Artífice escrita por Arkytior


Capítulo 5
Peur


Notas iniciais do capítulo

Capítulo NÃO BETADO. Estou feliz o bastante só de poder atualizar essa fic depois de anos...



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V – Peur

            - Não acha que a dama está mentindo? Impossível uma mulher de tão alta classe deixar sua família apenas por um desejo de aventura.

            - É bem possível, sim. Soube de várias aristocratas ou burguesas que resolveram abrir o próprio negócio para fugir de suas obrigações como mulheres. Nada preocupante, Laurent, o casamento e a maternidade se encarregarão de colocá-las em seus devidos lugares. – Lucien acendeu um cigarro, tragando-o de maneira gentil.

            - Faz sentido. Pretende visitar a baronesa Lumière de noite?

            - Não. – Retirou o cigarro – Tenho hora marcada com outras senhoritas hoje. – Reclinou-se na poltrona, com uma aparência informal e relaxada.

            - Senhoritas? Tem certeza? – Laurent franziu uma das sobrancelhas, desconfiando de Lucien.

            - Do que está insinuando? – Com as perguntas do colega, o nobre exibiu um semblante severo.

***

            A chuva forte já era esperada desde a manhã. Não poderia sair da loja despercebida, já que o barulho dos passos sobre as poças d’água chamariam a atenção. Mesmo com a calmaria do dia trabalhado, em relação à sua rotina anterior, Giselle tinha medo do que Éclair pudesse fazer. Lembrou-se que seria levada para algum lugar ao final do expediente: não queria voltar para casa de jeito nenhum, a situação pioraria quando seu irmão a visse com outra mulher.

            Éclair, por sua vez, esperava do lado de fora por uma carruagem. Segurava um guarda-chuva azul. Iria solucionar a questão de Giselle rapidamente, e as suas próprias ao mesmo tempo. Teria uma utilidade para a garota. Estendeu seu braço ao avistar uma carruagem negra, que atendeu ao seu sinal. Antes de entrar, chamou Giselle, que a seguiu.

            - Delegacia de polícia, por favor. – Pediu ao cocheiro.

            - Senhora... – Giselle balbuciou, em voz fraca.

            - Cale-se.

            Havia se esquecido do sentimento claustrofóbico de uma carruagem coberta. Da última vez que percorrera uma distância mais longa, fora de trem, saindo de Brille. Mesmo com uma lamparina dentro da cabine, a escuridão reinava. O ritmo do galope e da chuva, sincronizados, causavam um pouco de sono. Manteve-se alerta. Giselle dormia, mas um tranco inesperado a fez despertar. Organizou os fatos em sua cabeça: estava sendo levada à delegacia. Com certeza seria presa. Mesmo com seu irmão não estando presente, temia pelo seu futuro.

            “Mas a gente dos cortiços não tem futuro.”

            Ainda chovia quando desceram da carruagem. Éclair pagou ao cocheiro corretamente. Agarrou o braço de Giselle com uma mão e segurava o guarda-chuva com a outra. Entraram rápido no prédio e aguardaram no saguão até serem atendidas por um policial.

            - Quero registrar uma queixa. Ou melhor, duas. – Sentiu a pele da garota umedecer e esfriar, mas não lhe deu atenção.

            - Certo. Encontrou a ladra procurada. Vá até o balcão, algemarei essa mulher e lhe entregarei o formulário de boletim de ocorrência para a senhorita preencher.

            - Entendido. – Éclair fez como indicado.

            - Uma recompensa de quinhentos livres sempre é bem-vinda, não acha? – Disse o policial, alegre ao algemar Giselle, já que receberia uma gratificação por tal ato. Logo após tal frase, Giselle empalideceu; seus olhos perdendo o brilho e o corpo, as forças. Por um acaso Éclair a tratou bem apenas para abaixar suas resistências e trocá-la por dinheiro? Deveria ter fugido no dia em que roubou a garrafa de gim, sem dúvida. Estaria livre, pelo menos. Poderia sobreviver longe de seu irmão, cometendo pequenos furtos.

            - Não sabia de tal recompensa, senhor policial.

            - Como assim? Há cartazes dela espalhados por toda cidade? Bem, acredito que você não saia muito de casa. – Riu.

            - Estou há pouco tempo nessa cidade. Pouco menos que quinze dias. – Não compartilhou do bom humor do policial.

            - Então a recompensa lhe será muito útil!

            - Ainda tenho outra denúncia a fazer. E a senhorita Martin terá de colaborar nesse caso. Envolve os familiares dela.

            - Certo. – De qualquer forma, o policial algemou Giselle, que se sentia traída e deixava sua indignação clara no olhar. – E qual seria a denúncia?

            - A senhorita Giselle era forçada pelo irmão a cometer furtos, principalmente de bebidas, já que o irmão é alcoólatra. Se essa declaração for verdadeira, acredito que a garota possa ser inocentada, já que agia sob ameaça de violência. Precisamos da ajuda dela, então teríamos de libertá-la, acredito.

            Investigaremos, então. – O policial soltou Giselle, desta vez confusa, e todos subiram em uma carruagem, indo em direção ao local indicado pela adolescente.

            As ruas ficavam cada vez mais escuras; as pessoas, mais maltrapilhas. Os cortiços da cidade nunca foram e nem eram locais aceitáveis para damas trafegarem; era necessário acompanhar Giselle e o policial na investigação, entretanto. Mesmo sentindo nojo de tudo aquilo, um sentimento de nobreza emanava em Éclair, comicamente interpretado como “complexo de Príncipe Encantado” em seus pensamentos. Pararam, sob orientação de Giselle, em frente a uma construção de madeira derrubada, com um grupo de pessoas em volta. Ainda chovia, mas dessa vez nenhum dos três se importou. Desceram da carruagem, tentaram abrir espaço entre as pessoas e viram um jovem maltrapilho no chão.

            - Gabriel... – A adolescente estava triste pela situação do irmão, mas as lembranças recentes de maus-tratos a impediram de chorar.

            - Conhece esse homem? – Perguntou o policial.

            - Sim, é o meu irmão.

            - Aquele que é suspeito de te obrigar a roubar?

            Giselle apenas acenou que sim, triste. Durante esse tempo, Éclair pediu informações de algumas pessoas que observavam tal cenário. Um homem respondeu que o teto já estava muito fraco e que iria desabar em caso de tempo ruim, o que aconteceu:

            - Não teria acontecido se aquele rapaz tivesse parado de beber e desse um jeito no telhado. Mas não, ele força a menina a roubar bebida pra ele e bate nela depois. Desse jeito, iria cair de qualquer jeito. Sinto pena da garota, ela não tem família.

            - Tem como você conversar com o policial sobre isso? – “Então era verdade”, Éclair concluiu.

            - Claro, moça.

            - Obrigada. – Pegou uma moeda de um livre de dentro de seu bolso e entregou ao homem, que recusou no início, mas aceitou após a insistência de Éclair.

            - E o seu vestido, moça? – Era incrível como mesmo gente humilde se importava com a aparência dos ricos. Éclair riu sarcástica, deixando claro que não iria preocupar-se com um apanhado de tecidos azuis. Secá-los era algo rápido demais com magia.

            Na próxima hora, uma carruagem branca – uma ambulância – chegou ao local com vários enfermeiros. Junto a eles, uma maga curandeira em seu manto branco de brocado: a primeira profissão disponível para mulheres proficientes em magia a ser reconhecida fora de suas cidades. O fato dos feitiços e poções serem mais confiáveis e eficazes do que a medicina tradicional ajudou no processo de aceitação. Mas tal revolução ocorreu há mais de sessenta anos, então a visão de uma maga do tipo já era considerada comum.

            Os enfermeiros checaram os sinais vitais de Gabriel, afirmando que o homem ainda estava vivo. Prenderam-no em uma maca e partiram, sem interesse no seu passado e nas pessoas que o observavam.

            - Ela é inocente, senhor? – Éclair ajustou seu chapéu encharcado, tentando cobrir os olhos.

            - A garota terá de pagar uma multa, mas não será presa.

            - Seria possível levar-nos de volta para a delegacia para que possamos resolver tal questão?

            - Mas é claro, senhorita.

***

            - A recompensa ainda é válida, senhor? – Segurava a xícara delicadamente pela alça. O chá não era de boa qualidade, mas não esperava muito mais de uma delegacia. Ao seu lado, Giselle agarrava sua xícara com as duas mãos, aquecendo-as no processo. “Rude.”

            - Sim, sim, claro... – O policial tomou um pequeno susto à menção do dinheiro. Todos no local podiam ver que ele estava mais distraído com o chá do que a dama e a mulher jovem. Pôs sua caneca na escrivaninha e direcionou-se ao cofre. Retirou os quinhentos livres prometidos e os pôs ao lado do pires de Éclair – Sei que não é algo muito educado oferecer dinheiro diretamente nas mãos de uma moça fina, mas não vejo nenhum acompanhante e, se me perdoa o comentário, não parece que a senhorita se importa.

            - Muito obrigada. E não, não me importo. A burguesia está no meu sangue. – Olhou para o lado, sorrindo apenas com um canto dos lábios – E quanto à multa dela?

            Giselle engoliu quase todo seu chá de uma vez, na esperança de que ele parasse a tremedeira de frio e a de ansiedade ao mesmo tempo.

            - Cem livres. Se ela não tiver como pagar, será presa. Um tempo menor, dadas as circunstâncias, mas...

            Notas deslizaram até encostarem na caneta do homem.

            - Resolvido. Muito obrigada, senhor policial. Boa noite. - Retornou a xícara, levantou-se e fez sinal para que a recém-liberta a acompanhasse. Já na calçada, fez sinal para uma carruagem que passava, solicitando seus serviços. Engajou em conversa leve sobre a chuva para não duvidarem de sua reputação e ofereceu o endereço de sua casa. Sentiu sua manga puxar.

            - Senhora...

            - Não se preocupe, vou te dar um lugar para dormir e para trabalhar. Você não vai apanhar de um bêbado louco de novo. – Deu seu sorriso mais inocente.

            - Muito obrigada, senhora, devo minha vida a você agora!

            “É, realmente deve.”

            Naquela carruagem escura, Giselle encantou-se com a possibilidade de finalmente ter direito a um futuro; Éclair, por sua vez, olhou para a janela, trocou o sorriso afável por um oportunista e sentiu orgulho de si mesma por conseguir uma empregada barata.

            Negócios.


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Notas finais do capítulo

Eu avisei que a Éclair não é nenhuma santinha...



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