A Utopia do Perigo. escrita por Raissa Muniz


Capítulo 8
Atormentada




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A sexta feira chegou tão rápido que eu não conseguia acreditar que há poucos dias eu estava reclamando do relógio. Talvez o tempo tenha se tornado muito inconstante para minha capacidade de entendimento humano. Mas se nem isso eu posso explicar, acredito que pelo menos uma coisa eu poderia fazer. Passear pela cena do crime.

Era pouco mais que duas e meia da tarde e o sol queimava minhas costas desprotegidas enquanto eu me abaixava e voltava à posição de noites antes.

Claro que a polícia já limpara e revirara o local com a força de um tamanduá, mas minha esperança ardia mais viva que nunca. Agora todos aqueles textos dramáticos que eu fazia pareciam ganhar mais sentido.

Levantei-me, voltando-me para as árvores e passando o dedo indicador em quantas folhas eu conseguia alcançar. Nessa descoberta saudável da natureza, encontrei o que eu procurava: pistas.

Pistas que fossem só minhas, sem nenhum órgão gorvenamental para se meter e sair dizendo nos telejornais que eu era uma adolescente transtornada.

A pista que eu tanto aclamo era simplesmente uma letra em uma das folhas que eu observava com a curiosidade de uma criança.

A letra K.

Sozinha, sem nenhum apetrecho ou detalhe relevante. Simplesmente K, com uma caligrafia muito bem feita.

Imediatamente puxei a folha da árvore e voltei para o meu quarto, trancando a porta e ligando o computador.

Deixei a pequena folha ao lado dos meus livros da escola, protegida por uma redoma de vidro, caso o vento invadisse meu refúgio feliz.

Quando a tela do computador finalmente se acendeu, acessei meu e-mail e vi um verdadeiro bombardeio de mensagens. Todas de Leka e uma simples e curta de Bernardo.


Abri a primeira, preparada para o show de lágrimas que ela provavelmente esconderia nas palavras escritas.


“Oi Ennie,


Estou preocupada. Você não atende o celular e não dá notícias por e-mail. Preciso muito de sua ajuda, não consigo mais conversar com ninguém.


Eu te espero,

Leka.”


As outras quatro que abri eram mais ou menos nesse sentido, mas a quinta era realmente um tanto desesperadora. Nela Leka já sabia do ocorrido.


“Ennie,


Realmente não sei o que te dizer... Estou tão... Ah, sei lá. Você sabe que sempre estarei aqui por você, não é mesmo? E também sabe que eu te adoro e que nunca, nunca vou te deixar na mão? Pois se não sabia, ou não tinha raciocinado ainda, fique sabendo agora.

Eu poderia ficar escrevendo coisas felizes aqui o dia inteiro, mas preciso falar contigo.

Estou acabada por dentro e você era meu único desabafo. Por favor, dá notícias. Sei que não é hora pra chorar, mas dá uma notícia sequer.


Eu te amo, amiga,

Leka”.



Após fechar essa mensagem com a dúvida do que Leka estaria precisando, abri a mensagem de Bernardo.


“Cara Ennie,


Espero humildemente que as coisas melhorem pra você, mas o que os jornais estão comentando nos últimos dias não está ajudando em nada a sua reputação.

Você sabe como meus pais são apegados a ritos religiosos e esse acontecimento foi algo que chocou nossa cidade. Em outras palavras, não posso mais te ver. Nem te ligar, nem me comunicar contigo. Mas saiba que estarei aqui pra qualquer coisa.


Um grande abraço,

Bernardo.”


Essa não era pra agora.

Então tudo estaria realmente acabado pra mim? Bem, se até meus dois únicos amigos estavam com problemas por minha causa, eu não saberia lidar com a realidade problemática dos que nem olhavam na minha cara.


Preocupada, procurei o celular e o liguei, coisa que eu não fazia há algum tempo. Disquei o número de Leka e esperei a chamada se completar, me identificando e ouvindo todos os desabafos dela. Foi aí que a realidade realmente me chocou.


Os pais de Leka haviam morrido.



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