Crônicas de Sieghart escrita por xGabrielx


Capítulo 9
Colônia de Gosmas 9 — Egoísmo




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O braço tinha voltado para perto do portal. Trilel não pôde salvá-los, mas sabia que não poderia. Fechar o portal era o mais importante.

Seu martelo estava brilhando levemente, e o inimigo não parecia estar ciente de sua presença. Talvez não pudesse se mover. “Ainda melhor...” pensou “...vou ajudá-lo um pouco mais...” e golpeou com o martelo o braço. A arma não atravessou a figura negra. Tinha funcionado: a mão ficaria paralisada tempo o suficiente.

Correu alguns passos e parou em frente ao portal. Segurava um frasco de vidro em formato de lágrima contendo um líquido azul brilhante. Água-Clara.

O mesmo líquido que o protegera dez anos atrás. O mesmo frasco.

Removeu a tampa e estendeu a mão para despejá-la.

Mas não conseguia.

A princípio, sentiu uma enorme tontura, mas devia fechar o portal. Continuou a estender o braço, mas não tinha força o suficiente. O braço parecia levar segundos para girar e tudo à sua volta estava embaçado. Até que seu corpo não avançava mais. Estava literalmente parado: não conseguia girar mais o braço, não conseguia andar para frente e nem para trás. Não conseguia piscar, não conseguia respirar.

Parecia estar olhando pelos olhos de alguém, mas sentia a falta de ar aumentando. Precisava respirar... Precisava de ar. Mas seu corpo não movia. Ia morrer.

Então, percebeu seu braço direito, que estendia segurando o frasco, caindo. Seu corpo não estava caindo... só o braço. Passaram o que poderia ser segundos até que finalmente sentisse a dor. Em vez de gritar, inspirou com o que poderia ser a maior força que já fez em sua vida, o máximo possível de ar. O mundo pareceu clarear, como se o Sol tivesse apagado levemente e repentinamente decidido acender de volta. Então, ouviu em sua mente a voz de outra pessoa.

Insolente.

E outra mão saiu de dentro do portal, agarrando seu corpo.

– Eles... Eles pegaram o comandante! – gritou Mer Ellot.

Os dois homens tinham colocado várias varas metálicas de diferentes formatos em volta de todos que não conseguiam se mover. Não eram muitos, mas não daria para movê-los um de cada vez.

– Só se concentre em nos proteger! – falou o homem de pele escura ao seu lado. – Vanto, está pronto?

– Sim. – respondeu, do outro lado do círculo formado pelas varas.

– Você terá que fugir depois. – falou para o mago. – Nós protegemos você então.

– C... certo. – respondeu Mer Ellot, tenso. Não sabia quando eles poderiam atacar. Olhou para o certo que segurava em sua mão direita. A reserva em seu rubi estava quase esgotada. Se atacassem novamente, precisaria usar o que tivesse em seu corpo para erguer outra barreira. Talvez não fosse o suficiente.

O homem perto de Mer Ellot ergueu a mão esquerda com o dedo médio, indicador e polegar estendidos e os outros fechados.

– Sei que é injusto... – falou o homem, como se soubesse o que Ellot pensava. – Mas você é habilidoso.

Quando terminou de fechar os dedos um a um, ele e Vanto começaram a falar Naquela língua. O mago sentiu uma movimentação estranha de energia e virou-se para ver.

As pessoas dentro do círculo estavam embranquecendo e sumir.

“Transporte pelo espaço...” pensou, boquiaberto. Nunca tinha visto algo assim. Já havia lido teorias, mas eram só teorias. A aplicação prática, a sensação, era algo completamente diferente de qualquer coisa que pudesse imaginar.

Todos pararam então de brilhar. Ainda restavam pessoas para tirar dali, mas Mer Ellot logo entendeu. A cabeça do homem ao seu lado caiu ao seu lado.

– ARKE! – gritou o homem do outro lado do círculo.

Um clarão ocorreu na direção de Vanto, mas Mer Ellot não conseguia fazer nada além de retornar o olhar para aqueles olhos castanhos já sem vida.

Era a primeira vez que via alguém morrer.

Não era como se nunca tivesse pensado na morte. Era velho o suficiente para lembrar de quando Canaban, Serdin, Erkata e as Terras Menores confrontaram Cazeaje pela última vez. Em sua derrota, a arquimaga desapareceu. Fugiu, diziam muitos, escondida em algum buraco, meramente esperando que seus poderes voltassem.

A batalha em si não tinha sido devastadora. Não durou mais que um dia. Ainda assim, bastou um dia. O golpe fora dado, e toda Vermécia sofreu.

Em um dia, quase todos aqueles que lutaram tiveram suas almas envenenadas. Eles iriam gastar seus últimos dias lentamente perdendo tudo que se pudesse ter para chamá-los de vivos até que Canaban ordenasse suas mortes. Serdin, Erkata e a maioria das Terras Menores fariam o mesmo dias depois.

Naturalmente, muitos dos Kriewalt tiveram também de ser livrados do sofrimento.

Quem eles querem realmente livrar do sofrimento? perguntara seu pai. Sieghart ouvia em segredo, mas conseguia saber que falava do Rei, da Rainha e de todos os outros. Na época, não havia entendido a pergunta.

Tinha seis anos. Não poderia acompanhá-los, mas pôde despedir-se dos tios e primos, e seu irmão mais velho. O único mais velho. Seu irmão não o reconhecia mais. A maioria dos primos e tios também ignoravam a presença de qualquer outra pessoa, tendo olhos somente para o que alguns diziam ser outro mundo.

Um de seus tios havia sorrido ao vê-lo. Logo depois, voltou a olhar para algo invisível e foi guiado pelos outros pelo caminho. Sieghart não sabia o nome dele. Não devia ser alguém muito importante; só mais um soldado. Mas naquela noite o menino ficara pensando, ainda mais que em seu irmão, naquele tio.

Teria ele reconhecido Sieghart? Ou era só um sorriso para uma criança? Se ele podia sorrir, por que não disse que não queria ir? Ele não sabia que ia morrer? Ou ele não tinha medo?

Foi a primeira vez que pensara na morte. Naquela noite, sonhou com seus tios, primos e irmão andando para um enorme buraco escuro no chão. Cazeaje sorria ao olhá-los caindo um a um. E o tio sorriu mais uma vez para Sieghart antes de mergulhar na escuridão. Estava se despedindo?

Nunca se esqueceria do sonho. Era o mais real que já teve. Sieghart chamou seu irmão e estendeu a mão. Estava ao seu lado, mas o irmão não ouviu. Ou ouviu, mas ignorou e também caiu no buraco. Tinha ainda o irmão menor e as irmãs, mas naquela noite, em frente ao buraco e Cazeaje, entendeu que tinha sido deixado por seu irmão. Pensou que agora estava sozinho.

Todos que Sieghart vira tinham chorado a morte dos filhos, ou pareciam mais tristes, menos seu pai. Ele parecia estar igual sempre, então Sieghart o inquiriu no outro dia. “Eles lutaram com coragem. Pode não ter sido durante a batalha, mas ela foi lutada.”, respondeu. Mas seu irmão tinha acabado de morrer. Como podia ele não chorou pela morte dele? Por quê? Logo depois se arrependeu da pergunta. Após segundos de silêncio, o Pai então virou os olhos para o filho. “Porque eles morreram com honra.” O menino segurou seu choro, até seu pai finalmente tirou os olhos de cima e a criança pôde fugir dali para não mostrar as lágrimas. O olhar que recebeu junto com a resposta confirmava: estava mesmo só.

Ele já havia pensado na morte, mas nunca vira alguém morrer. Já soubera de muitos que morreram de doenças e idade. Despedira-se de corpos, mas nunca presenciou o momento em que perdiam a vida. Nisso, nunca havia pensado.

Um dos homens caídos à sua frente ainda estava vivo. Ele devia ter tentado saltar para o lado: seu corpo estava cortado levemente na diagonal, mas tudo acima de seu peito estava inteiro. Ele olhava para Sieghart e disse algo. O jovem sabia que o homem disse algo para ele, mas não conseguiu entender nada daquele balbuceio. E então, o homem parou de falar.

As últimas palavras do homem tinham sido para Sieghart. Ele falava de sua família? De sua amada? Filhos? Alguma mensagem para eles? Ou talvez que vingasse sua morte? Não tinha entendido nada. Não sabia.

As palavras de seu pai vieram à mente. “Lutar com coragem”, “morrer com honra”.

A imagem do homem morto à frente, no entanto, dizia algo diferente do Pai, e Sieghart entendeu que mesmo um dos líderes dos Kriewalt podia estar errado. Não havia significado algum na morte. Não havia honra alguma na morte.


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