Senhor do Tempo escrita por otempora


Capítulo 2
I talk to the rain


Notas iniciais do capítulo

O ponto de vista do capítulo muda do anterior para esse.



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I talk to the rain - Kajiura Yuki

  Eu me movi, tentando acomodar meu corpo na parede. Pude sentir a chuva acariciando minhas asas do lado de fora. Bufei, impaciente. A garota na cama pareceu notar meu desconforto e lançou-me um sorriso fraco. Tudo nela agora é frágil. A pele se tornara tão pálida, que se misturava aos lençóis. Um gemido baixo escapou de seus lábios e suas mãos apertaram com força o tecido ao seu alcance.

  Aproximei-me da cama rapidamente, sentindo minha energia aumentar de uma maneira perigosa. Encarei seus olhos, que se arregalaram ante minha súbita presença e encontrei traços do sinistro a tocá-los.

  Afaguei sua mão lentamente, afastando a morte de perto dela. Seu olhar se focalizou onde minha mão estava, a qual deveria lhe ser invisível. Enquanto eu deixava energia vital fluir entre nossos corpos.

  Era estranho que ela pudesse me ver. Anjos da guarda não podiam ser vistos por seus protegidos. Era uma das regras que nunca deveria ser quebrada, pois gerava inúmeras catástrofes. Eu a amava e; sabia, mesmo com uma pontada de tristeza, que ela me amaria também. Eu era feito para ela, como sua alma gêmea, toda minha aparência física, meus gostos pessoais, se refletiam no que ela gostava: os olhos azuis, a altivez. Nada disso importava para mim. Meus pensamentos eram voltados para ela. Contudo, isso não mudava o fato de que, nas últimas semanas, quando ela passara a me notar, houve um aumento significativo da minha força, doada inconscientemente por ela, que, a cada segundo se aproximava mais da morte.

  - Não... – ela protestou quando entendeu o que estava eu fazendo. 

  - Sophie. – chamei seu nome. Isso a silenciou.

  Ela arfou, depois retomou a respiração com alguma dificuldade. Apertei sua mão num gesto irrefletido.

  - Não precisa fazer isso.

  - Eu quero.

  Uma expressão estranha tomou seu rosto e surgiu uma breve luminosidade em seus olhos.

  - Obrigada.

  Seus olhos escuros prenderam minha atenção.

  - Durma um pouco. – pedi com a voz baixa. Sophie assentiu, mas não cerrou logo as pálpebras.

  Ela iria sobreviver a essa noite, respirei aliviado. Meu coração se encheu de conforto e tive vontade de beijar-lhe a face, somente para sentir seu rosto durante um mínimo instante. Porém, comprimi esse desejo, afastando-me dela, deliberadamente lento.

  Esperei até que sua respiração se reduzisse a um leve ressonar; olhei uma última vez para ela. Seu corpo estava encolhido de frio, puxei o cobertor que se encontrava aos seus pés e joguei sobre ela. Passei um dos dedos por seu rosto, que agora trazia uma expressão serena.

  - Fique bem. – sussurrei.

  Virei as costas e corri em direção à parede atravessando-a. O vento ricocheteou enquanto fiquei em queda livre. Abri minhas asas em sua máxima envergadura e comecei a batê-las, deixando o prédio do hospital para trás. Chovia, e a água inundava beneficamente meus pulmões, esqueci dos movimentos mecânicos e permiti minha mente vagar até encontrar um pequeno castelo voador.

  A porta se encontrava aberta e um calor convidativo me enxugou completamente enquanto transpunha a soleira. Julian me esperava, os olhos focados na janela. Aguardei em silêncio sua atenção voltar-se para mim. Ele respirou pesadamente e virou a cabeça, o movimento me lembrou uma tartaruga. Sua face antiga encarou-me por um tempo imensurável e pude ver o quanto aquele anjo estava envelhecido, seu amor já morrera há muito e ele somente esperava. Levantou-se, deixando uma ou duas penas para trás, e se pôs a passar os dedos calejados pelos volumes nas prateleiras.

  - Deve parar de interferir.

  Olhei-o com um misto de curiosidade e tristeza, sabia que ele estava certo.

  - Deve deixá-la ir, Gabriel.

  - Eu... – gaguejei, tentando encontrar uma desculpa suficientemente boa, nenhuma me veio. – Eu não posso.

  Seus grandes olhos amarelos, semelhantes a bolas de gude, se viraram para mim e seus dedos pararam de se mover, prendendo-se em um livro. Ele balançou a cabeça.

  - O que aconteceu? – perguntei.

  - Há vinte minutos, o futuro daquela menina me veio. Ela deveria ter morrido. E agora, eu não consigo mais vê-la. Deveria parar de lhe dar energia, ela vai morrer algum dia, quer você queira ou não. – censurou-me.

  Empalideci, porém não ousei responder. Reconhecia a verdade em suas palavras. Julian tirou o pesado livro da prateleira e o levou até a mesa, como a um bebê, acariciando suas letras douradas; Otempora, estava escrito. Ele procurou uma página e citou:

  - “E ela se fora, não havia outra palavra para descrever. E somente era necessário mais tempo. Tempo, no qual se perde, no qual se desejam acrescentar mais horas, mais anos; tempo que se quer fazer andar mais rápido em sua ânsia. O qual cedo ou tarde se esgota e é irreversível. Não se pode tomar de volta o que já se esvaiu, vai contra a ordem natural das coisas. Porém, ele a queria de volta. Queria que ela vivesse eternamente, queria ouvir de novo seus suspiros enquanto dormia. Desejava sentir sua pele e o perfume que emanava dela. Somente ficar para sempre perto de seu amor. Agarrou-se mais ao corpo morto de Viviane, gritava desesperadamente, seu lamento foi sentido até por aqueles que não podiam vê-lo. Os animais sentiram medo, pois essa lamúria, mesmo sem saberem, trazia uma mensagem de morte.

  “E era um ínfimo desejo que faria o coração dos amantes bater novamente. E os assassinos riam, discutiam o que poderiam fazer com o corpo, o que seus torpes pensamentos poderiam fazer para humilhá-la mais ainda. Ignorando, em sua insensibilidade, que seu assassino se aproximava para trazer vingança.

  “Não se pode voltar o tempo. Mas ele o desejava tão ardentemente. Lembrou-se das palavras distantes que diziam que cada plano em que se pensa é uma pequena prece ao Senhor do Tempo.

  “E ele era o Senhor do Tempo, podia destruir montanhas com um acelerar, podia fazer retornar as eras glaciais se desejasse. E possuía a ira para aniquilar todos os seres da face da Terra.”

  Eu já havia lido o livro mais vezes do que poderia contar. E não acreditava verdadeiramente no Senhor do Tempo, as lendas mencionavam que ele havia se retornaria quando os anjos estivessem realmente necessitados. Ele havia se recolhido em sua tristeza, em eterna lástima pela perda de sua amada mortal, causando um desastre ao tentar reverter a situação.

  - Entende-me, Gabriel? – Julian perguntou, se voltando para mim. Tive vontade de zombar dele, mas sabia que ele estava preocupado com o que pudesse acontecer. Julian sempre cuidara de mim.

  - Ainda esta preso a essa teoria?

  - Ela é minha vida.

  - Ela também é minha vida. – falei, referindo-me a Sophie, apesar de ser em um tempo longínquo Julian também amara, agora, lhe restava somente uma sombra fraca de vida.

  - Não é a mesma coisa. Fomos criados por esse princípio. O mundo está se transformando, há medo demais, todo o tempo. Seria muito fácil para o mal se apoderar desse planeta. É preciso ter a fé de que algo nos salvará se somente nós não formos suficientes.

  Fui para seu lado e toquei-o para poder lhe transmitir meus sentimentos. Ele manteve os olhos cerrados, o rosto se contraiu.

  - Ah! Há muito que não sentia isso...

  Uma lágrima brilhante acompanhou as rugas de sua face.

  - É de seu coração batendo que eu preciso para continuar sentindo tudo. É a minha fé! Você se lembra de como era. – supliquei. – Por favor, Julian. Conte-me o que sabe.

  Julian era um dos raros anjos que tinham a capacidade de ver o futuro, mesmo que ele não lhe fosse revelado completamente, por meio de imagens difusas.

  Afastei-me, colando meu rosto à janela, um raio brilhou cortando o céu.

  - Vou lhe falar tudo que sei. – decidiu. – Ela está perdida, não se pode ver-lhe o caminho; não posso afirmar se vai morrer, somente vejo sombras. Talvez você esteja afetando demais a vida dela.

  Suspirei e disse:

  - Sophie pode me ver.

  O ofegar de Julian foi um pouco abafado pelo som do trovão. Não quis olhar para ele, sabia que uma máscara de horror deveria estar cobrindo seu rosto.

  - Não há nada que se possa fazer então. – respondeu após um longo tempo.

  Era o que eu temia. Dei um último olhar para o anjo, ele encarava o livro fixamente. Uma das mãos estava depositada na frente de seu coração, como se quisesse agarrá-lo e apertar o mais forte que pudesse, até que cessasse os batimentos, matando-o sufocado. E fui embora.  

  Julian sabia o que aquilo significava em Otempora.

  - Por que você sempre fica aqui? – Sophie perguntou, tirando-me de minha abstração.

  - Incomoda-a que fique aqui?

  - Não... – respondeu suavemente, ignorando minha pergunta um tanto ríspida. – Eu só acho um tanto estranho.  Você é algum tipo de anjo?

  - Algo assim.

  Eu encarei seus olhos, escuros demais, pelo que era para serem somente alguns segundos. Ela estava melhor hoje, e sua face enrubesceu com a minha avaliação. Suas bochechas pareciam saudáveis com aquela cor.

  - Você sabe responder a perguntas de uma maneira não enigmática? – perguntou virando o rosto.

  - Certamente.

  Eu a estava evitando.

  - E então?

  - O que?

  - Vai responder?

  - Talvez você não devesse saber... – tentei desmotivar sua curiosidade.

  - Ah, você não existe de verdade, não é? É um fruto da minha imaginação, ou loucura, - acrescentou. – agora já não importa muito.

  Seu rosto escureceu um pouco, a tristeza latente em seus olhos baixos, tive vontade de perguntar o que havia acontecido, a fazer olhar para mim, para que pudesse afastar isso.

  - Meu nome é Gabriel. – falei, num impulso.

  Ela encarou-me com um pequeno sorriso nos lábios, tentando encontrar o que havia perdido. Eu me aproximei um pouco.

  - Eu não vou te machucar. – disse-lhe, pois pude notar que ela ficara tensa.

  - Eu sei. – falou com segurança.

  - Como pode?

  Sophie sorriu de verdade dessa vez.

  - Você é somente um sonho. Um sonho bom dessa vez, você tem luz. – novamente perguntei-me o que acontecia com ela. Ela podia ver a aura que meu corpo emanava. Seus olhos baixaram.

  - Você sonha coisas ruins?

  Ela assentiu:

  - Algumas vezes. – mas algo em seu tom de voz me alertou que eram mais que somente algumas vezes.

  - Como são? Esses sonhos.

  - Escuros, eu fico vagando numa caverna e tem uma pessoa gemendo. – estremeceu. – Mas são somente sonhos.

  - Sim. – incitei-a a prosseguir.

  - É só que... – ela parou de falar e passou as mãos no rosto. A curiosidade me invadiu.

  - O que?

  - É estranho. Ele parece estar com medo, mas eu nunca o encontro. Eu fico somente assustada com o lugar, é isolado e gelado e, eu sei que quando acordar eu vou sair dali. Mas e a criatura? Tenho medo que se pareça comigo... que algum dia eu não vá mais conseguir sair.

  Percebi que ela soltara a última frase sem realmente o querer. Enterrou o rosto nas mãos. Fui para perto dela, estendi meus dedos, dando um mínimo toque em seus cabelos cor de chocolate, ela me encarou, secando as lágrimas que haviam escapado.

  - Sinto muito. – ela se desculpou. Deixei minhas mãos caírem ao lado do corpo, não deveria tê-la tocado. – Eu... – ela parou, embaraçada e perguntou. – Em que esta pensando? – de novo, surgira-lhe aquele olhar estranho. Tive vontade de lhe tocar as pálpebras e a fazer descansar.

  - Nada de importante. – esquivei-me. – Não esta cansada?

  - Só de ficar aqui. É tudo muito branco, acho que a cor está se prendendo em mim. – podia ser verdade. Ela suspirou.

  - O que foi?

  - Me prometa uma coisa?

  - O que é?

  Não queria me prender a promessas que não poderia cumprir.

  - Prometa-me que vou ver você de novo. Que não vai embora...

  Eu sorri e olhei em seu rosto, havia esperança e tristeza nele, depois abaixou-o, enquanto buscava minha mão.

  - Só me resta você... – murmurou tão baixinho que não tive certeza se ela havia dito isso.

  - Eu prometo. – disse erguendo seu rosto. Mesmo sem saber se isso continuaria ocorrendo.  


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