Lágrimas de Prata escrita por Virants


Capítulo 3
Capítulo 2. Lágrimas reprimidas




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            Meu apartamento era uma mera sombra do que foi um dia. Possuía um quarto espaçoso, com uma cama de casal, um guarda roupa pequeno e um criado-mudo. Uma sala razoável com uma TV de 29, cozinha com geladeira, fogão e outras coisas que não estou a fim de enumerar. A vista que eu tinha da janela era legal. Podia ver toda a rua, mesmo estando apenas no segundo andar.

            Tá bom. Admito. Ele não está tão ruim assim, mas já foi melhor. Fui obrigado a abandonar meu emprego por causa dessas lágrimas prateadas. Fiquei sem dinheiro pra pagar o aluguel. Vendi o DVD, meus filmes, meu celular, alguns móveis... Troquei minha TV de 52 por essa de 29, que ainda é mais econômica. Vendi meu videogame... O que foi? Só porque sou adulto preciso ser um chato que não curte a vida?

            Independente disso, o dinheiro dessas vendas está me mantendo vivo já faz dois meses. É complicado, mas consegui pagar o aluguel, as contas e comprar comida (mesmo que pouca), sendo o bastante pra fazer três refeições diárias. O lado ruim... É que o dinheiro acabou ontem.

            Levantei da cama e fui direto para o banheiro e molhei o rosto. Meus olhos estavam muito vermelhos, não sei se era devido à noite mal dormida ou por causa da choradeira reluzente de ontem. Mas sei que o estômago pedia comida. Fui correndo para a cozinha e abri a geladeira.

            – Essa geladeira já teve uma população bem maior – disse tristemente, ao notar que só havia algumas cervejas, um pedaço de bolo e algumas poucas frutas.

            Peguei uma cerveja e um pedaço do bolo, que ganhei de uma pessoa que ajudei. Ele queria se matar no dia do aniversário. Também acho que essa foi muito bizarra.

            Já sei... Estou sem dinheiro, sem emprego, mas ainda tenho a cara de pau para comprar cerveja? Errado. Digo, estou e não estou. O álcool pode servir como um ótimo inibidor de apetite sabia? Substituir a comida pelo álcool, isso se chama anorexia alcoólica. Claro, eu sei os riscos e, por isso, a cada dois dias tomo várias cervejas e uma fruta, isso me mantém sem comer até o outro dia. De vez em quando “me recompenso” com um hambúrguer... Sinto falta daquela carne gordurosa descer pelo esôfago...

            Abri minha cerveja, dei um gole e mordi o bolo, sentando no sofá e ligando a TV. Assistir desenho animado ajudava a esquecer a minha depressiva situação... Conjuguei o verbo “ajudar” no pretérito... Entendeu?

            Minha situação é péssima, mas consigo encontrar a alegria frequentemente. Ver o sorriso no rosto de um sem vida, ver lágrimas esperançosas escorrer pelo semblante fúnebre daquelas pessoas... Está sendo o meu bálsamo.

            – Bryan, está aí? – alguém bateu e chamou à porta. Era uma voz feminina, muito conhecida.

            Dei um último gole na minha cerveja gelada, degustei por alguns segundos e então levantei e abri a porta.

            – Nicole! Bom dia pra você! – disse com animação, sorrindo.

            – Sabe... Você tinha falado que ia me ajudar com a TV e o computador hoje, já que é minha folga – a mulher sorriu.

            – Poxa! – levei a mão à cabeça, por sorte não era a que segurava a latinha – Eu tinha me esquecido...

            – Ah, não. Não me diga que vai desistir? Estava contando com sua ajuda. Você sabe que o pessoal daqui é chato e ninguém me ajudaria – choramingou.

            – Pelo contrário. Vou ficar feliz em te ajudar – afinal, eu não tinha nada para fazer em casa – Só me dê cinco minutos. Preciso me arrumar. Ok? – sorri enquanto fechava a porta.

            – Estou te esperando – Nicole saiu com um sorriso no rosto.

            Nicole era jovem, tinha 22 anos e abusava do rostinho lindo para me pedir as coisas. Trabalhava como garçonete aqui perto. Só folgava uma vez na semana e não tinha a menor noção de como arrumar uma TV ou um computador. Era uma boa amiga... Pra falar a verdade, a única amiga.

            Logo que comecei com essas “saídas” repentinas, devido às lágrimas, e aparecia em casa muito tarde, meus amigos passaram a se distanciar. Pensavam que... Pensavam que eu estava mexendo com o que não devia.

            – “Você está usando drogas, Bryan?” – essa frase era dita com desprezo por todos.

            Eu respondia que não... Eles perguntavam porque eu chegava tarde. Eu não podia falar das lágrimas, me chamariam de louco. Então... O resto você sabe.

            Acabei levando exatos 8 minutos para molhar o rosto, dar um jeito no cabelo (é curto, mas nem por isso deve ficar bagunçado), terminar o bolo e trancar o apartamento.

            Nicole morava do outro lado do corredor. E eu agradeço muito por isso. O pai dela nunca gostou de mim e, depois que “fiquei estranho”, ele discursou para todos do prédio que eu não prestava e deveria ser expulso de lá. Quase conseguiu. Nicole conversou com o dono do lugar, conseguiu que eu continuasse aqui e ainda fez ele me dar um desconto no aluguel... Caso contrário eu mal conseguiria comer. Sorte o pai dela ser amigo do dono...

            – Ei! – ela gritou, abrindo um sorriso e correndo em minha direção – Por que está aí parado no corredor? Vamos – e me puxou pelo braço, me tirando do meu transe.

            Nicole era simpática, tinha um sorriso de dar inveja a qualquer mulher, a alegria era facilmente notada em suas atitudes, sempre cheias de vida. Muitos amigos meus tentaram namorá-la, nenhum conseguiu. Eu não tentei. Por mais que ela seja uma ótima pessoa e uma linda mulher, não consigo me interessar por ninguém depois que “me joguei da janela”.

            – Bryan, se não quiser me ajudar hoje, pode deixar. Eu entendo. Marcamos outro dia – fez uma cara de séria e me olhou, estávamos na porta de seu apartamento.

            – Me desculpe, Nicole – fiz cara de besta, ri e entrei – Estou meio pensativo esses dias.

            – Você sempre foi pensativo – rimos juntos e ela ligou a TV.

            O problema da TV era simples. O cabo da antena estava mau plugado e com isso a imagem ficava ruim. Logo depois foi a vez do computador, ela só queria que eu fizesse um backup, formatasse e ajeitasse as coisas novamente.

            – Certo. Vai demorar pra instalar o sistema operacional – dei um gole rápido na cerveja que ela havia me oferecido – Quando terminar você me chama lá no meu apê?

            – Ah, que isso. Fica aí. Vamos conversar – e segurou meu braço.

            Finalmente as coisas fizeram sentido. Ela havia posto um CD do Paramore e estava tocando... “Decode”. Eu adorava ouvir e tocar aquela música... Nicole sabia.

            Virei as costas para Nicole... Comecei a lembrar o que não devia... Essa música, mesmo sendo uma das minhas preferidas, não me trazia boas lembranças.

            – Bryan... – disse ela num tom de voz incomum e se levantando.

            Acabei não ouvindo. Meu corpo estava atordoado pelas lembranças. Fechei os olhos, senti algo quente logo abaixo dos olhos.

            – Por favor, Bryan, não vá agora... – ela se aproximou me abraçando e recostando a cabeça em minhas costas. A música já estava chegando à metade.

            “Abri meus olhos. Eu estava em meu apartamento. Me sentia feliz. Alguém me chamou na cozinha, quando entrei eu a vi. Uma sensação de bem estar tomou conta do meu corpo. Seus cabelos negros e longos, seus olhos castanhos escuros, eram lindos. Ela se aproximou, me abraçou e sussurrou algo em meu ouvido.

            – Bryan... Eu... Te... Amo... – nossos olhares se encontraram.

            Nossos lábios se aproximaram, a envolvi nos meus braços, num abraço que não poderia ser desfeito. Ela mordeu meu lábio inferior e colocou a mão em meu rosto. Foi então que... Nos beijamos. Êxtase puro tomou conta de meu corpo. Eu me sentia... Realizado... Logo depois... Uma sensação de perda total... E tudo sumiu. Fiquei em meio à escuridão... Sozinho.”

            Foi então que senti meus olhos arderem. A música havia acabado. Notei que estava chorando e abri os olhos assustado. Estava beijando minha amiga... Nicole... Antes que pudesse parar de beijá-la, seu pai chegou.

            – O que é isso, Nicole?! – esbravejou com a filha – Por que esse vagabundo inútil tá te beijando?! – e apontou pra mim, com cara de nojo.

            Ele era alto, quase dois metros, meio gordo e possuía uma mão imensa. Ele avançou em minha direção com o gigantesco punho levantado, mas Nicole me soltou e entrou na frente.

            – Não, pai! Deixe ele em paz! – Nicole estava prestes a chorar, mas seu pai ignorou por completo o seu pedido. Empurrou a garota para a cama e tentou me agarrar pela gola da camisa, mas segurei sua mão e puxei seu braço para cima de mim, dei um passo para o lado e com isso ele saiu tropeçando para o outro lado do quarto.

            Meus olhos começaram a doer e senti uma tonteira rápida. As lágrimas estavam chegando. O pai de Nicole acabou escorregando em algo e caiu, dando tempo para Nicole me puxar para a sala, abrir a porta e sair comigo.

            – Nicole... – minha voz ainda estava triste – Nunca mais faça isso. Nunca! – virei o rosto para o lado oposto ao dela, as lágrimas já estava escorrendo e meus olhos doíam ainda mais.

            – Mas, Bryan... Eu... – ela tentou me abraçar novamente. Avancei alguns passos, mostrando que não queria.

            – Nicole... Por favor... Me desculpe, eu não posso fazer isso – não precisei observá-la para saber que também estava chorando.

            Ela se aproximou e colocou a mão em meu ombro.

            – Está certo... Você ainda não a esqueceu, não é? Eu... Compreendo... – ela tentou segurar as lágrimas, mas acabou dando um gritinho abafado e correu para o apartamento dela.

            – Eu sou um idiota. Por que estou chorando? Eu não tinha esquecido ela? Por que estou chorando?! Por quê?! – os vizinhos podiam ouvir meus gritos desesperados.

            Fiquei alguns minutos ali, deixando as lágrimas saírem.

            – Reprimir sentimentos é reprimir lágrimas... Reprimir lágrimas é aumentar exponencialmente o sofrimento... – Não lembro onde vi isso, mas tinha acabado de confirmar a teoria.

            A mescla de lágrimas prateadas e naturais escorria pelo meu rosto. Não conseguia parar de chorar e não estou falando das lágrimas de prata. Mesmo nesse estado deprimente, fui para meu apartamento, peguei duas caixas de cerveja, joguei em minha mochila velha, vesti meu sobretudo e sai do apartamento.

            – Não tenho cabeça pra ajudar ninguém agora... Que o Senhor me ajude um pouquinho mais dessa vez... – andei pelo corredor em passos rápidos até que parei, levando a mão ao olho direito. Parecia ter recebido uma pancada. Isso indicava que o sem vida estava no prédio. Isso era bom, ao menos uma vez não teria que percorrer a cidade me guiando por essas pancadas, elas serviam como uma bússola para achar as pessoas.

            Fui para o elevador e antes de apertar o térreo, senti uma dor na parte superior do globo ocular. Minha mão no olho direito ajudava a aliviar um pouco da dor, mas estava realmente forte dessa vez. A dor foi tamanha que dei um grito abafado. Antes de me jogar no chão consegui apertar erroneamente o penúltimo andar. A porta se fechou e, conforme íamos subindo, a dor ia diminuindo.

            A porta abriu e alguém tentou entrar, mas ao me ver no chão, com aquelas gotas prateadas no chão e meu rosto repleto do líquido brilhante, correu para a direção oposta, aos gritos.

            Levantei a cabeça, tentando ver quem era e, por sorte, encontrei meu alvo. Vi alguém usando um andaime do lado de fora do prédio. Era um homem alto e forte. Ele parecia estar subindo para o último andar. Meu olho parou com a dor intensa, permanecendo apenas com a dor comum de quando as lágrimas saem.

            Corri para a janela, a abri rapidamente e consegui subir no andaime, assustando o homem que acertou um chute em minha barriga, me fazendo cair deitado e sem conseguir respirar. Ele me segurou pela gola da camisa e me jogou para dentro do prédio novamente, bati as costas e a cabeça no chão, quando abri os olhos, via tudo quadruplicado. Tentei me levantar, mas estava tonto demais para permanecer de pé. Me apoiei na primeira coisa que senti, que por sorte, era a parede e não o vento.

            Ajeitei a mochila nas costas e tentei ir para o elevador, mas aquele som irritante anunciou que já estava de porta fechada. Teria que ir pelas escadas...

            – Corre Bryan! – sussurrei, ainda sentindo falta de ar.

            A tontura estava passando, mas as costas doíam muito. Quando cheguei na metade das escadas, ouvi um estrondo. Ele havia chegado no último andar. Acelerei o passo.

            Faltavam pouco mais de dez degraus e foi então que meus olhos doeram. Pareciam estar sendo perfurados. Fechei os olhos e coloquei as mãos sobre eles. Não havia sentido aquilo antes. Me guiei pelo corrimão e consegui chegar a cobertura, o sol das 11 da manhã provavelmente estava forte, mas meus olhos doíam demais para que eu confirmasse.

            Ouvi alguns passos. Ouvi algo se chocar contra o prédio. Provavelmente era o barulho do andaime batendo no prédio... O homem planejava balançar o andaime? Ou será que escorregou? Provavelmente era a primeira opção...

            Com as costas machucadas, os olhos doendo intensamente e as feridas abertas por Nicole, eu precisava pensar rápido, muito rápido... Senão... O sem vida ia, de fato, ficar sem vida.


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