Capítulo 186 - Sempre pode piorar...

Não é que eu deteste o sistema...tá, tudo bem, eu detesto o sistema. Mas ele também não colabora. Veja por exemplo a escola. Tudo bem sentar e estudar uma ladainha chata por várias horas. Mas não basta ter isso. Também precisa ter a Educação Física! A gente precisa ir para a quadra sofrer. E não só isso: sofrer nas mãos do Jubal. Só de ouvir aquela voz grossa já me deixa desanimado. E hoje era um dia daqueles. Jorjão e Wilson me acompanhavam nessa hora de sofrimento. Pelo menos não estava sozinho.

– Colocar a Educação Física entre aulas teóricas é mesmo cruel - reclamou Wilson, assim que o sinal para a terrível aula de Educação Física soou - Isso interrompeu o desenvolvimento da minha resolução mais simples do exercício de matemática.

– Talvez dê para pensar melhor nisso durante a aula - disse Jorjão - Você sabe, vamos fazer coisas sem importância mesmo como jogar futebol..

– É verdade - concordou Wilson sorridente - Temos que aproveitar esses momentos inúteis para fazer algo de útil para a humanidade!

Mas ele não devia ter dito isso bem na hora que o professor chegou (é o risco de se sentar na frente da sala). E, como vocês já devem saber, nosso professor de Educação Física não era dos mais pacientes.

– O que disse?! - reclamou Jubal, já esbravejando.

– Eu? Ah..o-oi, professor - ele gaguejou - Só estava comentando com meus amigos o quanto estava ansioso para desenvolver meus músculos e manter minha saúde corporal sempre em equilíbrio. Apenas uma grande aula de Educação Física como a sua poderia nos proporcionar esse benefício...

– Aham - claro que ele não acreditou em uma palavra. Queria tanto ser puxa-saco como o Wilson - Estou de olho em vocês três, seus preguiçosos! De toda a turma, são os que mais me dão trabalho!

Você sabe o quanto é nerd quando o professor de Educação Física é o único que te dá bronca. E esse era o meu caso! Oh, falta muito para me formar? A maioria das pessoas quer ficar livre das matérias teóricas quando acaba os estudos. No meu caso, ficar livre da Educação Física já seria um alívio imenso.

– Bom dia - disse o professor após essa pequena chamada de atenção - Bem, hoje teremos mais alguém acompanhando a nossa aula. Ela ficará umas duas semanas com a gente.

– O quê? - perguntou Jorjão - Quem seria louco de acompanhar uma aula de Educação Física?

– Talvez seja um estagiário - comentou Wilson - Vez ou outra aparece alguém aqui.

Sim. Estagiários. Toda escola sempre recebe um. Ele normalmente auxilia o professor em uma aula, pega as assinaturas e cai fora. Quem deseja ser professor tem que passar por isso. Por exemplo, a minha irmã, Marcela, que estuda Educação Física, comentou na semana passada que queria adiantar os estágios da licenciatura e estava procurando por um lugar que a ac...ei, espera aí, não, não, não pode ser. Isso não. Por favor, eu já sofro demais.

– Por favor, Marcela. Pode entrar - disse Jubal.

– Foi mal, professor. Fui só pegar uma água - era ela mesma. Minha irmã malvada Marcela. Em carne, osso e roupa esportiva.

– Você já tem alguma experiência com aulas, não tem? - perguntou Jubal.

– Já ensinei um pessoal por aí. Acho que posso dar conta - disse ela - E, ei, é o meu irmão, Daniel. E aí, mano?

– Irmã do Daniel? - perguntou alguém lá no fundo.

– Não parece nada com ele - disse outra.

– Marcela...o que está fazendo aqui? - perguntei, em voz baixa.

– Ué? Falei que estava procurando um lugar para estágio, não falei? - ela respondeu no mesmo tom - E que lugar mais fácil de conseguir indicação do que na escola do meu irmão? Mas relaxa...não quero dar aula em escola. Quero só conseguir as horas de estágio e cair fora.

Menos mal. Mas alguém do meu lado parecia estar em êxtase.

– Oh! As forças do Universo caminharam para este desfecho! - disse Wilson, dramatizando ridiculamente a situação - Meu maior sonho acaba de se realizar! Estar ao lado da mulher da minha vida!

– O que disse? - perguntou Marcela.

– Ele só está lembrando a frase de um filme underground que assistiu - falei - Você sabe...Wilson ainda não se desligou da aula de literatura que tivemos ontem.

– Ah, tá. Mas agora não é hora de literatura - falou Marcela - Muito bem, seus fracotes! Durante duas semanas estarei com vocês! O professor já me deu carta branca para não pegar leve!

Não, não, não pode ser! Se minha irmã assumir as aulas de Educação Física por duas semanas que sejam...eu viverei o inferno no colégio...mais ainda do que eu já venho vivendo!

– Estamos prontos! - disse Wilson.

– Tá animado, heim? Assim que eu gosto! - disse Marcela.

– Por que está animado? - perguntou Jorjão, que compartilhava mais do que ninguém a minha angústia - Essa garota quase nos matou quando treinou a gente para jogar basquete...e quase ME matou tentando me fazer emagrecer! Imagina o que ela vai fazer agora?

– Ah, sim, alguns aqui já devem me conhecer - falou Marcela - Mas aqui na escola eu não serei boazinha...aliás, por que não se aquecem já na descida para a quadra?

– Como assim? - perguntei.

– Cada um de vocês arranje um parceiro - disse ela - E carregue ele nas costas até a quadra!

Todos ficamos horrorizados.

– Err...acho que comigo isso será um problema, não? - perguntou Jorjão.

– Não se preocupe, Jorjão - disse ela - Meu irmão Daniel é forte o bastante para isso.

– QUÊ?! De onde você tirou isso? - perguntou ela.

– Você sempre ajuda a levar as compras quando chegamos do mercado - falou ela.

– Mas as compras são leves...e o Jorjão...o Jorjão é o Jorjão! - reclamei.

– Ah, deixa de frescura! Vai, Daniel, se abaixa e tenta carregar o Jorjão. Vamos ver se é tudo isso que você está dizendo.

A próxima cena foi massacrante. Nosso amigo Jorjão era...como posso dizer..avantajado no quesito peso. Meu estilo chassi de grilo não permitia que o carregasse. Eu me abaixei e tentei levá-lo, mas era inútil. O peso dele era insuportável.

– Realmente, você precisa treinar mais, maninho - disse Marcela - Tá bom, tá bom, esqueçam levar o colega nas costas.

Todos respiraram aliviados.

– Ao invés disso, vamos correr na quadra segurando halteres pesados. Isso já dará uma ótima melhora ao aquecimento de vocês! - disse ela.

– Isso é abuso de autoridade! Professor! - reclamei.

– Ah, qual é? Vocês conseguem aguentar um treino pesado por duas semaninhas - disse ele, sem tirar os olhos de uma revista de carros que havia trazido.

– Mas...vamos morrer - reclamei.

– Você é sempre cheio de frescura, heim, Daniel? Eu já sou bonzinho demais com vocês! Eu devia dar nota só para alunos que transpiram na minha aula. Mas você, Daniel, você não sua, não transpira! Sabe por quê? Por que você não corre, você só anda! Agora nossa estagiária que conhece as novidades da área de Educação Física vai transformar toda essa preguiça em músculos.

– Isso mesmo! - continuou Marcela, esboçando o pior de seu olhar malvada - E quero todo mundo fazendo direitinho, senão...vão ter que pagar flexões de castigo, ouviram?

Por alguma razão, todo mundo ouviu aquilo com o máximo de respeito. Olha, não se engane, professores estagiários nunca são levados a sério. Mas aquela não era uma professora comum. Era a minha irmã. E eu conhecia bem do que ela era capaz de fazer.

– Ela tem pulso firme, né? - comentou Dimas.

– Gostei - comentou outro.

Gostaram? Gostaram? Vocês já gostam de Educação Física! Eu é que vou encarar o sofrimento de ter minha irmã como professora nessas duas semanas. O que vou fazer?

O que vou fazer...o que fizemos, né? Logo descemos e corremos umas dez voltas pela quadra segurando halteres. E fizemos isso em fila, organizadamente, pois qualquer saída dos eixos...Marcela estava pronta com um enorme macarrão de borracha, desses que usamos na piscina, para colocar a pessoa de volta na fila na base da porrada.

– Disciplina. É disso que vocês estão precisando! - gritava ela - Vamos, Daniel. Mexe esse traseiro! Jorjão! Acho bom começar a correr mais!

– Mas eu já corri meia-volta! - argumentou ele.

– E seus colegas já estão terminando as dez...ou você prefere pagar flexões?

– N-Não, senhora. Vou correr mais...

Nem preciso dizer que terminamos nossa primeira aula mais suados do que porcos.

– Bom, bom. Agora vão tomar um banho e se preparar para a próxima aula - disse ela, faltando uns vinte minutos para a aula terminar.

– Nós não temos vestiário - falou Jubal - E mesmo que tivéssemos, eles não trazem roupa de ginástica. Já reclamei várias vezes na coordenação para isso ficar claro, mas não adianta.

– Ah, não. Bom, então não tem jeito. Vão ter que voltar para a aula suados mesmo.

– Ai, que nojo - reclamou uma menina.

– Como é que é, dondoca? - falou Marcela - Acha que Educação Física é só pra ficar fazendo fofoquinha enquanto finge que joga bola? Semana que vem quero todo mundo com roupa própria de ginástica! E, já que não tem chuveiro, tragam pelo menos um desodorante. Bom...já que ganhamos tempo e vocês vão ter que voltar suados mesmo. Vamos treinar mais! Hora do futebol!

– Oba, vamos jogar - comemorou Dimas.

– Jogar? Jogar? Acha que podem jogar alguma coisa que preste com o preparo físico de vocês? Vocês vão é treinar mais chutes! Chega de moleza! Formando uma fila! Agora!

– Bom, pelo menos não precisamos nos preocupar em sermos os últimos escolhidos - comentou Wilson - Sua irmã é fantástica!

– Você fala isso com essa voz ofegante e esse suor pingando? - comentei - Essas duas semanas serão longas! Escuta o que eu tô te falando!

É, pelo jeito seriam mesmo. Por que essas coisas só acontecem comigo?