Senhor do Tempo escrita por otempora
Laços
O médico acabara de fechar a porta atrás de si. As novidades que havia anunciado num tom triste não eram boas. Ele abraçara Sophie por um instante, tentando conter as lágrimas.
- Sinto por não poder fazer muito mais. - dissera com evidente sofrimento em seu rosto.
O estado dela havia piorado. Senti-me mal, porque ela precisava sofrer daquela maneira? Ela suspirou, deixando seus ombros caírem.
- Acho que isso já era esperado. - forçou um sorriso.
- Sophie... eu... - ela não sabia o quanto eu sentia.
- Não tem... importância. - respondeu se afastando de mim.
Não sabia o que dizer. Ela pegou um livro ao seu lado, notei como ela não virava as págianas com a comum rapidez. Os dedos moviam-se hiperativos pelo cabelo embaraçado. A irritação era evidente em seu rosto. Ela bufou, desistindo de ler. Abraçou as pernas e apoiou o queixo no joelho.
Hesitando, sentei-me a sua frente, ergui os dedos acariciando seu rosto. Os braços dela tremiam. Desejava dizer alguma coisa, buscar alguma memória de felicidade que pudesse aliviar a tensão de seus ombros, não havia nada, somente o vazio do silêncio, a pequena distância que nos afastava. Sua respiração atingiu minha pele trazendo-me o pensamento distante de recuar. Sophie fechou os olhos um vinco se formou entre suas sobrancelhas. Admirei suas feições, o nariz arrebitado, as bochechas salientes, a palidez contrastando contra o negrume de seus cabelos, a boca com as comuns rachaduras vindas do hábito de morder os lábios.Voltei minha atenção para os olhos que se abriram repentinamente. "Você é real?", desejei perguntar.
Somente sorri involuntariamente ao notar que estava um pouco mais serena, ignorando o incômodo aperto que subia por minha garganta.
- Quer que a distraia?
Assentiu, deixei minha mão cair.
- Eu sou um anjo.
Ela ergueu o rosto com interesse.
- Sério?
- Sim, eu sou o seu anjo da guarda. - suas sobrancelhas se ergueram. - Não acredita? Eu sei tudo sobre você.
Sophie riu com ceticismo. Pensei em algo que ninguém mais soubesse para lhe provar.
- Quando você tinha quatorze anos, costumava correr no parque sempre durante a tarde, porque não havia quase ninguém lá. - sorri. - Um dia, você entrou no meio das árvores e tropeçou. Ficou estendida no chão durante um longo tempo. No dia anterior havia dado seu primeiro beijo. O que não foi uma situação muito boa. - ela riu brevemente, as bochechas coradas. - Mas não saía de lá. Você fechou os olhos. E eu fiquei muito preocupado. Depois você se levantou e foi para casa. Pelo que me lembre, não contou isso para ninguém.
- Você estava lá? - cobriu a boca com as mãos, num reflexo de espanto.
- E também...
Sophie colocou um dedo em minha boca. Fiquei espantado com seu movimento, prendi a respiração.
- Eu sempre estive ao seu lado. - disse baixinho. Havia um fervor que não pude controlar em minha voz.
- Mas eu não sabia disso. Por que...
- O que foi?
Suas mãos caíram moles junto a seus pés. De repente, ela estava muito interessada em suas meias. Chamei seu nome, mas ela só balançou a cabeça. Uma lágrima escorreu por seu rosto, tive vontade de levantar e abraçá-la, mas ela permanecia distante, com o seu olhar estatico, perdida dentro de si mesma. A ação ficou presa dentro de meu pensamento, o silencio se aprofundando.
- Sophie. - o que estava acontecendo comigo? Estranhei a forma pungente com que disse seu nome. - Quer que a deixe sozinha?
Senti seu toque cálido junto a minha mão.
- Todas as pessoas possuem anjos da guarda?
- Não.
Seus olhos encontraram os meus. Ela mordeu o lábio inferior, pensando.
- Não precisa me falar se não quiser.
- Eu vou.
Aguardei um momento e apertei seus dedos.
- Por que agora?
- Agora?
Ela assentiu. Acompanho seu gesto, com o esclarecimento do que ela queria dizer. Do porque de ela nunca ter me visto antes.
- Eu não sei, Sophie.
- Não importa... de qualquer maneira, fico feliz que tenha aparecido.
Sorri, não pude evitar.
- Significa muito para mim. - respondi, ponderando as palavras.
Ficamos calados. A chuva começou a tamborilar no prédio. As gotas molhando o lençol. Permanecíamos imóveis em uma letargia. Ela segurou minha mão enquanto ofegava. Os olhos arregalados.
- Houve... - ela se atrapalhou no meio do raciocinio e balançou a cabeça. - Eu senti você perto de mim...
Isso não era possível! As coisas ocorriam de maneira tão inexplicável.
- Foi no dia... do enterro do meu pai. Tenho certeza que era você, Gabriel! Eu estava no meu quarto e eu senti alguma coisa em meu coração. Foi quase como... Diga! Era você não era?
Sua respiração estava ofegante e eu desejava que ela se acalmasse um pouco. Revivi as memórias daquele dia, o cemitério com o seu negrume permanente, mesmo em dias de sol; com anjos chorando enquanto murmuravam canções, lamentando por seus protegidos. Debruçados como estátuas sobre as lápides. O cortejo composto de militares que saudavam a partida de um amigo. A fuga precipitada de uma garotinha, não mais que uma criança, buscando conforto. Tropeçando na escada. Desabando na cama, o moletom velho de seu pai, seu querido pai seguro entre seus dedos ensanguentados.
Eu a havia abraçado, lembro que ela levantou o rosto inchado, como que procurando algo. A respiração se entrecortou, o choro, foi aos poucos se amainando até que ela cedeu ao cansaço dos dias passados. Sophie adormecera em meus braços.
Assinto lentamente. Sophie se deita, permitindo que a chuva toque seu rosto, acariciando-o. Num gesto impensado, limpo a água com a ponta dos dedos.
- Eu te amo... - o som fica preso em minha garganta.
A lágrima solitária se mistura as gotas, sem que ela a veja. Fecho o vidro. Sophie permanece com os olhos fechados.
- Fique, por favor... - pede.
Debruço-me para beijar sua testa.
- Eu vou. - prometo.
Seguro seu corpo entre meus braços, cantando a velha cantiga de ninar. A mesma que seu pai cantava.
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