A Utopia do Perigo. escrita por Raissa Muniz


Capítulo 7
Suspeita




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Amanheci minha infeliz quarta-feira na delegacia junto com tia Ellana e uma penca de vizinhos assustados. Entre todos nós estava a dúvida do acontecido e o que era aquilo nojento no chão do meu quintal. Acreditem, eles não estariam lá se fosse simplesmente só no meu quintal. A turminha da bagunça se reunira para reivindicar seus direitos como moradores. O possível feitor daquela baderna pareceu deixar presentinhos em todos os quintais. Não era tão ruim, afinal eu ainda era uma criança inocente deitada nos braços da tia enquanto esperava o Sr. Policial chamar todos nós para explicações.


— A garotinha aí, vem cá. — Chamou o delegado com uma cara de poucos amigos. Bem, esquece tudo o que eu disse sobre eu estar a salvo.


Todos olharam para mim e vi no olhar venenoso de alguns vizinhos uma frase estampada do tipo “Eu sabia que ela era louca”, ou “Ela é a culpada”. Tia Ellana não se manifestou negativamente com o chamado e tive que acompanhar o policial até uma salinha, onde um advogado público me esperava. Logo depois tia Ellana entrou na sala e ficou em um canto, marcando presença apenas por eu ser menor de idade.


— Conte tudo. — Foi a única coisa que o delegado disse, depois de deixar a sala com apenas uma das luzes ligadas e começar a mexer em um saco plástico, colocando “provas” na minha frente.



Quinta feira, onze horas da manhã.

Acordei com uma expressão desvairada no rosto e o corpo pesando mais que nunca. Lembrava que tinha tido um sonho estranho, onde eu dormira na delegacia depois de encontrar um fígado humano no meu quintal e acabar sendo interrogada por homens de preto que começaram a colocar todas as outras provas na mesa que estava na minha frente. Lembrava que tinha ficado aterrorizada e tinha voltado pra casa e desligado o telefone, deixando meu registro de nascimento no criado-mudo, onde eu lembraria quando acordasse pela manhã que tinha que levar ele para o delegado ver meus dados.

Olhei para o telefone celular e cliquei em apenas uma das teclas, esperando a hora aparecer, como de costume. Ela não apareceu. Ele estava desligado. Contrariada, virei-me para meu criado-mudo procurando meu copo de água que tia Ellana deixara ali para o caso d’eu acordar no meio da noite. A água estava lá e junto com ela, um documento borrado e molhado. Suspirei. Era tudo verdade e meu registro de nascimento acabara de ser destruído por um copo d’água. Que emocionante.



Mais tarde, às três da tarde.

— Então a água simplesmente resolveu sair do copo pra visitar seu documento e apagar você da história deste país? — Perguntou o delegado com sarcasmo.

— Não foi exatamente isso, mas devo admitir que você tem um ótimo senso criativo. — Observei, dando um risinho.

— Vamos ver qual é o senso criativo. — Rebateu ele com deboche, virando-se para outros policias com uma expressão de quem queria me colocar numa clínica de reabilitação.

Olhei para os lados, procurando tia Ellana e a encontrei sentada em uma cadeira logo atrás da minha. Tentei sorrir, mas o sorriso não saiu e meus olhos se estreitaram com dor. Tia Ellana estava chorando e nas suas mãos, a imagem de Nossa Senhora Aparecida repousava com o banho de lágrimas que atingiam sua estrutura de madeira.

Voltei meu olhar para o delegado. Ele ainda não terminara a conversa e as horas pareciam se arrastar de modo inconstante, sem a menor intenção de me ajudar.

— Chegamos a um acordo. — Anunciou o delegado, virando-se abruptamente e encarando meus olhos como um cão de guarda.

— O perito criminal desta locação analisou bem os fatos e os depoimentos dos vizinhos, da sua tia e o seu e concluiu que enquanto os exames não chegarem do laboratório de perícia, você é a principal suspeita. — Disse, com prontidão. — E o seu documento borrado foi só uma maneira de tentar driblar a polícia.

— E desde quando alguém consegue driblar a polícia com água? — Perguntei, não suportando a pressão.

— Não minta. Não era só a água que caiu no seu documento. Algum medicamento que ainda não conseguimos identificar estava misturado à ela e corroeu as fibras do papel, de uma forma que ficou praticamente impossível restaurá-lo. Se fosse só água a reconstrução já teria sido feita. E não minta de novo, ou a justiça vai puxar por seu pé ou quem sabe até a mão quando for praticar o que praticou novamente. — Disse ele. — Pode ir. Estarei de olho.

— Isso é uma ameaça? — Perguntei de modo desafiador.

— Entenda como quiser. — Falou ele, rindo. Foi nesse momento que vi nos seus olhos uma máscara que eu não gostaria de ver. Havia mentira. Havia medo. Havia perigo... E havia dor.



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