Perdendo e Encontrando escrita por Sandra


Capítulo 3
Capítulo 3




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Passei a tarde com Jamie em uma pseudo despreocupada camaradagem. Conversamos sobre uma série de coisas completamente sem importância. Entretanto, com honestidade, despreocupação não estava sequer na lista dos sentimentos que me embalavam. Eu estava tenso, ansioso e um tanto amedrontado com o que fosse acontecer. Eu detestava me sentir assim: vulnerável. Isso me irritava. Eu não podia ser vulnerável, eu não podia ser fraco. Eu tinha Jamie pra cuidar. Eu tinha que ser forte, por ele; pra ele.

 

Já estava começando a escurecer quando eu escutei um burburinho vindo do salão mais próximo da entrada. Não precisou de muito raciocínio pra entender que provavelmente Jeb e o time que ele tinha escalado para verificar o que estava lá fora, tinham voltado. Hora que encarar a merda de frente e ver o que diabos estava me deixando neste estado de espírito maldito, por todo o dia. Pra distrair Jamie e pra mantê-lo seguro enquanto eu iria verificar o que estava acontecendo, mandei que ele arrumasse a nossa caverna e estudasse as lições de Sharon. Isso deveria mantê-lo ocupado e longe de problemas por tempo o suficiente. Assim, sem mais hesitação eu segui o som das vozes agitadas até o salão.

 

Mas por mais que eu imaginasse, jamais me ocorreria o que vi: Mel!

 

Choque me congelou em meu lugar, enquanto os meus olhos ansiosos bebiam cada uma de suas características. As faces excessivamente coradas, os cabelos desgrenhados, grudados ao pescoço, os olhos fundos encravados na face de aparência cansada, as mãos e os joelhos esfolados, a roupa suja de terra e suor.... Ela era uma bagunça. Ela era linda! A coisa mais linda que eu já tinha visto. O meu anjo, meu amor. Ela estava viva! Ela tinha voltado pra mim, pro Jamie! Alegria, felicidade indizível tomou-me por inteiro. Ela voltou! Acabou o pesadelo, ela vol...

 

E então, um raio de luz refletiu em seus olhos e o brilho prateado se destacou. Eu não percebi que eu me encolhi e recuei um passo, como se ela me tivesse agredido. Mas ela não tinha feito nada. Se alguma coisa, seus olhos tinham uma expressão de encantamento quando ela sussurrou o meu nome e avançou em minha direção. Como se quisesse me alcançar, como se ela tivesse receio de que eu fosse embora.

 

Sim, talvez ela tivesse. Provavelmente ela queria mais corpos fantoches pra seus irmãos vermes. Mas eu não entregaria o meu, e não deixaria que ela tomasse o de ninguém que estava naquelas cavernas.

 

Raiva, ódio substituiu tudo o que até aquele momento eu tinha sentido. Esta não era Melanie, não era a minha Mel. Era o monstro que calou o seu sorriso, era o verme nojento que arrancou a única irmã de Jamie. Era o parasita desgraçado que roubou de mim a minha menina, a garota que eu amava, que eu amo, de mim. Que nos roubou o nosso futuro, a nossa felicidade. E então, ela não era apenas culpada por me roubar Mel, ela era culpada por todas as minhas perdas. Minha irmã, meus pais, meu cunhado, meus amigos, meus professores, todos os que eu conheci, todos os que sumiram da minha vida. Ela era a culpada. Eu queria acabar com ela. Eu a odiava. Odiava muito além do que eu jamais pensei ser capaz de odiar alguém.

 

Como ela pôde fazer isso comigo? Que monstro tira uma irmã, um pai, uma mãe, o melhor amigo de alguém e simplesmente o apaga? E ainda tem a ousadia de aparecer aqui, com o corpo da mulher que eu amo, pra que? Apenas para escarnecer da minha desgraça? Pra rir do imbecil que quando a olhou, não a viu; viu apenas a garota linda que ela apagou? Ela não tinha o direito de falar o meu nome. O direito de olhar no meu rosto. Ela não devia ter o direito de existir.

 

O meu punho se fechou sem que eu sequer me desse conta. Em um último fio de sanidade eu abri a mão. E no instante seguinte, ela fez contato com a face da coisa. O barulho ecoou pelas paredes e como uma onda, ele encerrou todo e qualquer outro ruído. Parecia que não existia mais nenhum som sendo feito no mundo inteiro, exceto o barulho do seu corpo caindo pra trás, batendo duramente contra o chão de pedras da caverna.

 

Ela pareceu tonta, pequena e indefesa, jogada no chão. Um rasgo de piedade me cortou. Mas eu o esmaguei com dureza. Ela não era Mel. Era sua assassina, eu me recusava a ter o mais ínfimo sentimento de piedade pela coisa que a tinha matado. Então, eu apenas fiquei lá: uma torre diante dela, olhando-a; com tanto ódio quanto eu era capaz. Assim sendo, quando Jeb se aproximou dela, claramente na intenção de a ajudar, eu me senti traído. Era sua sobrinha. Merda! Era sua sobrinha e aquela aos seus pés era a criatura que a matara. Como ele poderia não sentir ainda mais ódio por este... este verme nojento do que eu? Ela era sua família. Seu sangue!

 

Eu o olhei com dureza, com mais dureza do que eu já o tinha olhado antes. Ele respondeu ao meu olhar com determinação. E embora ele não me tivesse dito nenhuma palavra, a mensagem era clara: Ele não recuaria. Eu queria que ele a odiasse comigo. Eu precisava que ele a odiasse comigo. Se não por que ela merecia todo o nosso ódio, por ter matado Mel, então, pelo menos, pra não me deixar sozinho. Eu queria que ele pisasse nela. Eu queria... Minha fúria era tamanha que eu estava perdendo a coerência. Eu já nem sabia o que eu queria. Ou melhor, eu sabia. Eu queria que ela pagasse por toda a dor que ela causou.

 

Vagamente eu percebi o ar sair do meu peito em grandes baforadas, como se eu tivesse corrido por horas. Eu também sentia os meus olhos arderem, mas me recusava a deixar as lágrimas caírem. Eu não seria um fraco. Jeb tinha que entender. Ele apenas tinha. Então, com os olhos, eu tentei implorar; implorar para que ele não fizesse isso. Pra que não a tocasse. Não nos traísse a mim e ao Jamie. Toda a dor que eu pensava ter controlado, todo o sofrimento que eu quase acreditei que tinha sido deixado pra trás, pelo menos um pouco, inrrompeu de mim. Eu engasguei. E eu só queria pedir que não fizesse isso. Neste instante, eu senti que os olhos dele também mudaram a sua mensagem. Ele já não estava dizendo que seria a sua vontade que iria prevalecer. Ele me olhava com ternura e dor; com dó, de mim. Eu não queria isso. Eu não precisava que ele sentisse pena de mim. Eu queria que ele estivesse comigo. Mas eu não tinha mais forças pra sentir raiva. Eu me sentia desgastado, como se toda a raiva houvesse sido drenada. Eu estava cansado. Morto. E assim, eu recuei.

 

Ele a amparou e a pós sobre os seus prórprios pés, gentilmente. Eu a olhava com saudade. Eu queria gritar, eu queria a minha Mel de volta. Merda!

 

E então as pessoas começaram a dar passagem a alguém, foi com esforço que eu desviei o olhar de Jeb e da coisa pra fitar a face do Doc E então, eu gelei. Não era lógico, minhas emoções não faziam sentido nenhum, nem pra mim. Porque eu temia que a coisa fosse entregue a ele? E tão logo a pergunta se formou, a minha própria mente me deu a resposta. Aquele era o corpo da Mel, eu não queria que ele fosse profanado. Doc a examinou e a cicatriz maldita que testemunhava a morte da minha Mel. Eu travei o maxilar. Mas não falei nada. Pelo menos, não até que Doc anunciou que ia levá-la a sua câmera de tortura.

 

A imagem de Mel aberta e do seu corpo quebrado sobre a maca arrancou de mim uma única palavra. Mas ela tinha força, era definitiva: “Não”.

 

Doc me questionou e eu não nego, nem pra mim mesmo a validade das suas perguntas, porque realmente isso me importava? Mel não estava lá. Não mais. Cacete! Ainda assim, eu não podia suportar a idéia de seu corpo ser entregue a Doc. O médico então implorou a Jeb, eu tensionei. Talvez fosse esta a razão porque Jeb a tinha trazido aqui, afinal, com que outra intenção ele faria isso? Além de, é claro, garantir um aumento significativo no número de pesadelos com que eu e Jamie normalmente já éramos agraciados.

 

Kyle e Ian me olhavam beligerantes, assim como Sharon. Fodam-se todos. Eu podia não saber porque merdas eu estava me recusando a permitir que ela fosse levada ao hospital. Mas isso não iria mudar a minha decisão. Ninguém iria levá-la. De novo e de novo eu recusei, quase rosnando que ela tivesse esse fim. E então, a coisa resolveu torcer a faca onde doía mais. Ela falou o nome de Jamie, como se estivesse implorando pelo menino. Mais uma vez eu sufoquei na minha dor, era tão parecido com a Mel que eu conhecia. Jeb a tranquilizou (como se ela de fato se importasse) dizendo que o menino estava bem, conosco. Logo em seguida a coisa desmaiou.

 

O rebuliço aumentou esponencialmente quando Jeb a tomou nos braços e a entregou... a mim. Surpreso, muito surpreso eu olhei pra ele que se virou pra Doc, Ian, Kyle e Sharon e anunciou que o corpo de Mel não serviria às esperiências do Doc. Eu suspirei aliviado.

 

Jeb me mandou cuidar da coisa. Eu acenei em concordância e corri. Em princípio, eu não sabia para onde ir com ela, onde a esconder. Até que me lembrei do depósito, era próximo da saída... Mas talvez, justamente por isso, ninguém pensasse que a iríamos guardar ali. O buraco a manteria segura dos demais; e eu me encarregaria de ser seu carcereiro e assim, manter os demais seguros dela. Ela não fugiria. Não lhe daria a menor chance de contar aos seus amiguinhos rastreadores a localização do nosso refúgio.

 


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