive espaço para pensar nisso. Tia Sybil me acolheu antes que eu começasse a me sentir só e ela se preocupava tanto comigo que eu tinha certeza de que nunca estaria sozinha. É claro que eu nunca deixei de sentir falta de meus pais – eles eram como uma cicatriz profunda marcada em meu peito – mas eu não me sentia nem um pouco perdida: eu ainda tinha alguém, tinha amigos, tinha um lugar para chamar de casa. Olhei novamente para os rostos sorridentes de meus pais e imaginei tia Sybil ao lado deles lhes lançando um olhar bobo, porque seria assim que ela reagiria. Era uma amante de contos de fadas e quando eu ria dela, dizia que já tínhamos desgraças demais nas nossas vidas para querê-las também nas histórias. A imagem de minha tia sendo atravessada pelas lâminas fez meus olhos arderem e minha garganta se fechar com força. Apesar de tudo, eu não conseguia pensar nela como um robô. As lágrimas brotaram com força e eu me deixei chorar livremente, encolhida contra a parede, meu peito sacudindo com os soluços. Seria tudo tão mais fácil se eu tivesse sido deixada para morrer junto à tia Sybil como tantos outros... Mas ao mesmo tempo, quando o saltador em Nova Marchand me atacou, eu não quis morrer. Não porque tivesse medo da dor – eu só tinha treze anos, mas sabia que nenhuma dor física poderia ser pior que a que eu sentia -, mas porque imaginava que, onde quer que meus pais e tia Syibil estivessem, conscientes ou não, eles queriam que eu permanecesse viva.
E havia Rhes. Ele havia me salvado e cuidado de mim, e a presença dele me acalmava bastante. Ele dizia que eu era forte, e por ele eu me esforçava para realmente ser. Respirei fundo limpando minhas lágrimas e guardando a foto no meu bolso. Levantei da cama, ativando o dispositivo da parede: o dia nascia deixando as nuvens em bonitos tons de rosa e laranja e a paisagem do deserto começava a parecer mais habitável, com pequenos oásis e palmeiras sendo mais freqüentes. Olhei-me em um espelho velho que Rhes conseguiu para mim e vi as olheiras que surgiam no meu rosto. A porta da cabine se abriu sem aviso e Rhes entrou com uma bandeja metálica nas mãos.

– Bom dia, Deidre.

Eu franzi o cenho para ele:

– Mas o sol acabou de nascer.

– O que quer dizer com isso? – Rhes piscou.

– Que normalmente as pessoas acordam algumas horas depois.

– Ah, sim, a maior parte delas, com certeza. Mas você já acordou faz algum tempo, não é? – ele sorriu.

– Como? – eu gaguejei.

– As câmeras. – ele apontou para os cantos no teto, mas meus olhos não viram nada – A imagem não é muito boa, mas servem para a segurança ainda assim.

Eu senti todo o sangue do meu corpo se concentrando nas minhas bochechas, mas Rhes só colocou a bandeja sobre a cama e sentou ao lado. Eu olhei para o comprimido e o copo d’água e torci a boca.

– Não estou doente.

– É sua refeição. – eu continuei o olhando sem demonstrar a menor intenção de comer – Você precisa de nutrientes, Deidre, como todo mundo. E essas pílulas têm tudo o que seu corpo precisa diariamente.

– Eu trocaria todos esses nutrientes por um sanduíche. – suspirei, sentando na cama e pondo a pílula na boca.

– Eu sei que humanos tem necessidade de mastigação, mas não pudemos conseguir alimentos ainda, por isso tenha paciência. – ele me estendeu o copo com água e eu engoli a maldita pílula. Subi na cama e me recostei, olhando a paisagem através da parede transparente. Percebi que Rhes analisava meu rosto, mas não me incomodei, provavelmente ele procurava a expressão em um banco de dados para achar a reação mais adequada.

– Rhes... O que vai acontecer quando chegarmos a essa tal base?

– Vai ser como na sua cidade, mas de um modo mais precário, porque não temos muito tempo nem recursos para gastar. E algum contingente de R.E.S. ficará para a proteção enquanto o resto irá procurar mais humanos e mais recursos.

– O que vai acontecer comigo? – eu me virei para encará-lo, tentando fingir que não me importava com a resposta.

– O mesmo que com todos os outros, Deidre... Vocês receberão cuidados e quando estiverem recuperados poderão se ocupar de algo para manter a base em funcionamento.

Tentei me imaginar em meio a um monte de estranhos, cada um deles tentando recuperar suas vidas que haviam sido desgraçadas dos mais diferentes modos. Eu sabia que os caminhos a seguir depois dali não me soavam agradáveis de modo algum, mas a idéia de ficar ali para sempre me fazia sentir extremamente desolada, principalmente porque algo me dizia que depois que alcançássemos a base Rhes me deixaria.

– E quando vamos poder ir embora? – perguntei, apesar de já saber a resposta. Rhes me olhou e afagou meus cabelos.

– Vai ser bem melhor do que está sendo, posso garantir.

– Pode mesmo? Porque eu não acho que vá ser melhor se eu vou ter que me acostumar com uma terceira vida. – não pude evitar um olhar ressentido em sua direção, eu estava cansada de pessoas me dizendo que tudo ficaria bem quando estava bem claro que não ficaria. Ele só me encarou de volta, seus olhos correndo minha face como se buscasse compreender rapidamente o que se passava em minha mente:

– Não, eu não posso. – ele parecia esperar uma explosão de minha parte, mas eu só torci a boca e me voltei para a paisagem rochosa do lado de fora. Ficamos em silêncio por um bom tempo, o suficiente para que um aborrecimento irracional tomasse conta de mim. Não queria mais ser enganada, queria saber o que me esperava, por mais terrível que fosse, seria sempre melhor que criar ilusões novamente. Depois de tudo pelo que tinha passado recentemente, eu sabia que me agarraria à mais fraca e trêmula esperança como um náufrago se agarra à bóia que lhe atiram e, na hora em que precisasse deixá-la ir, eu me despedaçaria uma vez mais. Ainda assim uma parte de mim queria que Rhes me abraçasse, aconchegando minha cabeça contra seu peito, e me dissesse que eu não precisava me preocupar, que ele cuidaria de tudo, cuidaria de mim, que eu não teria que tomar decisões mais difíceis do que escolher o que queria comer no café da manhã.

Mas não. Rhes tinha um cargo importante, ele tinha seus problemas. Eu teria que crescer, teria que ser minha própria mãe e meu pai. Estávamos no meio do deserto, durante uma guerra civil e sendo atacados pelo país vizinho, eu sabia que quando as coisas ficassem realmente difíceis todos estariam preocupados com eles mesmos e com o que restou de suas famílias, eu teria que me virar sozinha.

– Não faz sentido, Rhes. – minha voz saiu num sussurro triste sem que eu percebesse. De repente uma tristeza desesperadora tinha tomado conta de mim e eu olhei para ele como se suplicasse por ajuda, uma ajuda que ninguém poderia me dar.

– Deidre, você conseguiu até agora... – eu nunca tinha visto uma expressão tão triste no rosto de Rhes, e quis me bater por tê-lo feito se sentir assim – robôs realmente sentiam? Não me interessava, ele era humano para mim.

– Não – eu o interrompi. – Não faz sentido Nantes ter sido atacada, você não acha? – me senti constrangida ao perceber que tentava falar de política e estratégias de guerra com um comandante experiente – Quero dizer... era uma cidade pequena... no meio do nada... E ainda assim o Governo sabia: vocês estavam lá para nos salvar.

– Nantes não foi vítima da República de Grenoble, e sim da guerra civil. Você sabia dela, não sabia? – eu acenei com a cabeça e ele continuou, parecendo medir as palavras – Já faz um bom tempo, mas acho que as notícias não chegam com rapidez a esta parte do país... Os rebeldes tomaram o poder na capital e agora eles tentam conter as revoltas a favor do antigo Governo pelo país.

– Conter revoltas? – ofeguei – Mas eu sequer ouvi falar de algum movimento contra os rebeldes... E Nova Marchand foi reduzida a pó! – senti minha voz virar um murmúrio assustado – Um exército inteiro... Eles não queriam controlar revoltas, queriam destruir a cidade... Eu vi, Rhes, sabe que eu vi. As pessoas em Nova Marchand não tiveram a mesma sorte que nós.

– Isso porque este novo Governo tem um... diferencial. Mas eu não quero que se perturbe, Deidre. – Rhes se levantou e arrumou meu travesseiro, tirando a bandeja – Prometa que vai tentar dormir.

Eu só fiquei sentada na cama olhando ele se afastar em direção à porta, sabendo que nenhuma reclamação abusada minha faria ele me contar mais.

– Não é tão fácil. – respondi com amargura fitando o chão. Mesmo com todos os acontecimentos e a falta de noites de sono, eu não conseguia ser mal criada olhando Rhes nos olhos. Ele só sorriu e atravessou a porta, ignorando minha falta de educação.

O restante do dia se arrastou numa lentidão imensa e depois de visitar a senhora Adele pela terceira vez e dar uma olhada na cabine das crianças não tive mais idéias para ocupar meu tempo. Não é como se não quisesse conhecer novas crianças, mas era o olhar delas que não suportava. Todas haviam perdido alguém que estimavam e muitas seguraram a borda da minha camisa, perguntando se seus pais voltariam logo. Algumas vezes me abaixei para dizer que tudo ficaria bem (talvez a constância com que ouvia isso de Rhes houvesse me tomado), outras apenas perguntava se não tinham algo para brincar. E logo me arrependia. Apesar de me dizerem que já haviam brincado um monte, logo vi que uma cabine estreita não era o lugar ideal para se correr ou esconder. Um dos robôs que vira na cabine de comando com Rhes atravessou o lugar com passos enérgicos e fechou a porta para a cabine seguinte com força. Pude jurar que seu rosto mostrava irritação. Precisaria lembrar de perguntar a Rhes se robôs também se sentem incomodados com o choro de crianças pequenas.

O sol havia se posto atrás dos montes pedregosos há poucas horas e com um suspiro larguei “O manual dos transportadores WS-35: conhecimentos sobre funcionamento e reparos” (havia pedido algo para ler a Rhes, mas aparentemente robôs não são especializados em leituras para adolescentes ou era ingênua em imaginar uma biblioteca em um transportador do exército). Aproximei-me da parede-janela e encostei as mãos em sua superfície, meus olhos se estreitando para reconhecer os estranhos contornos negros que se levantavam do lado de fora. Usei o pedaço de pano que Rhes chamava de lençol para limpar os borrões da minha respiração sobre o vidro e tive certeza. Passávamos por mais uma cidade destruída, os muros das casas e outras construções haviam tombado de uma vez ou jaziam parcialmente pelo chão. Uma sensação estranha se instalou em minha barriga. Por mais que aquela imagem me entristecesse, o pensamento daquilo se tornando algo costumeiro me fez tremer de raiva. Quantos mais haviam morrido naquele lugar? Quantas crianças soterradas em suas casas? Quantos planos destruídos em segundos? Levantei do leito que usava e minha mão já pousava sobre o dispositivo para tornar aquilo uma paisagem de ferro e aço quando um tremor me fez congelar. Meus olhos encararam um minúsculo ponto luminoso que brilhava ao meio de toneladas de cimento e pedras, e momentos depois já passava correndo entre as cabines, levantando alguns protestos de quem tentava dormir.

– Rhes! Rhes! – chamei, entrando na cabine de comando com a mesma sutileza de um elefante em uma loja de cristais. O robô que havia encontrado na cabine das crianças mais cedo me olhou como se desejasse ser esse elefante e eu o cristal, largando a caneta que usara para fazer algumas anotações em um precário caderno e avançando sobre mim.

– Você não tem permissão para entrar aqui quando bem entender, humana. – proferira a última palavra como se fosse uma ofensa e em outras circunstâncias talvez a tivesse levado a sério, mas naquele momento apenas passei por ele para alcançar um Rhes que parecia um pai desconcertado ao ver seu filho praguejando em frente ao vizinho.

– Deidre, olhe – começou sério. Agarrei a manga de seu uniforme e tentei puxá-lo para a passagem.

– Não Rhes, não. Venha! Tenho algo para mostrar e juro que é importante. – lhe lancei um olhar de súplica e ouvi um muxoxo atrás de mim. Rhes me olhou durante poucos segundos e depois suspirou:

– Certo, me mostre.

Quando passamos pela porta, um “quando resolver parar de brincar de babá e voltar ao seu posto nos deixe saber” nos acompanhou. Juro que um pequeno sorriso se formou nos lábios do meu amigo e imaginei que a convivência entre robôs não era muito diferente da nossa, humanos. Soltei a manga de sua roupa apenas quando chegamos a última cabine e me ajoelhei sobre a cama, apontando o ponto luminoso para Rhes como quem descobrira um tesouro.

– OIhe, olhe! Eu acho que é uma fogueira! – Rhes franziu o cenho e se aproximou da parede transparente. A encarou como eu por alguns segundos e depois se afastou, o rosto impassível.

– Você poderia ter me mostrado pelas janelas da cabine de comando.

– Mas daqui dá pra ver melhor. – falei hesitante, não querendo dizer que seu colega me dava medo.

– Rhes? – chamei, ao ver que continuava em silêncio – Nós precisamos investigar, pode haver pessoas lá, sobreviventes!

– Não vamos fazer nada. – respondeu, mantendo o olhar afastado.

– Como não? – minha voz saiu esganiçada – Não é pra isso que vocês viajaram até esta região, para proteger as pessoas?

– Deidre, o terreno aqui é acidentado. Os transportadores jamais alcançariam aquele lugar sem tombar pelo caminho e não somos o suficiente para dividir o grupo em dois.

– Mas pessoas podem estar lá, elas podem precisar de ajuda e você não vai alcançá-las porque não quer nos dividir?

Nos dividir não, Deidre, você é apenas uma criança. Entenda que não pode sair por aí fazendo o que julga certo. – com um estalo percebi que suas palavras eram as mesmas do robô elefante e o mesmo pensamento deveria estar se formando em Rhes, porque imediatamente deu um passo em minha direção e estendeu o braço para tocar minha cabeça com carinho, mas me esquivei de sua mão e o encarei irada.

– Desculpe, Deidre, mas realmente preciso que fique fora disso. Não queremos sofrer mais baixas, certo? – quando viu que eu não fazia a mínima menção de responder virou as costas e deixou a cabine silenciosamente.

– MAS É O CERTO A SE FAZER! – gritei quando suas pernas passavam pela soleira da porta. Nenhuma reação. Aquilo me deixou enfurecida e tive o ímpeto de gritar mais. No lugar disso olhei durante alguns minutos para a porta que Rhes havia fechado. Vagarosamente me enrolei no lençol e sentei na cama com as pernas flexionadas. Pela janela o ponto luminoso se tornava cada vez mais distante até ser engolido pela escuridão. Escondi o rosto entre meus joelhos e chorei por aquele lugar que mal conhecia e, mais ainda, pelas pessoas para as quais havíamos virado as costas. E chorei por ser apenas uma criança em tempos que exigiam atos de heróis, sem saber da linha tênue que separa um do outro, nem da proximidade dos eventos que o provariam.


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Notas finais do capítulo

Agora que temos uma quantidade razoável de capítulos prontos vamos postar com maior frequência, o que de modo algum significa que vocês não vão mais precisar chutar nossos traseiros, porque memória não é o forte dessa parceria :B
Muito obrigada por lerem e quem comentar ganha um lugar no coração de Rhes :D
- Lud



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