Lágrimas de Prata escrita por Virants


Capítulo 4
Capítulo 3. Lágrimas do esforço




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            “Pense rápido, Bryan!”

            – Meu amigo. Espere um pouquinho. Eu também quero me jogar daí. O que acha de fazermos isso juntos? – falei um pouco baixo, mas acho que ele conseguiu escutar.

            Não sei como consegui pensar naquilo, provavelmente foi obra do Criador... Ele costuma esconder suas ações em meio a coisas simples... Como o óbvio.

            Com as costas moídas, as |doces| más lembranças que Nicole me fez recordar e com duas caixas de cerveja na mochila, eu não poderia pensar em mais nada senão me matar, certo?

            – Quer se matar também? Que pena, vai ter que esperar – respondeu, carrancudo, mostrando ser aquele tipo de pessoa teimosa e arrogante.

            – Cara, antes de se matar, vamos conversar um pouco enquanto tomamos uma cerveja? – tirei a mão dos olhos, abri a mochila e peguei uma latinha.

            Ele ficou alguns segundos em silêncio e logo disse para eu me aproximar.

            – Cara, tem um problema... Meus olhos estão... – pensei bem no que dizer.

            Limpei as lágrimas, que haviam diminuído um pouco, na manga do sobretudo e arrisquei alguns passos.

            – Pode me ajudar? Meus olhos estão machucados.

            – Você enxergava muito bem quando pulou no andaime.

            – Foi depois que você me jogou pra dentro do prédio – essa eu pensei realmente rápido!

            – Espere. Estou indo aí – as lágrimas param de escorrer e os olhos pararam de doer, mas continuavam ardendo. A missão não estava completa.

            Ele me guiou até o andaime e então subimos, nos sentamos e peguei uma cerveja para mim e entreguei a outra para ele.

            – E então? Por que vai se jogar daqui? Você vai se jogar... Não é? – perguntei fingindo inocência.

            Ele deu um gole tremendo, com certeza ele “gelou” tudo.

            – É – disse secamente, olhando para o prédio logo em frente – Problemas.

            “É o que todos dizem.” Abri um sorriso, mas segurei a risada.

            – Que problemas? – vamos iniciar o trabalho.

            – Problemas domésticos – falou tristemente, dando outro gole e suspirando, evidenciando que aquilo já o incomodava fazia certo tempo – Meus filhos, adolescentes, não me respeitam mais, tem desprezo por mim. Minha mulher dá sinais claros que quer se separar enquanto que eu faço hora extra o bastante para quase dobrar minha carga horária, para cuidar de todos.

            – Ah, certo... Entendi... – demonstrei certa animação e dei um gole em minha latinha – É o famoso “superpai”. Aquele que se esforça para dar tudo que a família pede e, como agradecimento, recebe a ingratidão e o desprezo. É isso? – falei num tom cômico e ele riu, notando que eu o entendia.

            – É exatamente isso. Mas... Como sabe? – me olhou com uma expressão de quem suspeitava de algo – Não me diga que já é pai nessa idade?

            – Ah, não. É que já vi outros casos como o seu – o dia só estava começando, mas minha mente pedia um descanso de tudo, precisava relaxar – Hã? – perguntei, já que me distrai em meus pensamentos e não ouvi o que ele disse.

            – Eu disse o seguinte... Por que você acha que meus filhos são assim? Eu já pensei em milhares de motivos, mas não consigo entendê-los. Se não consigo entendê-los, como podemos resolver o problema?

            – Não sou um especialista no assunto, mas... – fiquei alguns segundos pensando, tempo o bastante para abrir outra cerveja – Sei de uma coisa. É a coisa mais normal do mundo não entendermos nossos filhos. Seria bom se você os entendesse, mas isso é muito difícil de acontecer.

            – A solução é entendê-los... Se não posso fazer isso... O que vou fazer? – seu tom de voz aumentou e demonstrou o desespero que sua alma reprimia.

            Não sabia o que dizer... Já era a quarta lata, eu estava de estômago vazio, com a mente abatida...

            – Ei, jovem. O que você acha que devo fazer? – ele estava segurando as lágrimas, mas aquela voz chorosa fez seus músculos e tamanho passarem a imagem de um gatinho assustado.

            Meus olhos doeram... Meu coração parecia que ia se rasgar. É como se o desespero dele passasse para mim. As lágrimas de prata voltaram a escorrer, lentas, quentes... Machucando...

            Virei o rosto para o outro lado e voltei a tomar minha cerveja. Se fosse pra ficar bêbado, que ficasse. Ao menos não sentiria essa dor.

            – Eles também não devem entendê-lo. Vocês estão muito bem – falei com uma voz vazia, arrastada. Ele pareceu se acalmar vendo que eu “ainda estava ali”.

            A movimentação lá embaixo era grande. Mas eram poucos aqueles que paravam para nos olhar.

            “Nunca olhe para baixo quando estiver pendurado.” Pensei comigo antes de escorregar. A vertigem foi tanta que fiquei tonto e escorreguei pela lateral do andaime. Fui agarrado pelo braço e, por muito pouco, não o quebro.

            Minhas pernas balançavam loucamente no ar, buscando algo que servisse de apoio. Meu estômago revirou ao receber todo o peso do meu corpo sobre ele. Agarrei o braço do homem e tentei subir, mas nem foi preciso. Ele conseguiu me puxar com facilidade.

             Assim que subi, as cervejas restantes da primeira caixa começaram a rolar e caíram do andaime.

            – Ahhh! Droga! – gritei diversas vezes – Meu “pão de cada dia” virou material de reciclagem e bebida pra cachorro! – apontei para baixo, vendo que um cachorro lambia a bebida derramada.

            – Calma, cara! Só eram cervejas! Você tem um grave problema com bebidas! – me segurou pela gola da camisa e me jogou na parede – Não me diga que você é alcoólatra?! – fez uma expressão ameaçadora.

            – O termo certo é alcoólico e não alcoólatra... E eu não sou alcoólico – fiz cara de besta enquanto pegava outra bebida da segunda caixa, na mochila.

            – Sim, você é! Solta isso! – deu um tapa e derrubou minha latinha. Ela caiu da mesma forma que “caca” de passarinho num dia de sol desses.

            Ele me soltou repentinamente e por pouco não escorrego e tenho o mesmo destino da bebida. Ele me olhou com uma expressão de horror, como se um de seus fantasmas do passado o estivesse assombrando.

            Lágrimas de prata, lágrimas de dor... Ontem eu havia chorado muito dessas lágrimas, mas hoje elas estão machucando mais... Por que será?

            – Olha... – ele começou a chorar, libertou aquelas lágrimas reprimidas juntamente com sua mágoa – Tudo faz sentido agora... – choramingou mais um pouco e então virou em minha direção e, com uma expressão feroz, levantou o punho e socou a parede, a poucos centímetros do meu rosto.

            Tentei dizer algo, mas aquele rostinho de gato assustado havia se tornado o rosto de uma quimera violenta.

            Seus olhos apontavam para o próprio punho, mas seu olhar estava longe, sem foco. A única coisa que brilhava eram suas lágrimas. Ele estava longe, não notou minhas lágrimas incomuns.

            Ele gritou com sua voz gutural, assim como o rugido de um monstro. Ele sussurrou algo, estava falando consigo mesmo. E isso era ótimo, levando em conta que era um sem vida. Confesso, o grito dele me assustou, mas vê-lo aos prantos me deixou chocado.

            Uma coisa é a pessoa chorar. Deixar as lágrimas saírem, querer ficar sozinho. Outra, completamente diferente, é ela ficar aos prantos.

            O homem  não só deixava as lágrimas saírem como destruiu a barragem que as impedia de sair. Saiam com toda a força e seus gritos mostravam a dor que sentia.  Gritava, falava pedaços de frases, gemia... Parecia estar matando o fantasma da depressão...

            Meus olhos começaram a doer ainda mais. Senti diversos cortes abaixo dos olhos. Me esforcei para não gritar, apesar das lágrimas salgadas tocarem as feridas. Estava chorando lágrimas de prata e naturais mescladas com sangue. Aquela prata estava mais densa que o comum, saia de minhas glândulas lacrimais rasgando tudo que tinha a caminho. Minha visão estava avermelhada e prateada, o céu azul lembrava um céu de chamas e o horizonte lembrava um paraíso reluzente. Minhas lágrimas saiam incontroláveis como as dele... Estava machucando, muito...

            Me sentei no andaime e pus as mãos nos olhos, mas isso só piorou a situação. Fechei os olhos, ao menos assim não doíam tanto. Queria entender o que ele quis dizer quando disse “tudo faz sentido agora”, mas tenho a impressão que ele logo explicaria. Até lá... Eu teria que aguentar essas lágrimas idiotas...

            Notei que ele havia se acalmado. Ele estava com um dos braços na parede e a cabeça apoiada nesse braço. Limpou o rosto na roupa, soluçou um pouco e deu alguns suspiros.  Finalmente havia se acalmado. Então olhou para mim, mas pareceu não se importar com a face tingida por um vermelho fraco e por prata. Ele olhou fundo nos meus olhos e eu me esforcei para focar o olhar em seu globo ocular, mas não consegui. As incessantes lágrimas não me deixavam em paz. Isso serviu como um lembrete para beber água... Quando menos esperava, ele disse algo.

            – Eu sou alcoólatra – disse secamente – Esse foi o problema desde o início, mas acabei me esquecendo. Ameacei todos na casa dizendo que se alguém tocasse no assunto, teria graves consequências. Por isso não lembrava que essa era a causa.

            Não falei nada. Era um momento único. O sem vida, sozinho, lutou contra si mesmo em busca de uma resposta, tentou se ajudar... Chorou, gritou, mas foi persistente. E agora ele fez o que poucos sem vida conseguem, descobriu a solução para seus problemas... Sozinho. Ele foi o segundo que vi fazer isso. Foi então que as lágrimas pararam de escorrer. Senão fosse pela lágrima densa, meus olhos não doeriam e então eu diria “dever cumprido”.

            – Obrigado amigo. Se não fosse por você com suas cervejas talvez eu não tivesse descoberto a raiz dos meus problemas – ele me estendeu a mão e me ajudou a levantar.

            – Eu não fiz nada, você descobriu a solução sozinho – minha voz estava fraca, qualquer coisa relativa a minha cabeça fazia os olhos arderem.

            – Independente disso. Se você não tivesse me parado com suas cervejas, talvez eu não estivesse vivo agora – ele suspirou e sorriu – Estou vivo graças a você.

            Aquelas palavras soaram como bálsamo. Fiz a diferença em outra vida... Isso não tem preço. É bom ajudar as pessoas. Mesmo se você sair acabado como eu. A recompensa vale por todos os músculos doloridos.

            Ele saiu do andaime e voltou à cobertura. Fiz o mesmo, não esquecendo a mochila.

            Ele estava para ir embora, mas então parou um segundo e ficou de costas para mim.

            – Por que você queria se matar? – perguntou inocentemente.

            – Eu não ia me matar – falei rapidamente, sem pensar. Então notei onde ele queria chegar.

            – Então quer dizer que você fez tudo isso só para me... Ajudar? – falou com extrema surpresa na voz.

            – É... Pode-se dizer que sim, eu acho. Não fiz nada demais... Sei que você faria o mesmo em meu lugar - dei uma risadinha, típico quando fico um pouco envergonhado.

            – Além de tudo é modesto – ele virou para mim, se aproximou e pôs a mão em meu ombro.

            ­– Você é diferente de todas as pessoas que já conheci. Não sei explicar como, mas... Você não chega nem perto de ser aquilo que o Paulo, pai da Nicole, costuma dizer de você.

            “Aquele infeliz... Falando mal de mim pelas costas?” Pensei comigo mesmo, mas não tive tempo para ficar com raiva. As próximas palavras me atingiram como flechas afiadas.

            – Moro no mesmo andar que você. Sei pelo que você está passando... Você não merece passar por isso. Você não merecia ter passado por aquilo. Se precisar de ajuda para alguma coisa, pode contar comigo. Saiba que você acabou de ganhar um ombro amigo, certo? – ele olhou profundamente em meus olhos.

            Um sorriso que expressava, de forma inexplicável, uma alegria que parecia ser perene. O brilho perdido agora era a primeira coisa notada em seus olhos. Aquela expressão... Era a expressão de uma pessoa que realmente se importava.

            – Se precisar de algo, conte comigo... Bryan – disse seriamente e saiu com um sorriso no rosto, um sorriso de felicidade e não um sorriso forçado. Como há muito não deveria ter.

            Sem comentários de duplo sentido, por favor...

            A forma como ele me olhou... A última vez que me olharam daquele jeito era por pena e não por se importarem...

            Meus olhos arderam. Lágrimas comuns estavam saindo. Eu queria chorar. Queria arrebentar as barragens que impediam minhas lágrimas de saírem... Mas isso só aconteceria quando eu descobrisse a solução para os meus problemas... E eu... Não sei por onde começar.

            Eu estava chorando... Eu queria alguém pra ficar ali do meu lado. Eu precisava de uma companhia.

            – Mas por que aquilo teve que acontecer?! Mas que desgraça! – esbravejei e gritei aos quatro cantos – Por que teve que acontecer?! Eu merecia aquilo!? – me sentei no chão e usei o parapeito como apoio.

            Ainda tinha uma caixa inteira de cervejas... Mais umas duas que consegui salvar antes que caíssem... Eu tinha dez no total.

            – Por que estou gritando pra saber a resposta daquilo que já sei?! A resposta é simples, óbvia e deprimente! – dei um gole tão grande que minha garganta doeu e acabei tossindo. Puxei o máximo de ar que pude e gritei, a plenos pulmões: “Eu sou um tremendo idiota!”

            – Queria que alguém me abraçasse... Queria ter alguém que se importasse comigo. Alguém que pudesse ficar comigo aqui, até que eu melhorasse... Queria alguém que...

            Você não precisa saber o que eu pensei...

            – Queria alguém que desse valor pra esse monte de carne humana em decomposição, que chora lágrimas de prata, não tem emprego não tem amigos e é um imprestável. Se bem que podemos resumir tudo em uma palavra... Bryan – falei com desdém.

            Eu disse que você não precisava saber o que eu pensei...

            Perdi a noção de quantas cervejas já tinha bebido... Fiquei preso em minhas lamentações o bastante para ficar tonto.

            – Todas as vidas têm valor. Mas não estou conseguindo ver o valor da minha... Nem vejo ninguém que o faça por mim... – uma de minhas frases “aleatórias pré-programadas” ditas ao vento quando fico bêbado.

            Dei mais um gole, respirei fundo e ri um pouco.

            – Foi um ótimo dia. Salvei uma vida. Acho que iniciei a destruição de outra. Estou acabando com meus suprimentos em um único dia. Ganhei um amigo. Minhas costas doem – ri um pouco e voltei a enumerar seja lá o que for que estava enumerando – Meus olhos doem e ardem. Estou com dor de cabeça. Meu rosto está sujo de prata e sangue... Será que esqueci de algo? – agora eu já estava tonto, falando com meu amigo imaginário e, de fato, falando como um bêbado.

            Notando meu estado deprimente, ainda tentei me levantar, mas acabei caindo no primeiro passo dado. Cai de frente, com a barriga no chão e fiquei lá deitado. Notei que ainda tinham três bebidas... Abri mais uma e tomei deitado mesmo.

            – Espero que ninguém esteja vendo isso. Eu tinha me esquecido do quão ridículo eu fico quando bêbado. Né não, Rex? – olhei para minha mochila que estava do meu lado – Para de me lamber! Cachorro mau, cachorro mau! – resmunguei com o nada e senti uma tristeza tremenda.

            Fiquei calado. Senti um extremo vazio. Era o segundo estágio da minha embriaguez. O tsunami de lamentações...

            Tive a ligeira impressão de ter visto alguém nas escadas de volta para o prédio, mas ignorei e continuei meu falatório...

            Lamentei até apagar...

            Lembro de alguém ter me carregado. Era mais baixo que eu, tinha cabelos à altura dos ombros, um ótimo perfume. Me carregou com dificuldade e me deixou na cama do meu quarto... Não sei quem era, mas disse algo quando saiu... Não consegui entender direito... Mas me senti bem.

            – Deixa a luz acesa. Eu e o Rex temos medo de fantasma. Ele mais do que eu – bati a mão na minha cama – Para de morder, Rex! Cachorro mau, cachorro mau!

            Ouvi uma risada... Familiar... Mas não consegui identificar. Sem dúvida eu era um comediante nato e um tremendo de um lamentador quando ficava bêbado. As duas faces de uma mesma moeda cor de prata.

            – Durma bem, Bryan – ouvi uma doce e carinhosa voz ao longe... Muito longe...

            Dormi com aquela voz ecoando em minha mente.


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