A Melodia do Princípio escrita por Ton D


Capítulo 2
Capítulo 1 - A Flautista




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Era por volta das 19 horas quando ela acordou sobressaltada, imersa nas trevas que eram seu quarto àquela hora. Esta fora a quinta noite consecutiva em que ela acordava aterrorizada pela veracidade das imagens que lhe vinham durante o profundo sono. “Sempre o mesmo sonho”, pensou ela enquanto afastava os louros e longos cabelos com a mão trêmula de emoção do rosto. Catherine era uma mulher diabolicamente linda, aparentava ter cerca de 25 anos, estatura baixa, cerca de 1,65 metros. Dona de uma pele mortalmente branca e lisa, seria facilmente confundida com uma perfeita estatueta se não fossem por seus olhos, olhos tão verdes e vivos que seu brilho lembravam finas esmeraldas.

“Sempre o mesmo sonho”, pensava aflita Catherine enquanto apoiava a testa em sua mão em um ato de intensa reflexão. Mas sobre o que era o sonho? Algo que havia lhe ocorrido? Sim. Era sobre o fim de sua infância, o dia em que conhecerá Christian. Ela era apenas uma menina de não mais do que 13 ou 14 anos, não lembrava ao certo. Lembrava-se de que naquele dia ajudara a mãe com os afazeres de casa. Limpara a imunda e simples casa em que morava na época, dois quartos, uma cozinha e nada mais. Limpara após as constantes ameaças da mãe a maldita e mal-cheirosa latrina, aonde se sujara completamente. Ela se lembrava do terror que aquele lugar sempre lhe causou. O cheiro de merda misturado a suor de semanas mais o barulho das moscas que se reuniam aos montes para apreciar aquela maravilhosa obra de arte feita por vários renomados escultores com ótimos intestinos. Realmente, uma lembrança e tanto, mas não fora sobre isso o sonho, com certeza não. Por mais que aquele fétido lugar parecesse aterrorizante para uma garotinha, havia ocorrido algo muito pior naquele dia. Mas o que?

Fechando os olhos com esforço, Catherine tentava relembrar o que mais ocorrera de importante naquele dia enquanto apertava com delicadeza a cabeça com seus brancos e finos dedos. Lembrou de ter limpado a latrina, sim, reunira coragem suficiente e limpara a maldita latrina. Tomara um demorado e exaustivo banho enquanto lavava as roupas da família que carregava em uma cesta de vime em um riacho que cortava a floresta senhorial a qual fora dada a seu pai a tarefa de guardar. Demorara quase duas horas para se livrar do maldito cheiro da latrina. Enquanto esperava suas roupas secar, recostar-se-á junto às raízes de uma árvore, onde por pouco não adormecera. Levara a cesta de roupas recém lavadas de volta para casa e observara o pai partir em direção a pequena e tortuosa vila. Acima da vila erguia-se sobre um pequeno morro, o grande castelo do senhor daquelas terras. O castelo, sempre tão alto, com suas torres de pedra gélida e janelas que mais pareciam olhos á espreitar a toda a vila enquanto sua sombra se projetava por toda a terra ao nascer do sol, como a sombra de um terrível gigante. Sim! O castelo! Havia algo no castelo que causaria durante tantos anos o mesmo terrível pesadelo naquela pequena garotinha que via seu pai se afastar cada vez mais? Não, não erá isso, mas era quase.

Catherine podia sentir o corpo com o qual passaria todas as noites até o dia de sua derradeira morte tremer levemente, desde os pequenos dedos dos pés até sua loura cabeça. Estava perto, tão perto que quase podia sentir a memória relutante de anos atrás. Forçando um pouco mais o aperto de sua mão sobre a cabeça e fechando mais os olhos em uma atitude de concentração, ficou surpresa quando seus pensamentos escaparam por entre seus vermelhos e macios lábios:

- O que havia no castelo?

A voz que pronunciou essas palavras era tão trêmula e carregada de medo que Catherine abriu instintivamente os olhos e olhou ao redor do quarto. Aquela voz era tão diferente de sua habitual doce voz cheia de confiança, que por um milésimo de segundo pensou que havia alguém dividindo não só o quarto, mas os pensamentos com ela. Mas o que viu foi somente o mesmo velho quarto no qual passara anos dormindo o sono dos mortos, o sono que chegava toda vez que o primeiro raio de sol se fazia visível no horizonte. O quarto era a apoteose do luxo e da arte. A começar pela cama, feita da mais bela madeira trabalhada da época com detalhes esculpidos em puro ouro. O dossel, as cobertas e o travesseiro eram feitos de seda roxa, um tecido caro e do qual poucos nobres tinham o direito de desfrutar. As penas que revestiam o interior do travesseiro eram de cisnes, somente o mais belo e gracioso para minha pequena Catherine, obrigado, dizia Christian. A mobília consistia em uma pequena mesa, um suntuoso armário, onde vestidos que fariam até mesmo rainhas mortais chorarem de inveja eram guardados, uma elegante cadeira de espaldar reto, um lindo biombo com pinturas orientais e uma estante com livros cuidadosamente guardados e organizados de cima a baixo, com exceção as duas últimas prateleiras superiores. Na prateleira superior havia uma magnífica e linda flauta guardada por uma redoma de vidro. A peça era feita de uma fina madeira que parecia se adequar muito bem aos dedos e a boca de Catherine, enquanto que na prateleira logo abaixo, ficava um bastão de ouro, lindamente trabalhado, com cerca de 1.80 metros. Era umas das paixões de Catherine, que nunca havia visto graça ou beleza na luta, até que vira um mestre na luta de bastões, modalidade que ela logo se tornou especialista.

Enquanto observava o quarto, Catherine se levantou. Perdera todo e qualquer inspiração que aquela torrente de memórias havia lhe proporcionado. O fio havia se perdido, a conexão desfeita. Por hora, a memória levara a melhor naquela disputa. Catherine vestia uma linda camisola longa de uma seda verde que combinava perfeitamente com a cor de seus olhos. A barra da camisola roçava levemente o chão em uma dança hipnótica a cada passo de seus pequenos pés. Após escolher e vestir um entre vários de seus vestidos (um vestido vinho com leves bordados em dourado) e um espartilho dourado por detrás do biombo, Catherine calçou uma sapatilha negra com interior vermelho e se dirigiu para a janela que ficava um pouco acima de sua mesa.

As janelas eram todas trancadas e bloqueadas com pesadas fasquias de madeira que com um certo esforço, se abriam para dentro, permitindo a entrada de luz pelo vitral. Sem mostras aparentes de esforço, Catherine puxou as pesadas fasquias como quem puxa uma pena, permitindo a entrada de uma linda luz lunar, que refletida nos vitrais, dava ao quarto uma coloração digna de uma catedral de arquitetura gótica. Aquela era a única luz que entrava no quarto de Catherine. O nascer do sol talvez fosse a única coisa da qual Catherine sentisse falta. Uma beleza única, negada a ela. Pensando nisso, deixou-se encostar nas frias pedras da parede ao lado da janela. Olhando para a estante, sentiu um impulso de tocar sua flauta, sua companheira fiel nos momentos de súbita inspiração e melancólicos como aquele, cozinhado com um despertar assustado, temperado com sonhos tão terríveis que eram impossíveis de se lembrar e memórias até então esquecidas aos montes.

Com a doce flauta em sua mão, Catherine lembrou-se de Christian, aquele homem que lhe salvara, lhe criara, ensinara e dera tudo para e por ela. A música era uma das paixões de Christian e fora sua porta de entrada na vida daquele homem se é que se podia chamar alguém como Christian ou ela de homem ou mulher. Se não fosse pela sua flauta, ela jamais teria conhecido Christian. Ainda lembrava-se de estar tocando flauta para aquele estranho que a observava por entre as sombras das árvores, sabendo que ele a observava e apreciava seu dom, algo que ninguém jamais fizera em toda sua vida até aquele momento…

- A FLAUTA!!! Era isso!!! – gritou subitamente Catherine para si – A minha flauta, não está que Christian me deu, mas a antiga, a minha primeira flauta!

Ela lembrou. Uma terrível tontura e sensação de moleza se abateu sobre Catherine. Seu corpo tombou para um lado com uma estranha fraqueza enquanto sua cabeça girava. Em um último ato de consciência, ela se apoiou em uma das paredes com as costas, e se deixou deslizar até o chão gelado, onde desmaiou.

 

~~~

 

Ela estava tocando flauta para aquele estranho, Christian. Era a noite em que tivera de limpar a latrina, ela só tinha 12 anos e o mundo todo parecia conspirar contra ela. Seu pai a maltratava em momentos de bebedeira. Sua mãe pouca coisa fazia para lhe defender em seus momentos de lucidez, pois também era alvo da ira do pai. Desde o acidente que lhe tomara parte dos movimentos da perna esquerda, o pai perdera seu emprego como guarda do feudo e fora designado para a monótona tarefa de guardar a floresta senhorial. E é claro, a filha e a mulher eram as culpadas de tudo, seu acidente, da vida miserável em que viviam e das piadas que todos faziam dele. Mas mesmo desprezando aquela vida com todas as suas forças, Catherine não culpava os pais, ela os amava como toda criança inocente amaria os pais, sendo eles os canalhas que fossem. Ela não podia tocar flauta na presença do pai, ler ou mostrar algum sinal de vontade própria. Mulheres eram feitas para ter filhos, cuidar da casa e de seus maridos, era o que dizia seu pai, tinham de ter absoluta obediência para com o marido.

Seu pai chegara sem ela o ver enquanto ela tocava flauta distraidamente ao invés de dar alimento aos porcos e galinhas. O pai a arrastava para dentro de casa com uma mão enquanto o estranho lhe dava as costas e adentrava na floresta. Ele não viera lhe salvar? Chamar-lhe para uma vida mágica e feliz longe daquele inferno onde ela era obrigada a ser burra, casar-se cedo, ter quantos filhos fossem possíveis e limpar latrinas com um sorriso de orelha a orelha? Então porque estava indo embora, justo agora quando ela mais precisava de sua ajuda?

Ela sentia as pedras e os grãos de milho roçando e cortando suas pernas. Gritava de dor, pois seu pai a puxava pelos cabelos. Enquanto a arrastava, ele dizia palavras a esmo e dava profundas fungadas, marca registrada de suas bebedeiras. Algumas dessas palavras eram totalmente sem sentido, outras, seriam melhores se fossem como as primeiras.

- Filha ingrata! Sempre me desrespeitando. Tocando esse pedaço de madeira inútil e lendo essas baboseiras… SNIFF! Maldito seja o padre que lhe ensinou a ler! Por sua causa sou motivo de chacotas nas ruas… SNIFF! Meu acidente… SNIFF! O senhor me despreza… SNIFF! Depois de tantos anos de serviço leal…

A cada palavra que ele dizia, mais lágrimas derramava e mais dor ela sentia. As pedras lhe perfurando a pele e o cabelo sendo puxados não eram nada se comparados com a dor que aquelas palavras causavam. Ás vezes as palavras tem um poder sobrenatural sobre nós, seja para o mal ou para o bem. Em sua mão direita, ela agarrava com força a sua flauta. Esculpida por ela, era tosca e o som não saia com exatidão, mas era melhor do que nada, e nas piores ocasiões, a flauta era seu modo de extravasar os sentimentos reprimidos.

Sentindo uma enorme pressão em seus cabelos e uma dor que lhe fez refletir melhor sobre a idéia do cabelo e as palavras, ela foi atirada contra a parede da pequena casa. Sua cabeça bateu com força nas toscas pedras que formavam toda a casa, aumentando ainda mais a dor na cabeça, e para ajudar, agora sua visão estava turva e as coisas rodavam. Viu fracamente o pai que se abaixava e dizia palavras que ela ouvia, mas não faziam sentido. Sentia algo morno escorrendo pelos ombros indo em direção as costas. Sentiu escorrendo pelo seu rosto, boca e olhos. Era vermelho e tinha um gosto diferente, mas era gostoso. Via o pai mostrar-lhe algo em suas mãos enquanto ela ia perdendo as forças e sentia a mão soltar a flauta levemente. O pai parecia estar sorrindo debilmente, era difícil dizer com todas aquelas luzes e névoa piscando em sua visão. O bafo dele sempre fora terrível, mas dessa vez ela sentia o cheiro do álcool em excesso como nunca sentira, e o cheiro fazia com que ela fica-se cada vez mais tonta. Ouviu alguém gritar na distância, uma mulher… seria sua mãe? Sim, era sua mãe. Ela berrava com o pai e apontava para ela. O pai apontava para ela também e logo depois para o que trazia na mão. Agora ela conseguia ver, era uma caixa de madeira. “Uma caixa de madeira, será um presente para mim?”, pensou debilmente antes de desmaiar.

Ela estava flutuando… era quente (Quente? Aqui está uma fornalha!) e agradável, um pouco escuro (Escuro? Não será porque você está com os olhos fechados?), nada de mais. Mas o melhor de tudo, ela estava sozinha (Olhe ao seu redor! Abra os olhos e veja todas essas coisas!) e não havia nada, somente o silêncio (Ouça! Eles estão berrando e cruzando espadas, não ouve?). Uma pequena voz ficava lhe martelando ideias absurdas, mas ela não lhe dava atenção. Ela estava feliz. Com certeza o homem da floresta a salvara, mas do que? Do pai que havia lhe batido? E porque o calor parecia estar aumentando? Da discussão do pai e da mãe enquanto aquele líquido vermelho (É sangue!!! Está jorrando!!! O chão!!! Olhe o chão, esta rubro!) que escorria até seus olhos? Porque o silêncio estava sendo destruido pelo barulho e por vozes? O que são esses gritos e todo esse BLÉM, BLÉM? Mas e a flauta? Ele havia salvado a flauta também? Ela também queria a flauta. E esse cheiro? Parece… não, não pode ser… Mas e a caixa? Que caixa era aquela? Porque o pai parecia tão feliz com a caixa? Esse cheiro! Não sai! Agora parece até que consigo sentir o gosto no ar… mas não pode ser…

Então ela sentiu o borrifo de algo morno sobre a face. O gosto era o mesmo daquele líquido que escorria pelo seu rosto, mas ao mesmo tempo era diferente. Ouviu os gritos, o barulho de metal batendo em metal, o crepitar de algo queimando. Ouvia uivos, sentia o calor infernal que fazia… Começou a descer confusa e desorientada daquele lugar maravilhoso, e quanto mais descia, mas pesada se sentia, como se o corpo pesasse uma tonelada. Ela voltou à realidade… Tinha de abrir os olhos, mas tinha medo do que iria ver, queria voltar para aquele mundo escuro, sossegado e silencioso. Ouviu um grito, o grito que tanto ouvira na infância. O grito de sua mãe enquanto seu pai a batia, mas será que o pai estaria fazendo todo aquele barulho enquanto esmurrava a mãe? Nesse momento, ela se forçou a abrir os olhos, e gritou de terror com o que seus olhos lhe mostravam.

 

~~~

 

No mesmo momento em que a menina Catherine abriu os olhos e gritou em sua pequena e humilde casa na orla da floresta senhorial de um pequeno feudo qualquer no século IX, a mulher Catherine abriu seus olhos e gritou com as costas apoiadas na parede fria de seu luxuoso quarto no coração da Inglaterra da metade dó século XI.


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Notas finais do capítulo

Na minha modesta opinião um pouco melhor que o prólogo, com um pouco mais de descrição, uso de flashback (amo eles, sorry, não consigo resistir) e um pouco de ideias que saem daquela voz pequenininha lá no fundo da sua cabeça quando você menos quer ouvir ela, ou seja, a neura.
Resumo tosco do capítulo: "Luxo, beleza, arte, dores de cabeça, desmaio, passado pobre, muita merda e pais bêbados. Juizado de Menores? Não, só um grito de fim."
A medida que a história for progredindo, posto novos capítulos aos interessados, e claro, aos jogadores, outros NPC's vão aparecendo. See ya!



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