Era Uma Vez... Uma Ilusão escrita por Landgraf Hulse


Capítulo 15
14. Não somos europeus, nunca fomos europeus.




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Abril|1799 Buckingham House, Londres

 

— Não! Suas ameaças não me assustam, não mais! — Dando passos para trás, a "Clarissa" nega veemente, até que, esbarrando numa mesa, pega um canivete e leva ameaçadoramente ao pescoço. — Aproxime-se e veja o desastre que acontecerá, o sangue que derramado recairá sobre sua cabeça! Vamos, Cupido, aproxime-se!

Tudo fica em silêncio, é um grande momento de tensão entre a virtuosa "Clarissa" e o indignado "Lovelace", até que... ao piano, a princesa Augusta volta a tocar no tempo moderato. Toda essa situação não passava de uma apresentação das princesas, uma que era organizada pela princesa Amélia, a protagonista, claro.

Sendo tão canastrona que chegava a ficar bom, a princesa Sophia, fazendo as falas do vilão Robert Lovelace, afasta-se dramaticamente de Amélia e nega com terror, tentando ao mínimo mostrar a perplexidade de Lovelace.

— Quanta coragem! Está disposta até mesmo a morrer pela virtude! Eu não... — Esquecendo a fala, Sophia abriu novamente o livro, assim como aproveitou para revirar os olhos, e então retornou a irmã. — Passar bem, querida Clarissa, mas saiba que não acabou!

Faltou apenas uma risada diabólica para completar. Dizendo isso, "Lovelace" deu as costas à protagonista e saiu de cena. "Clarissa" agora estava sozinha, pronta para brilhar sozinha, e foi com esse pensamento com Amélia voltou-se a assistência, muito aliviada.

— Oh Deus! Oh Deus meu! Oh meu Deus! — Com uma teatral emoção, Amélia levou um braço a cabeça e caiu dramaticamente no chão.

O quarto ato de "Clarissa" havia chegado ao fim. O rei, levantando-se, imediatamente começou a aplaudir, muito satisfeito com a apresentação das filhas, e satisfeito mais ainda com a própria Amélia. Porém, em contrapartida, as palmas da rainha eram muito mais contidas, embora não menos satisfeitas.

— Estamos em Clarissa, querida Amélia, não em Pâmela. — Sophia, aproximando-se da irmã caçula junto de Elizabeth, todos os outros personagens, comentou docemente quando Amélia finalmente abriu os olhos, embora... houvesse um certo descontentamento. — Eu não lembrava de Clarissa desmaiando nesse final.

— Foi um acréscimo de última hora. Mas não tem problema, afinal, eu sou a dramaturga. — Amélia respondeu rindo, mesmo que levemente imperiosa. O rei estendeu uma mão à filha, que aceitou e levantou-se. — Obrigada pela ajuda, papai. Mas então, que achou de mim?

— Certamente que adorou! — Elizabeth sussurrou terrivelmente zombeteira no ouvido de Sophia. A princesa mais nova chutou o pé da irmã, porém ainda teve que segurar uma risadinha.

— Tudo que minhas filhas fazem é perfeito, principalmente quando é você que está planejando, Emily. — Em outras palavras, tudo que "a favorita" fizesse seria muito bom. O rei levou delicadamente uma mão a bochecha de Amélia. — Eu já antes, mas é maravilhoso tê-la de volta, meu amor!

Com os olhos cheios d'água, o rei então abraçou fortemente a filha caçula, ainda era uma emoção ver novamente Amélia, ainda por cima saudável, apesar da volta dela ter sido no início de março. Atrás do rei, a rainha observava tudo com um leve sorriso.

— Certamente, papai. Esses meses sem Amélia foram terríveis, Weymouth nunca foi tão melancólico. — Até o momento calada, Mary então comentou emocionada. O rei não deu atenção, então a princesa voltou-se a irmã caçula. — Oh Amélia, você não faz ideia de como é fundamental nessa família!

— Principalmente para criar intrigas. — Novamente a princesa Elizabeth sussurrou para Sophia, que mantinha um belo sorriso no rosto. — Tenho algo para falar com Augusta, com licença, papai.

Surpreendentemente, isso foi o suficiente para fazer o rei soltar a filha favorita. Elizabeth fez uma mesura ao pai, depois a mãe e afastou-se em direção a Augusta, que ainda tocava no piano, certamente que aproveitando enquanto Amélia não ditava alguma música. As três princesas mais jovens ficaram então todas juntas, para a emoção do rei.

— Veja como nossas filhas são belas, Charlotte, e altas também! — Aproximando-se do marido, a rainha fez uma careta ao constatar que era verdade, nenhuma delas parecia com ela. George sorriu para a esposa. — Digo uma verdade, quase não acreditei quando vi Sophia na posição de Lovelace, afinal, é tão delicada!

— Essa é a graça da atuação, papai, não precisamos realmente parecer para ser. — Exatamente como certas coisas no mundo funcionavam. Sophia, mordendo os lábios, porém, acrescentou: — Embora... eu também tenha me surpreendido.

— Certamente que Amélia pensou muito bem antes de definir os papéis. — Percebendo o descontentamento da filha, a rainha logo tomou a liderança, recebendo um feliz assentimento da caçula. Charlotte suspirou e pegou a mão de George. — Mas bem, quando o próximo ato começará? Ainda tenho que...

Antes, porém, da rainha acabar, John Stewart, o 7º conde de Galloway, um dos Lords do Quarto de dormir do rei, entrou na sala e veio imediatamente na direção do monarca, lhe comunicando algo no ouvido. George fitou Lord Galloway e assentiu. Charlotte franziu o cenho.

— Algum problema, George?

— Teremos que deixar a apresentação para mais tarde, Bristol acabou de chegar para uma conversa. — O rei parecia bastante calmo, mas não o suficiente para a rainha, que franziu ainda mais o cenho. Porém o rei sorriu tranquilo. — Não fique assim, Charlotte, é apenas aquele assunto, nada mais que isso.

Mas até mesmo "aquele assunto" poderia ocasionar uma preocupação, principalmente envolvendo pessoas tão próximas e queridas. A saúde do rei estava se deteriorando, então todo o cuidado era pouco. Porém George beijou a bochecha da esposa, depois das filhas e então saiu, deixando as seis sozinhas.

— Mas que coisa! Assim parece até que o insignificante Bristol é mais importante que eu, que nós! — Logo após a saída do rei, Amélia reclamou ao sentar-se na cadeira que o pai anteriormente ocupava.

Amélia estava sendo injusta, até mesmo arrogante, porque Bristol era sim mais importante que ela. Richard era um príncipe soberano, enquanto Amélia não passava da filha caçula do rei da Grã-Bretanha. No mesmo momento em que entrou na sala uma dama e chamou Sophia, a rainha voltou-se a filha caçula e negou.

— Seu pai está cumprindo o dever dele, Amélia, assim como nós devemos cumprir o nosso. — A princesa apenas suspirou, sem resposta, fazendo novamente a rainha negar. Como ela foi mimada! Charlotte, suspirando, acabou por desistir. — Volte para sua apresentação.

Dando as costas para a filha, a rainha acabou vendo a outra filha. Sophia sorriu e sussurrou algo para a dama. Esse sorriso... Charlotte semicerrou os olhos em desconfiança, mostrava um profundo encanto, parecia até... paixão? Sophia começou a andar em direção a...

— Vai sair, Sophia? — Augusta, mesmo ainda tocando, perguntou altamente a irmã, que parou.

— Sim, mandaram avisar que... — Que? Todas fitaram Sophia, que corou violentamente. Ainda com os olhos semicerrados, a rainha inclinou a cabeça e deu um passo para frente. Foi o bastante para a princesa. — É um assunto filantrópico!

— Sendo assim, você está livre para ir. — A própria Charlotte permitiu, embora desconfiada. Imediatamente Sophia fez uma mesura e saiu da sala. Encarando a porta por um momento, a rainha voltou-se então às filhas, fitando-as fixamente. — O que está acontecendo? Digam tudo o que sabem.

— Não faço a mínima ideia. — Augusta respondeu rapidamente, olhando sempre para o piano.

— Sei apenas da minha vida. — Já Elizabeth simplesmente cantarolou.

— Acabei de voltar, mamãe, não sei de nada. — Amélia falou calmamente, cobrindo o rosto com o livro. Poderia até ser o suficiente, caso a rainha fosse tonta, mas ainda havia... — Mary, suas falas terão que ser mudadas.

Exatamente! A rainha voltou-se lentamente em direção a surpresa princesa Mary, que encarou desesperada as irmãs. Não havia como fugir, e nem mentir, porque Mary sempre dizia a verdade. Indo em direção a filha, a rainha até tentou sorrir, a fim de deixar mais fácil a situação. Porém, quando Charlotte estava prestes a descobrir, Sophia entrou novamente na sala e levou a gaguejante irmã.

Que assim fosse então. A rainha, franzindo o cenho, suspirou e negou. Não tardaria muito e ela descobriria… cedo ou tarde, ela descobriria. Logo a rainha também saiu, a fim de resolver um assunto sobre Kew, deixando para trás três princesas muito preocupadas com a irmã n⁰ 5... isso não acabaria bem.

*****

Rodando distraidamente o globo terrestre no escritório do rei, o marquês de Bristol suspirou e, inclinando a cabeça para cima, gemeu altamente em frustração. Richard não era naturalmente agitado, não como Robert, mas era terrivelmente desconfortável esperar para conversar com o rei sobre um assunto desconhecido, principalmente quando essa espera já durava quase vinte minutos.

Novamente suspirando, o marquês passou a mão pelo Atlântico e parou na Europa, mais especificamente no Santo Império. Esse assunto do rei seria sobre a guerra? O tal Bonaparte teria vencido no Egito? Ou, Richard franziu o cenho... pior ainda, teriam vencido na Alemanha!? Oh Deus, ele novamente gemeu frustrado, eram tantos problemas! Guerra, embelezamento urbano e... gravidez, como aguentar tudo?

— Sei exatamente como é, Bristol. O primeiro filho sempre é o pior.

Os olhos do marquês imediatamente se arregalaram e ele afastou-se rapidamente do globo. Oh Deus! Era o rei, o rei estava atrás dele! A primeira reação de Richard foi abrir a boca e tentar uma defesa, mesmo que o soberano britânico não parecesse em nada ofendido, bastante calmo, até.

— Eu não... não estava pensando em... estou profundamente... — As palavras dele não passaram de uma confusão, tanto que Richard viu-se obrigado apenas a calar a boca e olhar para baixo. — Perdão pela descortesia, Majestade.

— Não há necessidade alguma de perdão, Bristol, uma única vez é irrelevante. — Ainda de cabeça baixa, Richard assentiu. O rei, muito calmamente, voltou-se ao globo. — Como disse antes, sei exatamente como é a sensação. Foi uma alegria quando Charlotte anunciou nosso primeiro filho, mas logo também vieram as dúvidas.

— É inevitável, de fato. — Ele mesmo tinha as suas, mas... Richard balançou a cabeça e, cruzando as mãos atrás das costas, aproximou-se do rei, olhando contemplativamente o globo.

— Éramos tão jovens e estávamos tão encantados com a situação que... nem pensamos no pior. Mas então nasceu George, depois Frederick, logo em seguida William e depois todo o resto, inclusive... — Emocionado, o rei fechou dolorosamente. Richard, porém, permaneceu em silêncio, olhando fixamente para frente. Até que o rei voltou-se para ele. — Falávamos sobre?

Que mudança abrupta, Richard quase franziu o cenho, porém... respirando fundo, ele simplesmente encarou de volta o soberano. Todos sabiam que a lembrança de Octavius e Alfred era terrível ao rei, principalmente quando chegava nas mortes, então o melhor seria não tocar no assunto.

— Falávamos sobre como me sinto em relação a gravidez de Cathrine. — Ou melhor, o rei falava. Lembrando do que dizia, o monarca assentiu, fazendo então Richard retornar para frente, levemente receoso. — Mas... confesso que não estou muito preocupado. Eu deveria?

Afinal, com certeza a criança nasceria bela, saudável e amada, não havia motivo para preocupação, ou havia? O príncipe voltou-se novamente ao rei que, a julgar pela expressão duvidosa e suspiro, discordava bastante.

— Sua preocupação virá, Bristol. Principalmente quando você ficar velho e perceber que seus filhos homens são todos uma grande decepção! — Beirando a perturbação, o rei falou altamente, tanto que Richard afastou-se ao imaginar o pior. Porém, respirando fundo, o soberano se acalmou. — Mas não lhe chamei aqui para falarmos de paternidade, temos assuntos urgentes a tratar.

— Sobre a guerra, creio eu. — O rei assentiu lentamente a resposta do marquês, que franziu o cenho. — Houve algum problema?

— Não, ainda não. Mas logo teremos. — Como assim? Richard inclinou confuso a cabeça. Antes, porém, de qualquer pergunta, o rei rodou o globo e... parou. — Veja comigo nossa Europa, Bristol. Aqui estamos nós, a Grã-Bretanha, e aqui, no outro lado do Canal, está a França. Qual delas é maior?

— A França, meu rei. — O monarca, em nada afetado, assentiu. Parecia uma lição de geografia. Richard olhou o mapa e encarou o rei. — Mas apenas em território. Nossa marinha é maior, mais poderosa e melhor orga...

— Os holandeses também têm uma grande marinha, Bristol, assim como os dinamarqueses. — Mas havia uma grande diferença, a Holanda... ou melhor, a República Batávia era um estado cliente da França, enquanto a Dinamarca era neutra. — Nós somos os menores, somos como uma pulga lutando contra um barbet.

Porém, em ambas as situações, seria a pulga que sairia ganhando, nem que fosse no final. George e Richard continuaram a encarar o globo, o mapa europeu, em completo silêncio. Até que, mordendo os lábios, o marquês finalmente falou:

— Podemos até ser pequenos, mas temos aliados grandes e poderosos. — Poderosos, essa era a principal palavra. Muito determinado, o príncipe começou a apontar no mapa: — Temos o Império Otomano no Oriente, Portugal na Península Ibérica, a Áustria no centro e a grande Rússia ao leste. Temos a Rússia, meu rei, temos o maior aliado.

E nenhum general, por mais vitorioso que fosse, seria louco o suficiente para desafiar a Rússia. Por um momento, um breve momento, o rei sorriu em concordância com as palavras de Richard, porém, imediatamente depois, a expressão dele voltou à seriedade. Esses aliados não seriam o suficiente?

Franzindo o cenho, o marquês fitou fixamente o rei, buscando algum tipo de sinal, uma resposta. Por que ele estava aqui, afinal de contas? Qual benefício ou ajuda Richard ou o insignificante Niedersieg poderia dar? Dinheiro? Von Frieden talvez preferisse gastá-lo com o bicentenário da capital no próximo ano. O rei, porém, voltou-se reflexivo ao globo.

— A Europa nunca foi unida. Somos uma amálgama de tradições, ideias e culturas. Nossa história não é feita de união, mas sim de conflitos e cooperação, uma constante luta pelo poder. — O rei nem mesmo olhava para Richard, apenas para o globo. — Não somos europeus, nunca fomos europeus, somos ingleses, austríacos, alemães, russos e portugueses.

— Eu... não... posso discordar.

— Sabe qual é a maior dificuldade ao fazer uma aliança estrangeira, Richard? — O marquês negou, fazendo com que o rei finalmente o encarasse. — É manter essa aliança. Em nosso caso, manter a aliança anglo-russa.

Os olhos de Richard recaíram então na Rússia, esse grande e remoto país. Certamente a Rússia era um dos aliados mais valiosos que havia.

— Eu não entendo, meu rei. O que tudo isso tem haver comigo? — Encarando o monarca britânico, Richard exclamou em dúvida. Não houve resposta. — Eu não sou ninguém e meu Niedersieg não é absolutamente nada.

Niedersieg era literalmente um ponto entre a Baviera e a Áustria, e Richard sabia que estava lá apenas por estar acostumado a vê-lo. Ainda assim, o que o rei queria? O valor dele estava em Niedersieg, que não era nada em comparação a Rússia, Áustria, Portugal e a própria Inglaterra.

Soltando o globo, enfim, o rei começou a andar pela sala, deixando assim o marquês ainda mais ansioso e curioso. Por que de tanta enrolação? Porém o soberano parou e voltou-se ao príncipe.

— Todos podemos fazer algo, Richard. E seu Niedersieg é grande o suficiente para lhe permitir uma ação. — Garantia a dignidade de realeza para ele, apenas isso. O rei continuou: — Estamos planejando invadir a Holanda, com a ajuda russa, claro. Os Orange serão restaurados e os revolucionários expulsos. Mas... quem garante que seremos vitoriosos?

— Ninguém. Não existe garantia alguma. — Aproximando-se dele, o rei assentiu lentamente. Deus, o que pensar disse tudo? — O que acontecerá caso o resultado não seja o esperado?

Foi o suficiente para fazer o rei parar abruptamente, talvez pego desprevenido pela pergunta. Porém, fazendo Richard franzir o cenho, o rei sorriu e negou, parecia até mesmo divertido. O marquês andou para trás.

— Não, Bristol, essa não é a pergunta, mas sim: o que não pode acontecer caso percamos? A aliança não deve ser desfeita. — Justo. A expressão do monarca, porém, ficou subitamente séria. Qual a ordem para ele? — Richard, você já ouviu falar de casamento russo?

Casamento russo? Casamento com a realeza russa...? Os olhos de Richard arregalaram e, inconscientemente, ele negou veemente. Por Deus, o que viria disso?

*****

Mesma noite| Hampton Court, Londres

O silêncio na sala azul era profundo, quase sepulcral, nenhum dos três presentes falava nada. Para falar a verdade, a única barreira entre o total silêncio e a completa tristeza era a animada música que Cathrine tocava no piano, tentando ao máximo distrair Robert e Mary. Se bem que o jovem Kendal, andando ansiosamente, parecia o único que precisava ser distraído.

Dando aos cunhados mais jovens um triste olhar, Cathrine negou suspirando e retornou sua completa atenção ao piano, já fazia um bom tempo que ela não tocava Johann Hartmann, nem qualquer outra coisa dinamarquesa ou norueguesa, apenas músicas inglesas ou alemãs, não que houvesse muita diferença.

Outra coisa que também já fazia um tempo, era a espera deles três por Richard e Anne, logo chegaria a hora do jantar e eles ainda não haviam chegado. Era desagradável, de fato, mas claramente os mais impacientes eram Robert e Mary, apesar de Cathrine ser a grávida.

— Imagino que... — Mary até começou, certamente para falar algo sobre os irmãos, porém Anne entrou na sala, finalmente. Toda a atenção voltou-se à princesa, mas nada ela disse, para o descontentamento dos caçulas. — Boa noite, Anne.

— ... Boa noite, Mary. — Anne respondeu sem entender. Porém logo em seguida ela deu os ombros e, pegando um livro numa mesa, sentou-se à frente dos irmãos. Indiferente? A pergunta dela mostrava que com certeza: — Algum problema?

— Tirando o fato de você e Richard estarem atrasados para o jantar, não. — Nunca antes Cathrine ouviu tanta ironia e irritação saindo da boca de Robert. Anne, porém, impassível, apenas deu os ombros e voltou ao livro. — Isso é um desrespeito, um descaso conosco! Nós sempre jantamos às 11 horas, Anne!

— Então ainda cheguei na hora certa. Por que você não olha o relógio e vê que horas ainda são? — A irritação começou a surgir na voz da princesa mais velha. O relógio marcava 10:58, para a irritação de uns e satisfação de outros. — Muito bem, Robert. Lembre-se que ninguém luta comigo e sai...

— Não vamos brigar por tolices, por favor. Com certeza Anne teve seus motivos, Robert. — Tomando as rédeas da situação, o que era amedrontador, Cathrine falou e encarou o cunhado, que virou arrogantemente o rosto. A marquesa suspirou e voltou-se a cunhada mais velha. — Não estou certa, Anne?

Inicialmente não houve resposta. Porém, para a confusão de Cathrine, Robert arregalou os olhos e Mary negou com uma careta. Mas o que...? A marquesa franziu o cenho, apenas para logo em seguida assustar-se com Anne fechando fortemente o livro que tinha conseguido e... encarando-a furiosamente?

— Eu já não lhe disse que odeio quando tentam controlar minha vida, Cathrine!? — Mas... ela não... a única ação de Cathrine foi negar veemente, sem conseguir falar palavra alguma. Anne, porém, não parecia ter pena alguma da cunhada. — Meu vestido rasgou e tive que trocar de roupa. Satisfeita agora, minha senhora?

Fitando Anne em silêncio, sem nada conseguir dizer, Cathrine virou para frente, em direção ao piano, e então voltou a tocar. A princesa, percebendo o que fez, simplesmente abriu o livro. Isso... não era nada justo, Cathrine queria apenas ajudar, manter a paz, e era assim que Anne agradecia?

Meses haviam passado, coisas haviam mudado, mas o principal continuava o mesmo: Anne ainda controlava a vida deles, a vida dela! Era tão injusto! Cathrine fechou os olhos ao tocar, pelo menos as teclas poderiam ser facilmente submissas. O silêncio retornou à sala azul, só que dessa vez um terrível.

A concentração da marquesa estava totalmente no piano, mas isso não a impediu de escutar uma breve conversa dos irmãos. Mary comentou que Richard não iria gostar quando soubesse, já Robert acusou Anne de inveja e gemeu dolorosamente em seguida. No final, Anne disse que o assunto estava encerrado. Tudo aconteceu como sempre acontecia.

O silêncio retornou, mas novamente teve vida curta. O relógio bateu 11 horas e o assunto era apenas uma: onde estava Richard?

— Será que não podemos começar sem ele? — Sentando num sofá e começando a balançar freneticamente as pernas, Robert perguntou.

— Claro que não, seria uma descortesia! — Nem se dando ao trabalho de encarar o irmão, Mary respondeu categórica. Agora essa conversa Cathrine escutava com atenção. — Richard chegou agora pouco de Buckingham House, então ele deve estar se arrumando.

— Agora pouco? Faz três horas! — Inconscientemente, Cathrine assentiu com a exclamação de Robert.

Nenhum deles viu quando Richard chegou, mas todos eles foram avisados que ele havia chegado e estava no escritório, em dado momento ele subiu então aos próprios aposentos. Parando um momento de tocar, Cathrine suspirou cansada.

— Queria tanto saber o que ele conversou com o rei. — Não houve resposta da parte dos irmãos Bristol, mas Cathrine sabia que eles pensavam o mesmo. A marquesa voltou a tocar, estava chegando ao fim. — Será alguma notícia da guerra?

Anne, Robert e Mary se entreolharam e ficaram calados, tentando poupá-la de uma ansiedade desnecessária. Oh Deus, que não fosse a guerra, por favor! Que não fosse a Dinamarca! Cathrine não sabia se iria aguentar caso algo ruim tivesse acontecido em casa. Ou talvez... fosse algo... a marquesa fechou fortemente os olhos.

Que Richard chegasse logo, por favor, Deus! Chegando aos últimos acordes da música, a marquesa abriu novamente os olhos e, suspirando, tentou colocar sua completa atenção nas teclas. Mas... eram tantos pensamentos, pensamentos esses que não poderiam nunca virar uma preocupação. Oh Deus! Acabando a música, Cathrine fitou fixamente a porta, desejando intensamente que ele entrasse, até que... Richard entrou.

— Oh, então todos já estão aqui. — Parando logo na entrada, o marquês comentou esse fato inútil. Não recebendo uma resposta, ele adentrou. — Eu me atrasei?

— Você chegou, isso que importa. — Richard, aproximando-se primeiramente de Cathrine, beijou a bochecha da esposa. A marquesa sorriu, assim como corou, mas logo acrescentou: — Mas esse é um pensamento meu, não dos outros.

— Ficamos muito gratos pela sua consideração, Cathrine. — Robert imediatamente falou, bastante irônico, ganhando um suspiro cansado do irmão mais velho. O jovem Kendal, porém, levantou e cruzou os braços. — Estamos esperando faz horas!

— Então não será problema algum esperar mais dez minutos. — No mesmo instante que Anne disse isso, antes mesmo do príncipe fazer qualquer objeção, Mary puxou o irmão de volta ao sofá. Por Deus! No entanto, Anne retornou ao marquês. — Qual a sua desculpa?

— Desculpa? — Franzindo o cenho, Richard repetiu ao aproximar-se dos irmãos.

— O atraso. — Como se fosse óbvio, pois era óbvio, Robert respondeu insatisfeito. — Foi Niedersieg? Ou talvez Goldenhall, como eu bem avisei.

— Está passando dos limites, Robert. — Nem mesmo tirando os olhos do livro, Mary comentou melodiosa. — Richard tem os assuntos dele, então não tente interferir.

A única resposta de Robert foi cruzar os braços e virar o rosto, como sempre fazia nesses momentos. Negando num suspiro, Cathrine voltou a tocar o piano, só que agora outra composição de Johann Hartmann. O silêncio ameaçou instaurar-se entre eles, apesar de Richard parecer bastante ansioso, até que...

— Mas vocês têm razão, é necessário uma explicação. Foi a família imperial russa. — Agora Richard ganhou a atenção de todos, assim como os mais confusos olhares. O marquês franziu o cenho. — Por que desses olhares? São nossos primos, e do rei também.

— Primos distantes, muito distantes! — Quase que gritando, Anne relembrou desse fato. Cathrine olhava curiosa para tudo isso. — Podemos até ser parentes do imperador Pavel, tanto por Peter III quanto Ekaterina, a Grande, e também da imperatriz Maria Fyodorovna, mas isso não significa nada.

Isso era verdade, poderia-se facilmente afirmar que todas as casas governantes europeias compartilhavam algum tipo de parentesco, porque seria verdade, mas isso não significava nada. A grande Rússia... Cathrine pensou e negou, ela nunca realmente havia pensado nesse império, parecia apenas um lugar distante e remoto.

— Devo concordar com Anne, Richard. Não existe razão para você pensar na Rússia. — Parando de tocar, agora definitivamente, Cathrine afirmou calmamente. O marquês não reagiu, fazendo ela inclinar a cabeça. — Ou será que tem?

— De fato, Cathrine, você está certa. — Em que sentido? Todos os olhares focaram novamente em Richard, que sorriu tão amplamente que era visível a falsidade. — O que você acha das grã-duquesas russas, Robert?

O silêncio instaurou-se na sala azul, mas dessa vez um silêncio terrivelmente tenso. A atenção voltou-se ao estóico Robert, que nem mesmo conseguia falar. Até que... o príncipe caçula levantou abruptamente do sofá e, apontando para Richard, aproximou-se ameaçador do irmão.

— Não tente, nem mesmo pense, em me juntar com uma grã-duquesa russa. — Robert ficou ameaçadoramente perto do irmão, porém a diferença de altura entre ele e Richard fazia essa situação risível. — Entendeu, Richard? Lembre-se que elas são ortodoxas.

— E Cathrine é luterana...

— O que não me excluiu da linha protestante. — Que isso ficasse muito bem claro. Católicos, protestantes, incluindo os luteranos, e ortodoxos eram três coisas completamente diferentes.

— E que importância isso tem? — Cathrine sentiu-se ofendida com essa fala do marido. Robert negou e afastou-se, porém Richard não desistiu: — Não podemos desprezar uma pessoa simplesmente por causa da religião dela.

O jovem Kendal riu desdenhoso do irmão. Havia uma certa hipocrisia nas palavras de Richard, afinal, entre a realeza havia sim um certo preconceito de religião. Robert voltou-se novamente ao irmão, apontando.

— Não me importa! Jamais irei casar com uma grã-duquesa russa, ou qualquer outra Romanov! — Jamais era uma palavra muito forte, mas Robert realmente parecia certo do que dizia. Respirando fundo, Kendal, porém, acrescentou: — O nariz daquela família é tão... arrebitado!

— Oh Deus, Robert! Não posso acreditar nisso! — Mary, não conseguindo mais segurar, riu divertida com o nojo do irmão. Robert cruzou os braços, enquanto Cathrine negou. — Eu me casaria com um nariz de porco se ele fosse bonito.

— Você casaria com um porco se ele fosse bonito! — A resposta da princesa caçula foi um sorrisinho debochado. Robert retornou ao irmão. — Não vou casar com russa alguma!

Dito isso, Robert deu as costas e voltou ao sofá, sentando de braços cruzados. Santo Deus, mas que reação explosiva.

— Eu nunca disse que você casaria, apenas toquei no assunto. — Suspirando cansado, Richard falou e sentou numa poltrona. Ninguém disse nada, então ele acrescentou: — Ninguém aqui vai casar, não esse ano.

O silêncio, agora um até que agradável, instaurou-se entre eles. Parecia até que o jantar havia sido esquecido, ou talvez estivessem apenas esperando pelas 11:30. Nesse silêncio, todos os irmãos pegaram um livro para lá, menos Cathrine, a única ação dela foi encará-los e depois focar no livro de Mary.

— Sobre o que é seu livro, Mary? — Por um momento a princesa caçula ficou sem entender, então Cathrine perguntou novamente: — Qual o assunto?

— Ah, sim, perdão. É sobre Andrômeda e Perseu. — Mitologia grega... Cathrine franziu o cenho, mas isso não estava fora de moda? — É tão impressionante essa história, Andrômeda estava pronta para morrer pelo povo, ser devorada pelo Ceto, mas Perseu a salvou.

— Parece até nossa história de vida, só que sem Perseu, claro. — A resposta de Anne foi tão seca, assim como verdadeira, que o assunto morreu naquele momento.

Não demorou muito e deu realmente 11:30, então todos saíram para a sala de jantar, finalmente. Robert e Mary foram praticamente correndo na frente, com Anne gritando logo atrás e Richard e Cathrine foram logo atrás, de braços dados. Mas... havia algo que ela queria saber.

— Qual o seu objetivo com aquela pergunta, Richard? Planeja casar Robert?

— Eu não pretendia nada. Era apenas uma curiosidade. — Richard respondeu calmamente, mas não o suficiente para fazê-la acreditar. Então o marquês sorriu. — É verdade, Cathrine. Ainda não quero casar meus irmãos.

— Mas a situação pode mudar a qualquer momento. — Afinal, um casamento é a melhor forma de firmar uma aliança entre dois países. Richard não respondeu, confirmando o que ela disse. — Sei que pode.

— E se mudar eu irei falar. — Era uma promessa? Parando onde estava, Cathrine encarou o marido.

Richard sorriu, beijou a mão dela e depois... os lábios dela. Cathrine sorriu amplamente, parecia realmente uma promessa. Os dois então se afastaram e continuaram o caminho... porém... Cathrine não sentia algo bom vindo.


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Notas finais do capítulo

* Vamos iniciar pelo início? Devo confessar uma verdade: eu nunca li "Clarissa", nem "Pamela", ou qualquer outro livro escrito no século 18, mas eu conheço bastante esses livros. Deixando tudo mais "orgânico", eu fiz dessa apresentação na primeira parte uma criação de Amélia, ou seja, tudo saiu da cabeça dela. Será que foi bom?

* Falando em "Clarissa", o que vocês, leitores, acharam da minha Amélia? Eu tentei criar algo completamente diferente de qualquer outra Amélia, não uma princesa inocentemente e muito amável. Ela era a filha favorita de George III, e tinha muita consciência disso. Também é muito interessante mostrar como a família real, apesar de amorosa, também era cheia de intrigas e divisões, embora tenhamos conhecimento disso acontecer mais entre os filhos do rei.

* Para quem não sabe, o rei George III e a rainha Charlotte eram muito interessados pela ciência e artes. O rei sempre mostrou um grande interesse pela astronomia e agricultura, chamavam ele de "o fazendo George". Quanto a rainha Charlotte, ela ajudou muito para que os Jardins do Kew fossem o que são hoje: um dos maiores jardins botânicos do mundo. Ela fazia questão que os exploradores na Ásia, América e Oceania trouxessem muitas espécimes de plantas. Sem contar que a rainha cantou uma ária com Mozart, que ainda dedicou uma composição para ela.

* A segunda parte: definitivamente, sem nenhuma dúvida, a frase: "A Europa nunca foi unida. Somos uma amálgama de tradições, ideias e culturas. Nossa história não é feita de união, mas sim de conflitos e cooperação, uma constante luta pelo poder. Não somos europeus, nunca fomos europeus, somos ingleses, austríacos, alemães, russos e portugueses." é a melhor fala que eu já escrevi, ouso dizer que perfeita. Ela simplesmente resume em poucas palavras tudo que é a Europa. Simplesmente, perfeita.

* Foi uma grande dificuldade encontrar um famoso compositor da Dinamarca, tanto que Johann Hartmann não é dinamarquês, mas sim alemão. Nesse momento da história da música na Dinamarca, os alemães tinham uma grande influência na música, como tinham em todos os lugares, mas vemos poucos compositores realmente dinamarqueses. Johann Hartmann foi professor de música de Christian VII, então ele teve algum contato com Juliane Marie e o príncipe Frederik, por isso também escolhi ele.

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