Sobre Metal e Sangue escrita por JojoKaestle, LudMagroski


Capítulo 12
Traço planos que não incluem minha felicidade




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Anselme adentrou a cabine de comando a passos apressados e quando me viu razoavelmente inteira seu corpo relaxou um pouco. Até ele parecia ter perdido parte das suas energias ao longo daquele dia que parecia longe de terminar. Alisou os poucos tufos brancos que irrompiam da cabeça e não parecia saber o que fazer.

– Obrigada por encontrá-lo tão rápido. – e vivo falei para 21-S. A robô se limitou a acenar positivamente com a cabeça e estava prestes a retirar-se quando a chamei de volta.

– Não quero que deixe ninguém entrar nesta cabine enquanto estivermos aqui. – esperava que o tom firme escondesse minha insegurança, não tinha idéia se havia ultrapassado o limite, nenhum dos robôs parecia notar a minha presença quando andava ao lado de Rhes e agora precisava fazer com que acatassem aos meus pedidos da mesma forma com que acatavam as ordens de seu comandante. 21-S anuiu com a cabeça e segundos depois a porta da cabine se fechou às suas costas. Permiti um suspiro de alívio e me deixei cair em um dos assentos. Minha perna direita pulsava de uma maneira que já não podia mais ignorar e uma dor aguda crescia em algum ponto nas costas o que me forçava a arquear os ombros para frente.

– Interessante. – Anselme parecia ter assistido um comportamento nunca antes observado em um animal selvagem, mas logo seus olhos cansados voltaram-se da porta da cabine para mim – Está agüentando melhor que eu esperava, pequena Deidre.

– Não tenho escolha. – falei mais ríspida que intencionava – Desculpe Anselme, fico feliz que esteja bem.

E realmente estava. O franzino senhor de idade tinha sido motivo das minhas preocupações de imediato quando não o avistara entre o grupo de sobreviventes. Depois Danton contara que estava junto com ele e sua família quando corriam em meio ao caos, o garoto jurara que Anselme carregava alguns de seus rádios quebrados nas costas enquanto desviava dos tiros de robôs inimigos. Tinha sido sem dúvida uma visão curiosa ver aquela figura magricela e frágil carregando máquinas durante sua fuga, mas deve ter sido verdade porque 21-S o encontrara cuidando dos rádios como se fossem pessoas feridas. Além de poucos arranhões os rádios estavam salvos e o mesmo se aplicava ao seu dono.

– Ah, as pessoas sempre pensam que não durarei muito tempo mesmo, Deidre, tudo bem. Mas não poderia deixar aquelas belezinhas explodirem junto com os outros robôs, não poderia mesmo. Falando em robôs, sinto muito pelo seu amigo...

Anui, agradecendo em mente por chamar Rhes de amigo no lugar de lata retorcida ou assassino de crianças. Um choque de dor subiu pela minha perna e voltei minha atenção para o painel de comandos do transportador para que Anselme não notasse. Não necessitava que presenciasse minha luta contra a dor.

– O chamei aqui porque preciso da sua ajuda e não consegui pensar em ninguém melhor. Desculpe por chamá-lo num dia tão difícil.

Ouvi seus passos apressados contra o chão metálico e logo estava ao meu lado fitando meu rosto com curiosidade.

– Você sabe que não tem problema algum. Para ser sincero, estou feliz de me afastar daquele tumulto.

Não pude culpá-lo. No momento em que entrava no transportador havia começado uma briga entre duas famílias, ambas com crianças machucadas, por um dos poucos frascos de remédios que sobravam. Os pais estavam prestes a se envolver em uma briga física quando Berthe surgiu em meio à bagunça, sua voz se sobressaindo a qualquer luta e ordenando que parassem. Afastei aqueles pensamentos quando minha mão fechou-se em volta do chip de Rhes, havia coisas mais importantes a serem resolvidas agora. Anselme deixou escapar um arquejo quando o minúsculo objeto negro lhe foi estendido na minha palma aberta.

– Pode pegar. – o encorajei. Os olhos do velho se arregalaram e depois de um curto momento em que olhou incrédulo de mim para minha mão seus dedos seguravam o chip com a delicadeza com que uma mãe segura um recém-nascido.

– É lindo. – murmurou mais para si mesmo que para mim enquanto o girava entre os dedos para observá-lo de todos os lados.

– Sim. E preciso que me ajude a ter acesso às informações que contém.

– É de Rhes?

– Sim. Ele me entregou pouco antes de se despedir.

Anselme parou de mirar o chip como se só agora se desse conta que eu estivera ali o tempo todo. Sua voz assumiu um tom carregado de pena.

– Deve ter sido bem difícil. Isso de se desligar para que as informações não caiam em mãos inimigas. Ele suspeitava de traição entre seus subordinados?

– Foi o que falou para mim. – respondi com os olhos voltados para a porta da cabine, sem esconder minha surpresa por ter captado os acontecimentos tão rapidamente.

– Não haveria motivo para entregá-lo a você se confiasse neles. – explicou o senhor antes que perguntasse – Ele falou algo sobre o conteúdo?

Neguei com a cabeça.

– Só que não deveria entregar a mais ninguém.

Um tom rosado assumiu as bochechas cobertas de poeira de Anselme. Pigarreou passando a mão pelos tufos brancos e depois voltou-se para o painel do transportador. Parecia uma criança em um parque de diversões no meio daquelas telas eletrônicas que não diziam nada para mim.

– Deve haver alguma entrada... Aqui! Agora vejamos – enfiou o chip com cuidado em uma reentrância em meio aos botões brilhantes do painel de controle e de imediato percebi que minha escolha de trazê-lo havia sido a certa: nunca acharia nem o local para colocar o chip, quanto mais compreenderia o caos de informações que se acotovelavam nos monitores poucos segundos depois. Havia gráficos, tabelas que pareciam ser de mantimentos e armamentos que o transportador carregava, mapas que se sobrepunham uns aos outros e rotas tracejadas que mudavam a cada minuto. Minhas costas se largaram no encosto da cadeira e ignorei a dor. Anselme deixou escapar um longo assobio de admiração.

– Já pode fechar sua boquinha, Deidre. – observou olhando para mim com os olhos brilhando – Seu amigo pensou em tudo.

– Mas mal dá para entender uma linha daquilo – apontei para uma das telas que mostrava um mapa e logo depois gráficos de muitas variáveis diferentes com a voz próxima do desespero. Então era isso, jamais alcançaria a base de segurança sem pedir ajuda aos robôs. E se pedisse estaria condenada pelo traidor, a missão pela qual Rhes morrera e deixara em minhas mãos jamais seria completa. Fui puxada de volta à realidade pela risada de Anselme.

– Deidre, pequena Deidre. Você talvez não compreenda e não a culpo por isso, criança. Mas acredite em mim quando digo que isso está mais claro do que se o próprio Rhes desenhasse um mapa com uma rota simples.

– Você consegue entender? – perguntei incrédula.

Anselme me olhou como se estivesse louca.

– E por que não entenderia? – respondeu quase ofendido – Temos aqui mapas com o destino da missão de Rhes e seu grupo assim como o mapa das importantes cidades e vilarejos pela qual a rota principal passa, acompanhados por gráficos de variáveis que buscam explanar temperaturas, relevo e as escassas chuvas desta região. E aqui, está vendo? Tabelas listando os mantimentos e armamentos que foram estocados lá e por quanto tempo eles serão suficientes para grupos de diferentes tamanhos. Mais claro impossível.

– Mais claro impossível. – repeti debilmente.

– Exato. Agora devo programar o piloto automático do transportador para seguir a rota principal e tudo est-

– Não! - levantei de sobressalto ao ver seus dedos pairarem sobre as teclas – Anselme, não! Rhes acreditava que há um traidor entre seu grupo e não podemos esquecer que as informações do transportador podem ser acessadas de qualquer central de informações do governo por qualquer robô que tenha o mínimo de talento e saiba onde procurar.

Seu olhar de admiração tornou as horas que passara lendo “O manual dos transportadores WS-35: conhecimentos sobre funcionamento e reparos” quase suportáveis.

– Agora sei por que aquele robô confiava tanto em você para esta tarefa, Deidre.

O pensamento de que Rhes podia confiar em mim me encheu de orgulho e saudade. Apoiei-me no encosto da cadeira de Anselme para compreender melhor aquilo tudo.

– Podemos também pilotar o transportador manualmente.

– Por podemos você pode excluir eu e você, pequena, sinto em dizer que minhas habilidades tecnológicas não se estendem a pilotar qualquer tipo de meio de locomoção que exceda 20 km/h. Meus olhos sempre foram fracos.

– Então podemos pedir que um dos robôs pilote o transportador.

– Sim, mas abriríamos mão da informação que deveria ser apenas para você.

– Não se apagarmos ela agora.

– O QUÊ?! – se havia alguma dúvida em Anselme de que aquele dia me afetara de uma forma que retirara a pouca sanidade que me restara ela havia sido esclarecida. Seu corpo se virou na minha direção tão rápido que temi pela sua integridade.

– Você pode passar as informações sobre a rota principal para um papel?

Anselme deixou escapar um murmúrio de resignação.

– Posso.

– Sem utilizar o transportador para isso?

O velho me olhou como se estivesse a ponto de cometer uma grande loucura.

– Demorará dias criança.

– Só o percurso da rota principal, sem as tabelas e gráficos.

– Mas estaria condenando o grupo a uma empreitada perigosa sem garantias de sucesso caso consigam chegar lá, Deidre. – falou numa voz que quase implorava para que visse a razão.

– Ou é isso ou arriscar acordar outra noite com robôs inimigos destruindo tudo fora das nossas tendas. – falei mais firme do que estava. Não podíamos usufruir do excesso de informações se mal conseguíamos garantir nossa segurança. Anselme parecia desistir e deu de ombros, lhe entreguei alguns papéis que estavam sobre a mesa.

– As coordenadas e o caminho a ser percorrido, Anselme, o suficiente para que alguém olhe para elas e possa programar o transportador para seguir uma parte do percurso a cada dia.

– Entendi onde quer chegar Deidre, só tome cuidado – falou enquanto sua mão voava sobre o papel com um lápis – Aqueles robôs não vão te obedecer como cachorrinhos para sempre.

– Eu sei. – admiti, sentando ao seu lado e fixando meus olhos no horizonte que se estendia pela janela da cabine de comando. O sol estava quase se pondo e junto com ele iam as últimas horas que passaria ao lado das pessoas que conhecia, meus amigos, antes de ser jogada numa missão que alguém como Rhes havia falhado em completar. Falhado em completar por causa de você. Fui liberta dos meus pensamentos por fortes batidas contra a porta da cabine de comando. Anselme se sobressaltou de uma maneira que fez um traço em diagonal rasgar a página que preenchia.

– Ao sinal de qualquer atividade hostil, apague o chip. – falei contra seus ouvidos enquanto apertava seus ombros para confortá-lo – Sim?

– Há um garoto aqui fora, garota, que insiste de maneira pouco cortês a falar com você. – a voz de 21-S vinha através da porta, ao menos ficara onde pedi.

– Não me importo com o que você considera cortês o não, robô, agora se afaste!

– Pode ir, Deidre, isso aqui vai levar ao menos duas horas ainda. – falou Anselme.

– Não terei como agradecê-lo por isto.

– O faço pelo seu amigo que de forma tão gentil me emprestou aquele monitor, ficamos assim?

Concordei com um sorriso agradecido e atravessei a cabine de comando antes que uma nova briga começasse. A cabeça de Erwan estava tão vermelha quanto seus cabelos quando abri a porta da cabine e 21-S assumira uma postura de ataque. Ambos voltaram suas cabeças na minha direção e a robô desculpou-se de imediato.

– Falta educação ao seu amigo. – acusou, voltando a sua postura normal. Erwan deu de ombros.

– Vim falar com você, mas não aqui.

– Anselme ainda está lá dentro terminando algo importante, você poderia cuidar para que não fosse interrompido?

21-S anuiu e seu semblante se fechou quando Erwan passou por ela.

– Não sabia que agora tinha se tornado encantadora de robôs. – observou ácido quando caminhávamos para fora do transportador.

– Ela é mais gentil que muitas pessoas que conheço. – devolvi.

O garoto fechou a cara como resposta e me mantive em silêncio. Se quisesse se desculpar não o tornaria mais fácil para ele. Uma brisa amena fez nossos cabelos voarem para trás quando a porta do transportador foi aberta de encontro ao céu noturno. Pequenas fogueiras haviam sido acessas ao redor dos dois transportadores que restavam, mas o ânimo das pessoas estava tão baixo que em nada mudava a cena das chamas lambendo o céu noturno com avidez.

– Está forte o bastante para escalar? – a voz de Erwan me tirou do transe.

– Desculpe, para o quê?

O garoto abaixou-se para pegar uma sacola de pano e sem hesitar a jogou para o alto. Com um baque surdo ela aterrissou no teto do transportador.

– Escalar. Estou farto de areia e pedras.

Sem esperar uma resposta saiu a minha frente circundando o transportador. Seus passos desapareceram na escuridão e com um suspiro me forcei a segui-lo. O encontrei mirando o buraco deixado por um tiro inimigo que partira uma das janelas do transportador deixando para trás apenas uma passagem pela qual o vento adentrava o automóvel metálico.

– Deve servir. – anunciou triunfante, não esperou nem mais um segundo para alçar-se para cima. Segurou-se na janela para tomar impulso e içou seu corpo para cima sem qualquer dificuldade. Logo depois sua figura havia desaparecido no teto do transportador. Afastei os cabelos do rosto, bufando.

– E você espera que eu consiga fazer isso como se fosse um gato? – sussurrei para cima com rispidez, temendo o que o robô elefante acharia de crianças escalando “seu” transportador. Mal tinha terminado e uma corda foi jogada de cima, errando minha cabeça por poucas palmas.

– Você fez de propósito. – sibilei encarando o céu. A cabeça de Erwan surgiu do alto e mesmo com a pouca luz que a lua proporcionava vi que estava sorrindo. Guardei qualquer comentário mais ácido para quando estivesse ao seu lado em segurança.

– Simplesmente segure a corda e se apóie contra a parede do transportador que eu te puxo.

À contragosto fiz o que mandou, tomando o cuidado de amarrar a corda ao longo da minha cintura também, só para garantir. Minha perna direita se punha violentamente contra aquilo, não facilitando a subida nem um pouco. No final tinha ficado a cargo de Erwan puxar meu peso inteiro para cima sem ajuda alguma e quando segurou meus braços para me içar o último metro para o alto não conteve um murmúrio de reclamação.

Quando finalmente estava ao seu lado, nós dois estávamos ofegantes.

– Vou te contar uma coisa – falou, puxando as mangas da camisa para cima – no seu caso tamanho não condiz ao peso.

– O tamanho da sua cabeça também não condiz ao tamanho do seu cérebro.

O garoto me encarou durante alguns momentos e culpei a penumbra por não conseguir ler seus olhos. Depois sua atenção foi voltada para a sacola de pano, vasculhava seu interior até que encontrou o que procurava.

– Desculpe, Deidre. Foi idiota falar daquela maneira com você hoje mais cedo.

O observei acender um pequeno lampião em silêncio. Não queria responder nem pensar sobre isso porque só causaria mais brigas. Não queria que brigas fossem minhas últimas recordações de Erwan.

– Está tudo bem. – vi o alívio em seu semblante - Como está Danton?

Seu corpo relaxou com a mudança na conversa e tirou alguns frascos e material para fazer curativos da sacola, o que me fez pensar que fora Edda quem o mandara a mim.

– Está vivo, apesar de sua insistência em se comportar feito um idiota em situações de perigo. Venha, Edda, me contou que suas feridas ainda não foram cuidadas.

Estendi a perna com cuidado, subitamente ciente de como estava machucada. À luz da lua e da pequena chama do lampião minha perna direita estava uma confusão de tecido rasgado, sangue seco e pele lesionada. Erwan resmungou alguma coisa e depois sua mão desapareceu novamente na sacola, tirando uma tesoura poucos segundos depois. Ao ver as lâminas aproximando-se da minha perna me encolhi instintivamente para trás, Erwan me conteve.

– Não pode fugir daqui, Deidre. A não ser que queira se jogar de uma altura de quase três metros. – o humor brilhava em seus olhos.

– É esse o momento em que percebo que tudo foi friamente calculado.

– Culpe Edda. – retrucou o garoto, cortando minha calça até um pouco acima do joelho. Desprendeu o tecido rasgado da minha pele com a ajuda de um pouco de água.

– Sabe, não é idiota. – falei olhando para o céu estrelado. Não lembrava a última vez que havia visto estrelas.

– O quê? – Erwan parou seu trabalho por um momento.

– Se preocupar e ficar perto da sua família em momentos de perigo. – respondi fechando os olhos para sentir melhor a suave brisa que nos envolvia. Ouvi Erwan voltando a seus afazeres e segundos depois foi como se despejasse ácido sobre a minha ferida.

– Está louco?- falei quase alto demais, em resposta veio apenas um sorriso.

– Há melhores maneiras de agradecer por ter conseguido guardar um pouco de anti-séptico. – resmungou. Cortou com cuidado algumas faixas de gaze e depois começou a envolver o ferimento, a forma como o fazia era completamente oposta de seus movimentos ofensivos e brutos quando treinava ou lutava. Afastei os olhos das suas mãos sentindo de repente como se não soubesse mais agir como uma pessoa normal.

– Pronto. – anunciou – Tem mais algum ferimento?

Ao ver que mirava decididamente os escuros montes pedregosos no horizonte se inclinou em minha direção.

– Deidre? Eu perguntei se você tem outro ferimento.

O encarei sentindo as bochechas mais quentes que a areia do deserto ao meio dia. Erwan subitamente se deu conta do pouco distanciamento entre nós e virou o rosto para o lado, tão perdido quanto eu. Precisei lembrar como se respirava adequadamente e então me deixei cair sobre o teto do transportador. Segundos depois senti Erwan deitando ao meu lado, ao máximo de distância que o estreito teto metálico permitia. Cruzou os braços debaixo da cabeça e seus olhos escuros miraram as estrelas.

– Não acabou bem para mim. – falou depois de um longo silêncio. A seriedade em sua voz me fez erguer a cabeça em sua direção.

– O quê?

– Fugir com sua família em meio ao caos. – disse, seus olhos fixos no céu. E então ele derramou tudo nos meus braços, mal parando para respirar enquanto contava.

Sua família havia sofrido com a guerra, como inúmeras outras. Em uma noite sua cidade foi bombardeada e todos tiveram que fugir em meio a uma multidão desesperada enquanto os bombardeios abriam crateras ao seu redor. Erwan ficara encarregado de cuidar de sua irmã mais nova, Olive, enquanto os pais procuravam o melhor caminho para deixar a cidade. Olive, ou Livie como os pais e Erwan a chamavam, tinha cinco anos e no meio da confusão a mão dela soltou-se da de Erwan e sua pequena figura sumiu no mar de gente. Quando voltaram os pais não o culparam, mas o pai de Erwan foi procurá-la e acabou entre os mortos do bombardeio. Desta forma uma família foi cortada pela metade, a mãe de Erwan tentou agüentar por ele, mas nunca se recuperara do baque. Ela também acabou morrendo anos mais tarde na travessia do deserto e um dia depois Erwan encontraria o grupo de Berthe. Mesmo tendo ouvido parte da história de Edda, ouvi-lo diretamente de Erwan era terrível. Não consegui encontrar palavras que o confortassem, se é que serviriam para algo a essa altura de sua vida.

– De quem você puxou seus cabelos?- a frase soava ainda pior do que na minha cabeça. Erwan não parecia se ofender.

– Do meu pai. Minha mãe dizia que era uma cópia menor dele, acho que não facilitou sua vida depois que ele partiu. Livie também tinha cabelos ruivos, desde então quando vejo uma garotinha ruiva me pergunto se não pode ser ela, que ela tenha sobrevivido de alguma forma...

– Que você não esteja sozinho nesse mundo. – completei. Erwan tirou os olhos negros do céu e olhou para mim. Queria que soubesse que não era o único que se sentia daquela maneira, mas a incapacidade de formular frases que fizessem algum sentido me limitou a um sorriso encorajador. E então, em meio a mais um vento forte que fez meus cabelos voarem de encontro ao meu rosto, estendeu sua mão em direção a minha. Segurou minha mão na sua com firmeza e voltou seus olhos para as estrelas, suas sardas iluminadas por um leve rubor nas bochechas.

– Não sei como definir você, Deidre. De todos nós parece ser a mais frágil e agora tem uma tarefa pela frente que me faria ficar com os joelhos tremendo.

– Bom saber que estamos tão otimistas. – retruquei, para acrescentar em uma voz mais séria – Todos temos agora difíceis tarefas pela frente, a minha pode simplesmente parecer mais difícil, mas não tenho outra escolha. Devo isso a Rhes.

– Queria que Rhes nunca tivesse existido. – confessou o garoto sem o usual tom acusativo que usava para se referir ao robô.

Apoiei minha cabeça na mão livre para olhá-lo melhor.

– Então eu não estaria aqui agora, Erwan. Entenda que preciso cumprir com a minha palavra, é o que você faria também.

Suspirou, vencido.

– Você tem razão. Acho que seria bom te reencontrar algum dia. – notei a quebra no seu tom de voz que veio acompanhado pela sua mão que soltou da minha.

– Não pode me culpar pelos nossos caminhos se separarem agora, Erwan, e se pensar direito vai ver que você ficou com a parte boa. A única coisa que me resta é a companhia dos robôs e liderar um grupo de sobreviventes esgotados que me vêem como uma criança idiota.

– Sobre isso eles quase estão certos. – deixou escapar e ignorou o meu olhar de raiva. Ainda assim estava contente pelo clima estranho ter se dissipado.

– E o fato de liderá-los até a base segura não significa que vá ficar lá para sempre. – acrescentei segurando o riso ao ver o rubor em suas bochechas. Erwan deu de ombros e começou a amarrar a corda em uma reentrância do metal retorcido pelos ataques.

– Já pode descer. – falou – Consegue com a sua perna?

Anui me esforçando para ficar séria. E testei se a corda estava bem presa, estava. Me lancei para baixo segurando a corda com todas as minhas forças, apoiando os pés contra a parede de metal enquanto descia. Sinalizei para Erwan que já tinha chegado e depois de sua cabeleira sumir tomei o devido cuidado de me afastar. A corda caiu pesadamente no exato local em que estivera momentos antes. Muito maduro, Erwan. O próprio veio em seguida, sem o auxílio da corda e pegou a sacola de pano que lhe estendia depois de bater a areia para longe da sua calça.

– Tente ter uma última noite de sono antes da partida de amanhã cedo.

– Você acha que conseguiria dormir depois de um dia como esse? – para isso o garoto não tinha uma resposta. Passou a mão pelos cabelos ruivos de forma cansada.

– Acho que ninguém conseguirá dormir esta noite. – falou – Tente então não passar a noite se culpando pelo que aconteceu, nem você poderia mudar o que aconteceu hoje, Deidre.

Forcei um sorriso e senti a exaustão sobre o meu corpo.

– Como vocês vão me fazer falta. – confessei com a voz embargada e antes que pudesse responder lhe virei as costas. Contornei o transportador o mais rápido que a perna lesionada permitia e um minuto depois acenava com a cabeça para 21-S adentrando a cabine de comando. Assim que me viu entrar Anselme levantou os olhos cansados dos papéis. Ao ver seu estado de cansaço me culpei por ter pedido para fazê-lo, mas o senhor parecia não se importar e estendeu os papéis em minha direção.

– Está tudo aqui, criança, com algumas rotas de acesso caso por algum motivo a rota principal não seja possível.

– Obrigada, Anselme. De verdade. – o senhor sorriu exausto e se espreguiçou.

– Se me agradecer de novo te dou um dos meus rádios de presente. – ameaçou quando já estava a poucos metros da porta.

– Anselme? E os dados do chip?

– Serão apagados se você acionar aquele botão ali, pequena Deidre. Achei que quisesse estar sozinha neste momento.

Decidi que não havia como agradecê-lo o suficiente pelo que fizera naquele dia e o deixei partir depois de desejar uma boa noite. Por um momento meus olhos se perderam nos monitores que exibiam as informações da missão de Rhes e de repente foi como se estivesse comigo de novo. Todos aqueles dados vinham dele, frutos de um estudo complexo de todos os empecilhos que poderiam se levantar contra sua missão. Só não contava com um empecilho chamado Deidre, pensei com amargura. Segurei os papéis de Anselme com firmeza, sabendo que o que estava escrito neles determinaria o meu futuro e o de todas aquelas pessoas. Fomos traídos. Antes que me decidisse do contrário estendi a minha mão e acionei o brilhante botão azul que se destacava entre os outros do teclado. A mensagem diante dos meus olhos mudou e junto com ela uma estranha força me preencheu: faria aquilo dar certo. Meus olhos se tornavam cada vez mais pesados e me acomodei melhor na cadeira, vendo as letras se espelharem nas janelas.

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Notas finais do capítulo

E aos poucos, nossa pequena Deidre deixa de ser criança... Esses capítulos pós-morte de Rhes tem me deixado muito emocional e culpada pela névoa de tristeza que tem cercado a história, mas no próximo capítulo vamos conhecer gente nova e quem sabe uns dias de sol virão.
Obrigada a todos que lêem e comentam! (Se você lê e não comenta, saiba que é uma pessoa horrível, falomermo beijos)


— Lud



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