Sobre Metal e Sangue escrita por JojoKaestle, LudMagroski


Capítulo 14
Herança




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Armand sorriu, balançando a cabeça negativamente. Inclinou-se por cima do tabuleiro e indicou o campo de batalha.

- Não, Deidre, o rei não pode se mover assim. Olhe.

- Mas ele é o rei, deveria poder fazer o que quiser. – retruquei frustrada, observando a figura holográfica ignorar minhas ordens – Esse jogo não faz sentido.

O garoto recuou como se eu tivesse ofendido alguém de sua família.

- Não, quis dizer que é muito difícil para mim. – tentei consertar – São muitas regras, acho que você ainda não encontrou o parceiro de jogo ideal. Talvez Aydee devesse tentar de novo...

- É parado demais para mim. – retrucou a garota do alto.

- Você apenas não gosta de jogar porque não pode atirar nas figuras quando perde. – disse Armand, fazendo Aydee esticar a cabeça para baixo do beliche para nos observar.

- Garota, você já perdeu. – falou olhando para as figuras projetadas do pequeno painel – Me perguntei por que estavam demorando tanto.

Franzi o cenho observando as poucas peças que ainda possuía. Ao contrário de Aydee, achava xadrez um jogo divertido, mas a maneira como o jogo mudava em instantes me deixava inquieta. Isso deixando completamente de lado o fato de Armand ser uma espécie de gênio na coisa, o que não ajudava a minha confiança de maneira alguma. Havia conseguido apenas acabar com quatro figuras suas, três como iscas que levaram minha rainha e duas torres para a morte certa na jogada seguinte e uma de propósito por ter pena de mim. Não sei qual delas me deixou mais irritada.

- Na verdade ela tem razão. – disse Armand, levantando-se da cama.

- Mas meu rei...

- Está cercado. – completou o garoto gentilmente – Você esteve mais ocupada em tentar destruir as minhas figuras e não deixou ninguém para protegê-lo.

- Minha rainha estava protegendo-o. – retruquei mal-humorada.

- E ainda assim foi correndo na primeira oportunidade que se mostrou para atacar. Um peão por uma rainha não é uma troca boa, Deidre.

Aydee riu, fazendo suas tranças balançarem de um modo que não pude me conter e as puxei para baixo de leve.

- Pelo menos não lhe faltou coragem. – falei rindo da careta exagerada que a garota fazia.

- Coragem não adianta muita coisa quando seu rei morre. – retrucou, libertando-se e desaparecendo por poucos instantes na cama acima de nós. Pulou de lá e caiu em pé na frente de Armand.

- Ainda vai se matar ou acabar machucando alguém. – censurou, ainda que estivesse mais preocupado que zangado. Aydee apenas sorriu, divertindo-se com o efeito que causava. Os observei por algum momento e combati a urgência de compará-los com os meus amigos, aqueles que provavelmente jamais voltaria a ver. Aydee não era Zahra, por mais que gostasse de ação e não lhe faltasse coragem. Nem Edda, ainda que as duas gostassem igualmente de falar. E Armand, Armand estava longe de ser um irmão mais velho como Danton era para mim. Aqueles dois jamais saberiam, mas nos últimos dias estivera ocupada tentando enxergar neles outras pessoas. O que me fazia sentir muito ingrata, pois estavam genuinamente tentando tornar meus tempos durante aquela viagem melhores. Tendo isso em mente forcei-me a ser o mais gentil possível. 

- Armand, acho que você tem meu rei em xeque.

- Xeque-mate. – corrigiu-me permitindo-se ficar contente com a vitória, ainda que o adversário não fosse realmente forte – Bispo vá para E-2.

No momento em que escolhera sua figura ela tremeluziu de leve, emitindo um brilho vermelho que o diferenciava das outras peças azuis do garoto. Depois a imagem holográfica moveu-se para o lugar indicado, a figura do meu rei foi tornando-se cada vez mais fraca, até apagar-se totalmente. “Parabéns Armand, novo recorde alcançado” congratulou uma voz artificial vinda do tabuleiro eletrônico e logo depois as demais imagens se apagaram. Foi a minha vez de fazer careta.

- Bem, acho que isso não foi muito gentil.

- Desculpe, não há como desligá-la. – Armand limpou os óculos na camisa e os colocou novamente, sorrindo por conseguir enxergar melhor – Obrigado por jogar comigo, não terá que fazer novamente se não gostar.

- Na verdade gosto. – disse, sabendo que aquilo me renderia mais massacres vergonhosos – Podemos jogar mais tarde de novo.

Aquilo pareceu animá-lo. Anuiu pegando o painel de jogo e deixou a cabine, provavelmente para tentar convencer um de seus pais a jogar mais uma partida.

- Não sei como você aguenta. – disse Aydee enquanto olhava a porta pela qual o garoto passara momentos antes – Não é que seja chato nem nada, mas tudo isso de “sou mais esperto que vocês” às vezes me tira do sério.

A observei, segurando a língua para não falar que eram muito parecidos nesse quesito.

- Armand é gentil e inteligente, não vejo como isso me incomodaria.

- Fico feliz que pense assim, do contrário não teria ninguém para ocupar o meu lugar no xadrez. – seu tom brincalhão mudou – Olha, será que não vamos dar uma pequena parada em breve? Estamos viajando há quase uma semana e minhas garotas precisam malhar para não saírem de forma.

Já me acostumara com o tratamento carinhoso que dava a suas pistolas, mas sabia que a resposta não iria agradá-la.

- Não, Aydee, sinto muito. Não podemos parar agora, precisamos ganhar alguma distância em relação à Auch.

- Eu... Entendo. – disse, ainda que pudesse ver que estava desapontada. Mas era melhor desta forma, mais seguro.

- Tenho que ir. Encontro com os robôs.

- Reunião com a chefia, eu suponho? Realmente não te invejo, Deidre.

- Apenas não resolva treinar aqui dentro. – a lembrei quando já estava quase na porta – Não quero buracos nas paredes quando voltar.

- Mas elas parecem tão robustas. – e por um momento temi que resolvesse testar mesmo. Teria que me lembrar de nunca mencionar a história de que aquelas paredes metálicas eram fortes o suficiente para suportarem a explosão de uma bomba.

- Poderia treinar com o tabuleiro de xadrez. – retruquei e por alguns segundos ficamos em silêncio, ela ponderando sobre os prós e contras daquela ação e eu com medo de que tivesse impulsionado-a a começar uma briga de verdade.

- Você é mesmo cruel, garota. – falou finalmente, segurando o riso. Tentei permanecer séria, mas quando esbarrei no robô elefante no corredor ainda estava rindo.

- O que a diverte tanto? – o tom de voz denunciava que me pegara no momento em que ria sobre algum plano maquiavélico para exterminá-lo de uma vez por todas. Quis muito que essa suspeita fosse verdade.

- Foi apenas algo que me lembrei. – disse inocentemente – Estava a caminho da cabine de comando.

- Faz bem. – disse, seus olhos me lembrando como nunca os de alguma ave de rapina que observava sua presa – Estávamos esperando, você está atrasada.

Balbuciei alguma desculpa e o segui pelo corredor. Seu andar era forte e enérgico como o de Rhes e o uniforme cinza que usava também era idêntico, ainda que na frente tivesse menos emblemas do que o meu amigo ostentava. Se fosse por mim jamais os conseguiria. Nem eles, nem a tira de tecido vermelho que sinalizava um comandante. Rhes fora um e só de imaginar um robô como aquele conseguindo uma honra igual me deixava irritada. “Fomos traídos” falara Rhes no dia que estava tentando esquecer sem sucesso. Sim, meu amigo, pensei enquanto observava a porta da cabine de comando deslizar para o lado. Mas por qual deles?

- Creio que devemos nos sentir honrados por se juntar a nós. – o robô elefante deu a volta na mesa da cabine de comando e se sentou o mais distante de mim possível e eu andei em linha reta para a cadeira que Rhes antes ocupava. A cadeira que costumava ser ocupada por 520-S também estava vazia uma vez que perecera como Rhes, mas não era o seu lugar que estava ocupando desde então.

Ficar rodeada por um trio de robôs ainda não me deixava inteiramente confortável. Parte disso se devia à total animosidade que o robô elefante demonstrava em relação a mim e que parecia crescer ainda mais a cada dia, ainda que me admirasse que houvesse espaço para crescer. A ausência de Rhes era o segundo grande peso que esmagava os meus ombros. Não havia percebido como tinha sido uma espécie de escudo que me protegia não apenas dos inimigos, mas de seus subordinados também. Especialmente deles. Em Nova Marchand 520-S deixara muito claro a sua opinião contrária à posição que seu comandante estava tomando, mas os dois estavam mortos e teria que descobrir sozinha quem constituiria uma ameaça agora. Os olhos cinzentos de 21-S encontraram os meus e a robô deu um pequeno sorriso encorajador. Já seu companheiro que administrava a rota que seguíamos parecia tão entusiasmado com a minha presença quanto o robô elefante.

- Ainda não me repassou as coordenadas seguintes. – 63-S sempre fora o mais objetivo dos três e até aquele momento seguira minhas ordens sem pestanejar. Se aquilo me deixava mais calma a seu respeito eu ainda não sabia.

- Não atingimos ainda os pontos das coordenadas anteriores. – respondi com os olhos fixos nos painéis holográficos atrás dele. – Se não estou enganada iremos atingi-los precisamente em oito horas.

Anselme havia me ensinado o básico do que aquele monte de informações e números significava. Não ficar completamente dependente dos robôs para saber o que estava acontecendo e a nossa exata localização me deixava mais tranquila, ainda que muitas vezes me sentisse mais perdida que nunca. Mantive o semblante o mais vazio que meus pensamentos permitiam.

- Repassarei os novos dados hoje à noite, não há motivos para se preocupar. – o sorriso que lhe dei foi recompensado com um dar de ombros. Levantou-se sem cerimônias e voltou a operar os sistemas do transportador.

- Não foi apenas por isto que a chamamos aqui, Deidre. – 21-S quebrou o silêncio, sem um rastro de seu sorriso inicial – A emboscada em Auch nos custou grande parte do que havíamos estocado e na partilha ficamos ainda com menos que o grupo da líder humana.

- O grupo de Berthe é muito maior que o nosso. – percebi que este era o motivo dos olhares de reprovação que vinha recebendo desde a partida. Berthe até queria abrir mão de mais mantimentos a nosso favor, mas com vinte cabeças para alimentar já teria problemas suficientes. A base rebelde sempre estava em um processo de mudança para evitar ser rastreada pelo novo governo, o que dificultaria sua viagem ainda mais. Vê-los prontos para enfrentar uma jornada assim havia feito com que me assegurasse de que a passariam com comida bastante ao menos para comerem uma vez ao dia. Concordei em lhes ceder também algum armamento que Rhes trouxera em seu transportador, uma vez que entrariam em uma luta mais cedo ou mais tarde. O tom acusativo dos robôs fez uma centelha de raiva transparecer em minha voz. – Somos apenas dez pessoas e da última vez em que chequei robôs ainda não precisavam comer enlatados, a preocupação não deve ser sua.

O robô elefante levantou-se de súbito e antes que pudesse reagir caiu sobre mim derrubando a cadeira, suas mãos firmes ao redor da minha garganta. Amaldiçoei-me por ainda não conseguir acompanhar sua rapidez. Ouvi uma movimentação atrás de nós, mas tudo que via era seu rosto a poucos centímetros do meu. Tentei libertar meus braços para lhe dar um murro no meio do nariz aquilino, mas o peso de seu corpo era grande demais.

- Estou farto da sua completa incapacidade de liderança. – murmurou entre os dentes. Tentei lembrar como Rhes dizia que robôs não eram muito bons em sentir, mas tudo que via em seus olhos era ódio – Com o descaso com que encara problemas reais, está comprometendo toda a missão e é idiota demais para enxergar. Não aceitarei ordens de uma criança, não fomos feitos para isso. Uma perda não é nada comparada à vida de dez pessoas.

Minha garganta ardia debaixo da pressão de suas mãos e minha tentativa de resposta saiu como um crocitar desajeitado. E então de repente saiu de cima de mim ao mesmo tempo em que duas mãos me agarravam pelos braços e me erguiam. 21-S empurrava o robô elefante para longe enquanto 63-S me segurava firmemente contra seu peito. Tossi me acostumando a sensação de poder respirar de novo e o robô elefante tentava passar pela robô que, ainda bem, parecia ser a mais forte do trio.

- Vocês não podem fazer isto. – disse quando mais uma tentativa de passar por ela foi frustrada – Não veem que ela está comprometendo tudo? A nossa missão é levar estas pessoas em segurança e desde o início ela foi o maior obstáculo que enfrentamos. Com sua mentalidade imbecil e curiosa conseguiu quase ser morta um punhado de vezes e apenas não o foi porque nosso comandante estava mais ocupado em mantê-la em segurança que exercer a sua função. E é a ela a quem querem confiar a vida das pessoas deste transportador? Não permitirei que isto aconteça. Não sou como 473-K.

- De fato não é. – falou 63-S puxando uma pistola das vestes e mirando no companheiro de equipe – E pare de dançar desta forma ou será desativado agora mesmo.

- Se não fosse por ela ainda o teríamos aqui e nada disso estaria acontecendo! – levei alguns segundos para compreender suas palavras. Quando o fiz, doeu mais que suas mãos me sufocando.

- Não! – empurrei o braço do robô para baixo e andei até ele, dando sinal para que 21-S o soltasse. A dúvida passou pelos seus olhos, mas obedeceu.

- Está certo. – disse ao robô que quase me matara – Não estou pronta para liderar e muitas vezes me deixo levar por instintos, isso também é verdade. Por isso preciso da ajuda de vocês. – e agora não me voltava apenas para ele, mas para todos - Devo parecer patética aos seus olhos, mas antes de se desativar Rhes me passou o chip com as informações necessárias e disse para que o guardasse. Por mais insano que pudesse parecer, seu comandante me fez seguir os passos dele. Não falou em passar o comando para você, 74-S, nem para vocês, 21-S e 63-S, e gosto de pensar que ele fez isso por algum motivo. Ajudem-me a achá-lo e juntos podemos terminar o que Rhes começou.

Por um momento ninguém disse nada. Então o robô elefante apenas me olhou do alto e se desvencilhou do aperto de 21-S deixando a cabine a passos largos.

- Bem, isso não correu como planejado. – suspirei tirando uma mecha do meu rosto.

- Ele irá pensar sobre o que falou. – disse 63-S apenas guardando a pistola agora – O que irá concluir desses pensamentos é com o que precisamos nos preocupar.

- Está sendo injusto. – a robô andou até mim e levantou o meu queixo com suavidade para olhar o estrago no pescoço – Não está tão mal, daqui a dois dias as marcas irão desaparecer.

- Sei que nunca chegarei perto do que Rhes foi, mas um pouco de compreensão seria bom. Não sei com vocês, robôs, mas nós humanos aprendemos. Não somos criados sabendo de tudo e não é justo exigir que soubesse de imediato o que fazer. – imediatamente me arrependi de ter falado tudo aquilo. O quão fraca deveria parecer para eles? E uma líder fraca seria muito facilmente subjugada. Fomos traídos.

- Sabe – começou 21-S - Nós soldados temos embutidos em nosso sistema a necessidade de nos importar com os nossos companheiros de equipe. Inicialmente não éramos programados desta forma e muitas unidades foram perdidas pela completa apatia que sentíamos em relação aos outros. Talvez não consiga imaginar porque nunca viu um campo de batalha de verdade, mas na guerra a união das equipes é fundamental para o sucesso. E como nos humanos, esta ligação é criada através do convívio. Acho que já sabe qual de nós estava há mais tempo com Rhes, não?

- Eu sei. Imagino que devo conversar sobre isto com ele.

63-S voltara aos painéis de controle.

- Não aconselharia. 21-S lhe explicou que nós somos programados para desenvolver afeição pelos nossos companheiros de equipe e Rhes, por melhor líder que fosse, era uma exceção. Você pode até ter o comando e dar as ordens, pode ter sido a preferida de Rhes, mas não é um robô. E não pode esperar ser tratada como tal. 

- O que ele quer dizer é que vamos segui-la para onde for até que nossa missão seja concluída, Deidre, e vamos dar o nosso melhor para que seja concluída sem mais perdas. – 21-S sorria novamente, mas seus olhos lembravam tanto os de Rhes que não consegui sustentar seu olhar.

Subitamente me dei conta de o quanto não queria estar ali, como me sentia um peixe fora d’água estrebuchando desesperadamente por um ambiente que lhe era familiar. Não aqui, não agora.

- Sobre a questão dos mantimentos... Quais são as nossas opções? – se acabasse logo, poderia descansar por alguns minutos.

- Não temos nenhuma.

- O quê?

- Nossa única opção é chegar à base segura dentro de uma semana, se for mais do que isso passaremos fome. Com tão poucas informações que temos, diga-nos você, chegaremos em uma semana?

Teremos sorte se chegarmos em três.

- Não, não chegaremos.

63-S desligou-se completamente da conversa como se tudo aquilo fosse uma causa perdida. Tive vontade de gritar que não seriam eles a passar fome, que ninguém naquele transportador estava mais desejoso de chegar à base o mais rápido possível que eu, mas não precisaria de mais desafetos. Limitei-me a cerrar os punhos e esconder a dúvida o melhor que conseguisse.

- Darei um jeito. – disse calma – Não será difícil arranjar mais comida.

- Aposto que não. – para robôs aqueles eram mais humanos do que gostaria que fossem.

Diante da informação de que não havia mais nada a ser discutido me despedi, prometendo voltar mais tarde para passar as novas coordenadas a 63-S. Já quando pus os pés para fora da cabine de comando o ar pareceu menos denso. Como Rhes conseguira? Toda a reunião fora uma bagunça com direito a uma tentativa de assassinato e o despejo de acusações e problemas em meu colo. Teria que resolver a questão da comida o mais rápido possível... Se apenas tivesse alguma ideia de como fazê-lo. Ao menos o robô elefante não me odiava por ser uma criança fingindo ser uma comandante, me odiava por ser culpada pela morte de Rhes. Não sabia ao certo qual delas era a pior, mas a antipatia que sentia em sua relação diminuía a cada minuto que passava. Afinal, também lamentava a morte de Rhes e por mais forte que estivesse tentando ser, me pegava acordando de sobressalto de madrugada com as bochechas molhadas de lágrimas. Era neste momento que sabia que sonhara com ele. Erwan, Edda, Danton e Zahra também estavam em meus sonhos, mas estes deixavam para trás uma dor aguda em meu peito que demorava algum tempo para passar. Parei diante de uma das paredes do transportador que mostrava uma paisagem desértica, aqui e ali havia algumas rochas que serviam como ilhas em meio a toda aquela areia. O sol queimava a tudo sem distinção. Soube então a diferença que havia me intrigado tanto. A verdade é que estivera ciente de que os perderia naquela tarde terrível, enquanto esperava crescer ao lado de Rhes. Enquanto estivesse ao lado dele tudo ficaria bem e era este o pilar que sustentava minha vida depois do que acontecera em Nantes. Segurar involuntariamente o chip que me dera em momentos de ansiedade havia se tornado uma rotina. O fato de Danton ter acrescentado o colar o tornara uma lembrança perfeita também dos amigos que fiz no acampamento de Berthe. Havia se tornado o bem mais precioso que possuía.

- Começo a ficar cansado desta paisagem. – me sobressaltei e virei para encarar os olhos de Enzo. O homem mantinha o olhar no deserto, os braços cruzados – Acho que depois desta viagem teremos visto areia o bastante para toda uma vida.

- Definitivamente. – respondi sentindo os músculos relaxarem. Enzo não era tão comunicativo e sorridente quanto Damien, na verdade seu rosto estava quase sempre fechado e pensativo. Isto mudava quando Armand ou Damien se voltavam para ele, mas além deles não parecia realmente ávido a se integrar com o grupo. Passava a imagem de ser um homem que passava tempo demais remoendo pensamentos e analisando a situação em que estávamos. Quando falara ao grupo no acampamento de Berthe esperava que fosse a sua voz que se ergueria contra a minha e não a de Cecille.

- Você realmente está aguentando a situação muito bem. – comentou sem me olhar – Se me lembro bem estamos a muitas milhas de qualquer centro comercial ou cidade, por menor que seja. Desculpe perguntar, Deidre, sei como estamos jogando um fardo pesado demais sobre seus ombros, mas tenho uma família que quero ver em segurança. Quanto tempo levará até chegarmos à base?

Meu silêncio não pareceu surpreendê-lo.

- Disse a Damien que devemos estar cometendo uma grande loucura colocando uma criança na liderança do grupo. – apesar das palavras duras, seu tom era gentil – “Como conseguirá decidir o que deve ser feito” perguntei, “você lê todos aqueles livros de história, me diga uma vez que jogar todo o peso da decisão sobre uma pessoa foi melhor do que ouvir todas as vozes antes da palavra final ser proferida”. Mas você vê, ele está realmente convencido de que você vai conseguir e que está fazendo um bom trabalho.

- Damien é muito gentil. – balbuciei sem jeito. Aquelas palavras eram uma agradável mudança depois do que havia acontecido na reunião.

Enzo sorriu e pela primeira vez seus olhos escuros encontraram os meus.

- Isto é verdade. Sei que ainda que esteja muito decidida a ser forte há questões que a perturbam. Queria saber se poderia ajudar. Talvez não seja tão bom estrategista quanto Rhes, mas certa vez me falaram que meus conselhos valiam ouro.

- Estou aceitando qualquer coisa que valha mais que areia. – olhei para o corredor que se estendia atrás de Enzo, mas ao compreender minha inquietação o homem interveio.

- Já chequei, não há ninguém para nos escutar.

O fato de ter se adiantado indicava que sabia da traição, mas com a forma que eu havia me tornado paranoica não era uma surpresa que as pessoas reparassem. Encostei-me na parede do transportador resolvendo que teria que me mostrar mais confiante no futuro, do contrário mostraria apenas fraqueza.

- Conselhos que valem ouro... Isto não teria a ver com seu trabalho, teria? – Armand contara entre uma partida de xadrez e outra que Enzo tivera algum posto importante no governo antes da guerra começar. O garoto falava dos pais com um tom próximo da adoração e estava claro que se orgulhava muito de ambos.

Enzo dobrou a manga de sua camisa como se não tivesse prestado atenção. Se algum dia encontrássemos um grupo viajante as pessoas não acreditariam que Enzo estava há meses fugindo de robôs psicóticos assassinos. De todos do transportador era ele quem tinha a aparência mais impecável mesmo rodeado por poeira ou carregando caixas de mantimentos debaixo do sol de meio-dia. Mantinha permanentemente o visual de quem estivera em um importante escritório quinze minutos antes e não parecia se sentir culpado por isso.

- É provável que sim. – retrucou, passando para a outra manga – Como deve ter ouvido de Armand eu era uma espécie de cachorrinho de estimação de um político importante, ainda que meu filho possa ter sido gentil e usado o termo “braço direito”. Era pago para manter tudo sobre controle, analisar um punhado de informações e depois ordená-las, muitas vezes distorcê-las, para que um bonito discurso pudesse ser montado.

- Não parece ser um trabalho dos sonhos. – disse antes de conseguir controlar a língua.

- E de fato não era. Mas desde pequeno eu sonhava em entender o motivo das coisas serem como são. Por que Rouen é uma mansão luxuosa para alguns e uma ponte dando proteção em um dia de chuva para outros? A maneira de descobrir tudo isso, pensava, era entrando de alguma forma na grande máquina que chamamos de governo. E foi o que fiz.

- Conseguiu as respostas que procurava?

- Consegui. Ganhei noites em claro por isso. – mudou sua expressão para uma mais confiante – Mas tudo isso está no passado. Na verdade esperava ajudá-la e não conversar sobre minhas crises.

Olhei para os meus dedos que se entrelaçavam nervosamente.

- Não temos mais comida. – confessei para logo em seguida acrescentar – Quero dizer, ainda temos o suficiente para uma semana.

- Mas em uma semana não estaremos nem perto de atingir o nosso destino final, não é?

 - Como sabe?

- Um dos meus trabalhos era conhecer bem as regiões do país para que pudéssemos explorar o potencial de cada uma delas. – disse quase culpado – Sei que estamos no grande domínio de Quimper e que estamos suficientemente longe de qualquer centro que possa abrigar robôs do Novo Governo, mas isso também significa que estamos longe de qualquer fonte de mantimentos... Ou quase.

- O que quer dizer? – ali estava a ansiedade novamente, ansiedade que tentara controlar tantas vezes.

Enzo me olhou como se pesasse o estrago que suas palavras poderiam causar e no final suspirou.

- Há uma maneira, mas seria tão perigoso quanto marchar para qualquer cidade dominada e roubar comida debaixo das fuças dos robôs. Mas já passamos por situações muito piores e sobrevivemos, não é? Não será tão difícil... – percebi que tentava convencer mais a ele que a mim. - Quimper é uma região desértica, mas conta com o maior reservatório de água subterrânea do país. – disse finalmente – E onde há uma grande quantidade de água...

- Há plantações. – completei sentindo o coração bater descontrolado. Em Rouen água era tão preciosa que nas grandes cidades toda ela era destinada aos habitantes, em regiões onde ela era abundante a terra era coberta por plantações que se estendiam como verdadeiros mares esmeralda até onde a vista alcançava. Era dessas plantações que a comida vendida nos centros urbanos provinha.

- Plantações em imensas estufas. – acrescentou Enzo – Sim, se me perguntasse como arranjamos comida, diria que um passeio agradável em uma delas seria a solução dos nossos problemas.

- Espero que tenha alguma perto daqui. – disse olhando pela parede transparente. Lá fora não havia nenhum sinal do brilho típico das construções de vidro contra o sol.

- Podemos descobrir logo. – Enzo apontou para a cabine de comando – Vamos importunar os seus amigos um pouco mais.  

63-S mirou Enzo com algo muito próximo à incredulidade quando foi empurrado para o lado sem cerimônias.

- Preciso disso emprestado, se me permitir. – disse sem esperar pela permissão, os olhos escuros fixos nos painéis. Seus dedos começaram a voar sobre os teclados sensíveis ao toque e cada tela começou a mostrar uma versão diferente de um mapa da região.

- Você não deveria poder fazer isso. – balbuciou 63-S – Deidre, ele está acessando dados que entregarão a nossa localização.

- Na verdade não estou no sistema do nosso transportador. – Enzo varria cada mapa, substituindo-os por novos enquanto não achava o que procurava. Apenas fiquei ao seu lado sem entender o que se passava – Porque isto – disse triunfante quando um mapa mostrando diversos pontos vermelhos surgiu diante dele – Não estaria nos nossos dados.

- Você – 63-S olhava dele para o mapa e agora estava mesmo incrédulo – Você invadiu o sistema governamental de dados a partir de um transportador sem conexões com o mundo exterior em meio a um deserto. O que você é?

Não consegui segurar o riso e Enzo, por sua vez, parecia extremamente contente consigo mesmo.

- Apenas um homem com os meios necessários. – empurrou as mangas da camisa para cima e com um movimento das mãos alargou a imagem holográfica, trazendo-a para frente do trio – Vêem estes pontos? Cada um simboliza uma estufa, com suas respectivas construções de segurança e armazenamento. Pude burlar o sistema governamental, mas se tentasse acessar os dados a partir daqui saberiam imediatamente onde nos achar. Agora me diga, qual delas é a mais próxima de onde nos localizamos?

Já sabia qual delas seria a escolhida. O complexo de estufas mais perto do transportador poderia ser alcançado ao amanhecer e seu ponto vermelho brilhava convidativo. O indiquei com o dedo e Enzo sorriu, fazendo o semblante de 63-S fechar-se completamente.

- Eles possuem segurança o suficiente para rechaçar qualquer ataque. – censurou – E nem ao menos temos certeza se estão estocando a colheita agora. É arriscado demais.

- É um risco que temos que correr se pretendemos continuar nos alimentando pelas próximas semanas. – disse, grata por 21-S não estar na cabine. Convencê-la poderia se mostrar mais desafiador. – Mude a rota do transportador 63-S, temos um passeio com alguma periculosidade inata para fazer.


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Notas finais do capítulo

Gente, esquecemos de postar o capítulo ontem! x) Perdão, mas taí e personagens novos! Por favor nos mantenham informados sobre suas impressões. E aproveitem pra começar a se acostumar com a idéia de que só temos mais 4 capítulos até o hiato.

Obrigada c:

— Lud