Sobre Metal e Sangue escrita por JojoKaestle, LudMagroski


Capítulo 13
Quando seguimos caminhos diferentes




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A noite foi o momento mais difícil depois que tudo acontecera. A dor das minhas feridas já não era tão forte, eu não precisava mais encarar os robôs, me preocupar com a volta de todos em segurança ou em descobrir as informações contidas no chip. Estava sozinha no silêncio noturno, rodeada de pensamentos dolorosos. A verdade é que eu passara o dia anterior ignorando a recém morte de Rhes e a iminente separação de meus amigos. Foi com dificuldade que engoli o bolo que insistia em se formar na minha garganta, tentando ser forte. Não porque eu precisasse me mostrar forte para alguém (mas o fato é que eu precisava), mas porque me sentia como em um daqueles momentos em que se andou demais e suas pernas doem tanto que tem certeza que se parar não vai conseguir continuar. Não poderia chorar. Não agora, não por um bom tempo. E, para isso, não poderia deixar que os pensamentos dolorosos povoassem minha mente.  Mas não era fácil, nem um pouco. Peguei-me sussurrando “As esferas somos eu e você e a coragem... Lá fora o vento frio sopra, mas aqui as fogueiras ainda queimam...” numa tentativa de imitar a melodia de Edda antes de adormecer, mas meu sono foi inquieto. Por várias vezes acordei me sentindo exausta e dolorida.

Depois de acordar dezenas de vezes devido a pesadelos desagradáveis, desisti de dormir. Calcei minhas botas com cuidado e vesti o sobretudo, puxando o capuz sobre a cabeça. Eu não podia arriscar pegar um resfriado e o sol ainda estava tímido no horizonte quando saí do transportador, o frio da noite sequer começando a dissipar-se. Do lado de fora 63-S e Adeline montavam guarda em silêncio enquanto o resto do acampamento continuava adormecido em barracas improvisadas ou dentro do transportador. Caminhava despretensiosamente pelo terreno esperando que o exercício me aquecesse um pouco e afastasse o sono quando Berthe surgiu de dentro de uma tenda, quase esbarrando em mim.

- Deidre – disse em tom monocórdio, erguendo as sobrancelhas louras – Preciso falar com você – ergueu a aba de sua barraca, dando espaço para que eu entrasse. Sentei no chão duro, deixando o capuz cair e imaginei como conseguira passar a noite sem nenhuma manta. Ela sentou-se na minha frente, vestindo a mesma regata que usava sempre, como se fosse de alguma forma imune ao frio.

- Parece que de alguma forma o Comandante Rhes se desativou e passou o comando da missão para você.

- Eu ia avisá-la – falei com certa urgência – só achei que todos estariam ocupados demais na noite passada...

- Isso muda um bocado as coisas. – Berthe continuou, me ignorando completamente – Nós claramente caímos numa armadilha e o preço da nossa estupidez teve de ser pago. Bem, as pessoas precisam saber que a opção de procurar refúgio ainda existe, se você estiver disposta a completar sua missão.

- Estou. – cerrei os punhos em uma tentativa de não deixar a determinação que tinha me escapar entre os dedos – Mas pensei que a idéia de nem todos seguirem para a base rebelde não a agradava.

Berthe desviou o olhar para o chão e no tempo em que permaneceu calada pensei em vinte maneiras diferentes de castigar minha língua solta. Todas as discussões calorosas entre ela e Rhes me vieram à cabeça, me fazendo querer levantar e sair dali o mais rápido possível.

- Estamos indo para uma base rebelde, afinal. – a mulher deu de ombros – Se quem não se dispõe a lutar for conosco, estaremos carregando peso morto. É melhor que seja assim.

- Bem – tentei parecer simpática – ao menos você pode ter certeza de que perderá poucos membros. Não estou certa que muitos vão querer me seguir.

- Consigo entender. – suspirou cansada, como se tudo aquilo a entediasse - Tenho certeza de que aqui existem outros da sua idade em que eu apostaria para cumprir essa missão, mas você... eu não diria que está pronta pra isso.

Em vez de sentir o peso de um soco na boca do estômago e me desmanchar ali mesmo, apenas me vi falando, como se minha língua tivesse vida própria:

- Mas a missão foi dada a mim e temo que nossos inimigos não vão esperar pacientemente até que eu esteja. Eu vou fazer o que tem que ser feito, pronta ou não.

Berthe me encarou com uma expressão séria e senti minhas bochechas começarem a enrubescer quando ela terminou por abrir um sorriso, o que deixou confusa. Sorrisos eram raros no rosto da mulher.

- Parece que Erwan e Edda estavam certos. – Berthe se levantou, me estendendo a mão – Acho que já devem estar servindo a refeição da manhã.

Começava a sair da tenda quando ela pôs a mão no meu ombro, me fazendo parar.

- Só lembre-se de uma coisa, Deidre. Esses robôs parecem... Não, eles estão do nosso lado. Mas os da capital também estavam e nós vimos o que aconteceu. – me lançou um olhar grave e eu tentei lhe devolver uma expressão de entendida, apesar de não fazer muita idéia do que ela estava falando. É bem verdade que os robôs na capital eram os responsáveis pelos ataques, mas eles eram um exército, se estavam nos atacando era porque quem quer que estive no poder agora os ordenava. Ou não? Dei de ombros assim que Berthe sumiu dentro de sua tenda e segui para onde Damien começava a organizar as caixas de alimentos. Eu sabia que conhecer em detalhes o que estava acontecendo no nosso país era essencial agora que eu teria um punhado de vidas nas minhas mãos, mas no momento minha mente estava ocupada demais para que eu pudesse me concentrar no assunto.

- Bom dia, Deidre. – sorriu, colocando com cuidado uma das caixas ao lado das outras. Tinha um hematoma escuro na têmpora esquerda sumindo entre os cabelos claros e vi que seu antebraço parecia queimado. Damien ajudava com a manutenção e distribuição dos alimentos, vez ou outra saindo em um dos grupos de busca, mas eu só o conhecia de vista. Tinha os olhos azuis claros e ostentava uma barba rala castanha que adornava o seu sorriso gentil.

- Olá – tentei sorrir de volta, mas a expressão pareceu não se encaixar no meu rosto – Quer alguma ajuda?

- Hm, você poderia ir abrindo e distribuindo as latas? – me entregou o pequeno abridor e indicou com a cabeça um grupo de pessoas já começando a desmontar suas tendas e empacotar suas coisas antes de se afastar para pegar mais caixas. Logo havia uma pequena fila formada na minha frente, ansiosa por comer o que provavelmente seria sua última refeição decente em semanas. Acontece que o ataque surpresa tinha destruído muita coisa e nós estávamos ocupados demais correndo por nossas vidas, e mesmo depois de as coisas se acalmarem Berthe decidira que seria melhor não se aproximar do local. Não sabíamos até que ponto as edificações ainda estavam estáveis e nem mesmo se algum robô inimigo havia sobrevivido. A verdade é que apenas o fato de ainda estar nas redondezas daquele lugar me dava uma sensação gélida no estômago. Evitei pensar nas pessoas que ainda poderiam estar lá, vivas, porque não tínhamos como retirar escombros, mal tínhamos remédios para nós mesmos e não tínhamos tempo. Todos pareciam calmos e lentos no ar frio da manhã, mas a verdade é que um sentimento de urgência por deixar aquele lugar pairava no ar.

Aproveitei que todos estavam reunidos e sentados para subir em uma das caixas vazias e limpar a garganta, tentando chamar a atenção para mim. Desci o capuz e senti meu rosto queimar quando notei todos os rostos virados na minha direção. O que diabos eu estava fazendo, afinal de contas? Ignorei o meu lado que pensava demais e me deixei levar, do mesmo jeito que havia feito na barraca de Berthe mais cedo, do mesmo jeito que viera fazendo desde que ele se fora. Pisquei ao notar que estivera perdida em devaneios enquanto me observavam.

- Certo. Então... – senti minha língua se tornar grande demais para minha boca e de repente estava estranhamente consciente de cada parte de meu corpo, meus braços pendendo como peso morto – Acho que todos aqui já devem saber que o Comandante Rhes está entre os que não sobreviveram ao ataque de ontem – tive a sensação de ouvir um pequeno murmúrio de desaprovação – mas isso não significa que sua missão foi abortada. Todos que ainda desejarem seguir para a base segura com os robôs ainda podem fazê-lo, e estaremos partindo daqui a algumas horas... Sob minha liderança. – tentei esboçar um sorriso que saiu torto e desci da caixa desejando que um latão de combustível explodisse para que todos parassem de me olhar.

- Como diabos a missão está sob seu comando agora?  - o velho Adrien comentou com a boca cheia de milho em conserva, como se conversasse com um companheiro de bebidas em um bar.

- Rhes... – tentei soar firme – O Comandante me passou a missão.

Eu sabia desde o início que aquilo não seria aceito de bom grado por ninguém, mas pela primeira vez eu estava me dando conta do obstáculo. Não importava que eu conseguisse suportar as fisgadas na minha perna, os hematomas nas minhas costelas, a separação dos amigos ou a morte de Rhes se eu não conseguisse convencê-los a me seguir.

- E você está nos pedindo para botar nossas vidas e a de nossos filhos nas mãos de uma criança? – Cecille perguntou enquanto dava uma colherada de ervilhas ao filho – Desculpe, mas quantos anos você tem?

- Perdão, Cecille – Berthe nos interrompeu do outro lado do grupo – Mas viemos colocando nossas vidas nas mãos dessas crianças há um bom tempo. Quantas vezes não foram eles a vigiar o acampamento para que você pudesse dormir em segurança, saindo em missões para buscar mantimento ou em resgate quando alguém se perdia? Chame de crianças se quiser, mas muitos deles pegam em armas tão bem e até melhor do que nós. Basta que olhe a quantidade de ferimentos que carregam sem reclamar para perceber que já deixaram de ser crianças a muito. Por isso aconselho aos que não estiverem dispostos a lutar que sigam com Deidre para um lugar seguro. Vai ser melhor para todos nós.

Houve um momento desconfortável de silêncio em que eu aproveitei para me afastar em direção ao transportador enquanto os outros terminavam suas refeições. Iríamos partir em breve e eu precisava organizar minhas coisas, não que fossem muitas. Puxei uma caixa vazia e acomodei duas mudas de roupa extra que Edda tinha me arranjado, um punhado de bombas de fumaça, o espelho quebrado que Rhes me dera, o manual dos transportadores e a lata de salsichas a que eu tinha direito como café da manhã. Apalpei meus bolsos, tirando o pequeno chip que Rhes me dera. Mesmo ali dentro sua superfície negra e lisa brilhava, refletindo as paredes metálicas do transportador e meu rosto. Era realmente belo, só agora eu havia parado para perceber, mas ainda assim olhá-lo me trazia um turbilhão de sensações ruins e foi com alívio que notei Danton parar ao meu lado.

- É realmente bonito. Imagino que já o abriu?

- Como você sabe do que se trata? – me virei para encará-lo começando a ficar alarmada.

- Ninguém me contou nada, acalme-se – me puxou para debaixo do seu braço, fazendo um cafuné na minha cabeça – Acho que já deu pra notar que eu tenho interesse pela robótica, e daí reconhecer um chip com informações confidenciais não é nada espantoso.

- Ah. Bom. – relaxei, sentindo minhas bochechas esquentarem – Você quer vê-lo? – estendi o chip em sua direção. Danton o olhou por um momento antes de pegá-lo e observá-lo com cuidado.

- Já recolheu todas as informações necessárias? – me perguntou sem tirar os olhos do pequeno objeto.

- Sim. E já as apaguei. Está vazio. – dei um passo para trás à espera do mesmo ataque nervoso que Anselme tinha tido, mas seus olhos escuros me encararam brevemente antes de voltar ao objeto.

- Posso levá-lo por um instante? Devolvo antes de você partir. – o olhei com hesitação e ele avançou, segurando minhas mãos e ostentando seu melhor sorriso – Prometo tomar cuidado, ninguém o verá além de mim e estará em suas mãos antes que perceba que eu o levei.

Assenti por fim e Danton se retirou apressado com um sorriso enquanto eu fechava minha caixa e a guardava em um canto da cabine de comando. Uma garota de pele e cabelos negros um pouco mais alta que eu acomodava uma caixa grande quando saí da cabine. Tinha longos fios arrumados em estilo rastafári caindo sobre os ombros e olhos amendoados que me analisaram de cima a baixo quando me aproximei.

- Deidre, não é? – esperou pela minha confirmação – Ah, sim, agora já lembro... Você fazia parte do grupo de busca de Edda.

- Sim, e acho que ela já me falou de você. Trouxe-nos um grande carregamento de pêssegos em calda há pouco. Aydee, acertei?

- Acertou! – a garota deu uma risada gostosa – Edda é mesmo uma graça. Mas, bem, você deve ter muito a fazer e eu ainda preciso me despedir e pegar cargas novas para minhas garotas – deu um tapinha nas duas pistolas brancas que carregava de cada lado do quadril.

- Espere – ergui as sobrancelhas, surpresa – Quer dizer que está vindo conosco?

- E porque não? – me olhou como se eu fosse estúpida - Ouviu o que Berthe disse e, por melhor que você possa ser, alguém boa como eu na arte de chutar traseiros robóticos não vai te trazer mal.

- Achei que ela tivesse dito que quem não estivesse disposto a lutar deveria vir comigo. – franzi o cenho, desviando o olhar. Aydee soltou uma gargalhada.

- Quem não estiver disposto a lutar deve começar a cavar sua própria cova, isso sim! Ou então correr para a capital e viver encolhido pelos cantos, não sei o que é pior. – me deu as costas e saiu aos pulos, chamando por alguém do lado de fora. Segui o mesmo caminho para fora do transportador e me deparei com o acampamento em movimento: barracas eram desmontadas e caixas e mais caixas eram carregadas para lá e para cá em meio a gritos de ordem e reclamações. O sol já atravessara a linha do horizonte e as ondas de calor começavam a subir, vagarosas, do chão. Tirei o casaco e me pus a recolher as caixas de mantimentos e remédios que foram disponibilizadas para o grupo que seguiria em direção à base segura. A explosão nos tinha feito perder tantas pessoas quanto comida, mas ainda assim a partir daquele dia teríamos que racionar: apenas uma refeição por dia até encontrarmos novas fontes de alimento. Com a água tivemos mais sorte: a maior parte do líquido tinha ficado nos transportadores, em segurança, nos permitindo uma preocupação a menos. Em Nantes racionamento de água significava que as tubulações só funcionariam por três horas em um dado dia da semana e que nesse tempo teríamos que encher galões e guardar toda a água que fossemos precisar – ou que pudéssemos pagar. Não era difícil. Vivíamos assim há bastante tempo e nunca tínhamos passado sede. Mas no norte, na região árida de Rouen, pra onde vínhamos avançando desde sempre, as coisas não iam tão bem. Com o caos, proprietários ricos se apossaram de pedaços de terra onde ainda houvesse a possibilidade de água potável e cobravam preços exorbitantes por um galão. Quem não podia pagar ou morria de sede ou se virava com água não-tratada. O que acabava em morte, de qualquer jeito. 63-S se aproximou quando eu empurrava o último galão com esforço para dentro do transportador.

- Em quanto tempo partiremos? – pôs os braços para trás, com a pompa de quem me perguntava se poderia sugerir um vinho para acompanhar a refeição. Olhei ao redor, limpando o suor da testa.

- Preciso falar com você. É tempo suficiente para que se despeçam e subam a bordo. Depois, partiremos. – entrei no transportador e fiz sinal para que ele me seguisse. Passei por Cecille e seu filho e um rapaz que achava se chamar Arnaud com seu irmão mais novo. Ao menos não seriamos só eu, Aydee e os robôs. Suspirei aliviada, entrando na cabine de comando e me atirando numa das cadeiras, que deu um vagaroso giro, parando voltada para 63-S. Vasculhei os bolsos à procura de um pequeno pedaço de papel e o estendi a ele. O robô olhou para o fragmento e de volta para mim, sem mover-se.

- Quero que conduza o transportador até esse ponto – balancei o papel com as coordenadas que copiara do mapa de Anselme no ar e o robô finalmente o pegou.

- Quer que eu o programe para seguir até esse ponto?

- Não. Quero que o conduza. – disse a última palavra com clareza, para que não houvesse dúvida.

- É realmente necessário? Não podemos alcançar a velocidade máxima com condução manual.

- Sabe o motivo de Rhes ter entregado aquele chip a mim e não a um de vocês. Não podemos correr riscos, é melhor chegarmos mais tarde e vivos.

63-S consentiu, fazendo seus fios castanhos balançarem e olhou para o papel mais uma vez antes de rasgá-lo em pedacinhos minúsculos.

- Obrigada – o deixei a sós com seus monitores e botões coloridos e percorri o transportador, saltando para o ar poeirento do deserto quando Aydee subia com seu pai, Ernest. Acenei rapidamente para os dois e pude dar apenas alguns passos antes de ter o caminho bloqueado por Damien carregando duas caixas com facilidade.

- Deidre – falou com empolgação, como se estivesse feliz em me encontrar. Me perguntei se em algum momento Damien deixava de sorrir. A imagem dele sorrindo gentilmente enquanto destruía robôs inimigos fez um sorriso esgueirar-se no meu rosto endurecido pelos dias anteriores – Onde podemos deixar isto aqui?

- Então você vem com a gente?

- Vocês – me corrigiu, indicando Enzo ao seu lado. Tinham a mesma altura, mas o outro não aparentava a musculatura forte nem a tez levemente bronzeada de Damien. Pelo contrário, possuía uma pele clara que contrastava com os olhos e cabelos escuros como piche. O rosto tinha traços retos e fortes. Sorriu brevemente ao perceber que a atenção da conversa se voltava para ele. – E Armand também. Acho que já o conhece. – indicou um garoto por volta dos quinze anos que se aproximava com uma terceira caixa. O filho de Enzo e Damien era um garoto tímido e quieto, que passava a maior parte do tempo sentado à frente da tenda dos pais, lendo um dos livros velhos que conseguira carregar quando fugiram sabe-se lá de onde. Sobre a pele pálida como a do pai usava um par de óculos quadrados, mas que não escondiam seus olhos verdes, e uma cabeleira negra e lisa cobria a cabeça, caindo insistentemente na testa enquanto ele caminhava.

– Não tem muita gente, então vocês podem escolher suas camas e deixar suas coisas por perto. Caso sejam medicamentos, mantimentos ou armamento podem colocar na última cabine, que estamos usando como depósito.

Não esperei que respondessem e me afastei a passos largos, procurando o grupo para me despedir. Erwan, Edda e Zahra estavam sentados em caixotes à sombra de um dos pequenos veículos, e a última entrou quando eu me aproximei.

- Acho que chegou a hora. – tentei sorrir, colocando os braços para trás. Edda levantou-se de um salto, atirando-se no meu pescoço e me abraçou com força. Afaguei suas costas trocando um sorriso ligeiro com Erwan.

- Prometa que vamos nos encontrar quando isto tudo terminar. – disse baixinho à minha nuca – Vamos comer cookies e quem sabe Zahra nos leve para ver as plantações de pêssego em Almeidna.

Limitei-me a rir, mas ela manteve o abraço.

- Prometa.

- Eu prometo. – afastei-a pelos ombros, vendo seus grandes olhos cheios de lágrimas sorrirem para mim.

- Deixei uns explosivos a mais para vocês. – piscou afastando as lágrimas e sorriu mais abertamente – As bombas de fumaça nem sempre são o suficiente.

- Deidre – Zahra saltou de dentro do veículo com um dos bastões metálicos na mão e o estendeu diante de mim. Olhei do objeto para ela sem entender, e a garota pressionou o pequeno botão, fazendo a lâmina negra deslizar para fora da base, refletindo a luz do sol. Pareceu admirá-la por um momento e em seguida a retraiu, depositando o bastão na minha mão. – Quero que fique com ela. Berthe nem de longe aprovaria isso e não ouso dizer que está preparada, mas vai precisar de mais do que bastões cegos se quiser ficar viva.

Olhei-a por um segundo antes de agradecer e a estrangeira ensaiou um sorriso antes de se aproximar para me abraçar desajeitadamente. Erwan parou diante de mim com as mãos afundadas nos bolsos, fitando as botas marrons empoeiradas. Abracei-o e senti suas mãos hesitarem no ar antes de devolver o carinho.

- Tente ficar viva – murmurou ao se afastar com um meio sorriso nos lábios, mas seus olhos negros e duros não sorriam. Danton surgiu ao seu lado, passando o braço sobre o ombro do amigo e o puxando para perto.

- Perdoe-o, Deidre. Juro que consegue ter mais emoções do que um robô soldado, ele só fica meio difícil em público...

Eu e Edda rimos quando o rosto de Erwan adquiriu um tom de rosa.

- Vim devolver o seu chip – vasculhou um dos vários bolsos da calça enquanto falava e retirou o pequeno objeto envolto em um pedaço de flanela. O chip estava tão brilhante como antes, mas uma fina corrente de metal agora se fixava às laterais. – Achei que gostaria de guardá-lo como lembrança e não pude pensar em uma maneira melhor de tê-lo por perto.

- É lindo, Danton. – respondi sem poder tirar os olhos do objeto. Ele sorriu ao ouvir meu comentário e rapidamente se deslocou para minhas costas, onde prendeu a corrente com habilidade. O metal frio e escuro se depositou entre minhas clavículas e Danton se afastou alguns passos, passando a mão sobre os cachos e analisando seu trabalho terminado.

- Vai ter que fazer colares para mim também, Danton. – Edda avisou. Zahra olhou o colar com cuidado antes de se virar para o garoto.

- Tem habilidade, acho que não teria dificuldade em ser aceito como aprendiz em uma joalheria de Almeidna.

- É, Danton, talvez você convença o Novo Governo a deixar a capital os cortejando com jóias.

Danton gargalhou e bagunçou o cabelo de Erwan, que murmurou algum impropério se afastando da agitação do amigo. Olhando ao redor notei que os carregamentos já haviam terminado e que as pessoas de ambos os grupos despediam-se, alongando a conversa enquanto o transportador não mostrava sinais de partir. 63-S aguardava pacientemente ao lado da porta. Danton percebeu meu olhar e me puxou para um abraço apertado, me desejando boa sorte com um dos seus melhores sorrisos.

- Esperem! – me soltei do abraço dele - Onde está Anselme?

- O velho estava importunando 21-S sobre ser delicada enquanto ela embarcava seus rádios e monitores quando fui me despedir.

- Despedir? – franzi o cenho – Anselme vem comigo? Mas... vocês precisam dele para todas aquelas coisas de não serem notados e...

- Diga isso ao velho – Danton deu de ombros – Ele me mandou calar a boca e fazer meu trabalho, disse que se eu não soubesse usar “umas besteirinhas de uns radares” também não deveria servir para mais nada.

- Isso parece o tipo de coisa que Erwan diria – ri.

- Experimente invadir a tenda dele todos os dias pedindo para aprender a mexer em seus rádios preciosos e descobrirá que Anselme e a raposa tem algo em comum. Exceto que a rabugice de Erwan é gratuita. – parou para lançar um sorriso ao amigo, que revirou os olhos. Olhei mais uma vez para a porta do transportador. 21 e 74-S tinham se juntando a 63-S.

- Hora de ir. – respirei fundo – Muito obrigada por tudo. – olhei para cada um deles, tentando guardar seus rostos na memória.

Edda me abraçou mais uma vez, voltando a ter lágrimas nos seus grandes olhos castanhos, e eu tive que reunir forças para que os meus também não fizessem o mesmo. Atravessei o terreno árido a passos largos e saltei para o interior do transportador, agradecendo a 63-S pela espera. Berthe se aproximou da entrada, me cumprimentando com um sinal de cabeça, e eu lhe sussurrei um ‘obrigada’. Assim que os motores foram ligados, os que vinham conosco rapidamente embarcaram, e os que seguiriam para a base rebelde começaram a subir no transportador que ficara para eles, além dos pequenos veículos, mas Edda, Zahra, Danton e Erwan permaneceram do lado de fora, de pé. Vi as portas se fecharem à minha frente e imediatamente acionei o botão que as fazia ficarem transparentes. O transportador começou a se mover, subindo de velocidade em segundos. “As esferas somos eu e você e a coragem...” murmurei os vendo sumir no horizonte.


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Notas finais do capítulo

Hhehehehehhehe.

Joana :)



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