F.a.i.t.h. escrita por C__


Capítulo 4
O Cientista




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ATO 3 – O CIENTISTA

Running in circles, chasing tails
Coming Back as we are

Questions of science, science and progress
Do not speak as loud as my heart

Naquele dia a chuva barulhenta e a ventania assustadora varriam impiedosamente o mundinho que ficava alem dos inexpugnáveis vidros do carro. Toldos arrancados voavam descontrolados. Galhos de árvores se soltavam e se projetavam pelo ar. Árvores enormes se contorciam, ameaçando cair. Placas balançavam perigosamente. Muitos lembram bem deste dia.

Protegida em seu carro dirigia devagar em direção a algum lugar, mas por mais longe que fosse não estaria tão distante quanto a sua mente. Os dedos tamborilavam o volante, nervosos. Olha para os lados ao menor sinal de ruído. Sua mente estava muito longe daquela estrada no dia da pior tempestade que conseguia lembrar enquanto dirigia. Ao seu lado, uma criança de pele clara e cabelos escuros penteava uma antiga boneca de plástico dos anos 90 atrás do cinto de segurança enquanto cantarolava algum hit grudento da época. Vestido fino, leve, floreado. Flores vivas. Pés mal abrigados numa sandália. Sim, aquele tipo de sandália cor verde-ninguém, uma tira em forquilha, fingindo proteção, mas cobrando o preço de se intrometer entre dois dedos e ficar ali até que a vítima se acostume, aceite, conforme-se e por fim ache bom, muito bom.

Aquilo a atraiu de volta para este mundo e sem motivo aparente algum explodiu...

- FERNANDA, STOP!

Ao gritar isso ela parecia tão assustada quanto à menina. Não sabia pq estava gritando com ela, ela não havia feito nada de errado realmente, apenas precisava gritar com alguém ou iria explodir. Mas não com sua filha, errara e logo se arrependeu. Entretanto Fernanda, demonstrando uma maturidade impar para seus sete ou oito anos em um daqueles momentos que só as crianças sabem como nos desarmar, perguntou com sua vozinha frágil e infantil:

- Are you okay, mom?

Aquilo a desconcertou e derrubou suas defesas definitivamente. Engoliu em seco e não sabia onde enfiar a cara. Passou os dedos do braço direito sobre o rabo-de-cavalo que prendia o cabelo e acariciou o rosto da criança com as pontas dos dedos, tentando parecer tranqüila ao falar, porém fracassando miseravelmente:

- I\'m fine sweetheart, mom is fine...

Aquela resposta pareceu satisfazer a criança, surpreendendo-a novamente. A chuva batia desalmadamente. Não se via literalmente nada. O relógio marcava meia hora a mais que o tempo de viagem normal. A água intrometida e fria encharcava o carro, a estrada, as placas e as arvores. O vento trovejava um rumor que angustiava. A chuva batia seus milhares de dedinhos, tamborilando raivosa no carro, no vidro, nos pneus.

- Mommy, daddy will come?

Aquela pergunta a pegou em cheio, não esperava ter que falar disso agora e honestamente é onde seus pensamentos andavam antes de ter gritado com a sua filha. Não parecia uma grande pergunta, a menina sequer tirou os olhos da boneca e falou levianamente, mas o que ela não sabia é que aquela na verdade era a maior pergunta do mundo naquele momento. A maior de todas.

O primeiro impulso que lhe ocorreu foi de gritar com a criança novamente e a mandarela calar a boca, mas se censurou antes que o fizesse. Já havia estourado sua quota de erros na educação de sua filha por hoje. Era uma péssima mãe, pensou consigo mesma. Não sabia o que responder, mas o silencio não resolveria também. Crianças não funcionam assim, isso era uma coisa que ela já havia aprendido. Sentiu-se perdida e sem saber o que fazer e menos ainda o que dizer. Em uma atitude bastante primitiva, deu uma ordem a sua filha como forma de afirmar a sua autoridade e isto a fez se sentir melhor.

- Here darling, put this jacket – ela disse alcançado um casaco do banco de trás para a garotinha que prontamente tirou o cinto de segurança para colocar o agasalho sem questionar.

Enquanto tirava a jaqueta jeans sua filha gritou alto e estridente por alguns instantes, e então um clarão...

O vento não perdoou nada nem ninguém naquela tarde escura.

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A estrela foi silenciosamente crescendo através do vidro e à medida que despontava, sua figura tomava proporções fartas fazendo com que os primeiros raios da aurora penetrassem através da sala e incidiam sobre o seu rosto de uma forma que ela nunca havia sentido antes.

É bem sabido que os feixes solares matutinos possuem uma energia tonalidade e brilho únicos (ou talvez só eu ache isso e penso que todo mundo mais acha, mas isso não vem ao caso agora), mas não era nada como aquela luz que lhe incomodava a face. Era tão intenso, puro e direto como nunca sentira antes.

Apertou os olhos com os músculos da face em uma tentativa vã de que aquilo deixasse de existir no seu mundinho até então escuro e silencioso, obviamente aquela era uma batalha perdida. Balançou a cabeça para o lado, mas não havia como fugir daquela luz que lhe fustigava a vista mesmo por debaixo da pele. Por fim, teve de acordar.

No que abriu os olhos, ela viu que... não via nada, a principio. A claridade era imensa e era como se ela estivesse enxergando pela primeira vez após muitos anos no fundo de um poço profundo e terrível, ou apenas como se estivesse realmente enxergando pela primeira vez. Esperou alguns segundos para ver se alguma máquina da Matrix iria agarra-la pelo pescoço, mas nada aconteceu. Fosse como fosse, aquela claridade toda machucava e queimava em algum grau menor.

- Essa é a estrela Minos, olhe bem porque vai ser a ultima vez em muito tempo que vai ver a luz de um sol em muito tempo, tomara que para sempre, monstro.

Seu primeiro impulso foi tentar colocar a mão sobre os olhos para diminuir a claridade quando percebeu que não conseguia mover seu braço. Não sentia todo ele, mas o que sentia percebeu que estava firmemente amarrado. Apenas arquejou e tentou apertar mais os músculos da face, ainda assim tudo que conseguiu foi ver um vulto parado enfrente a janela. De algum jeito, aquele vulto lhe era familiar de uma forma recente.

- Quem... Onde... – arquejou.

Sua voz lhe saiu deveras estranha. Podia reconhecer como sendo sua, mas estava diferente como se estivesse ouvindo uma gravação ou fosse outra pessoa a ouvindo. A voz de um ser humano soa para ele próprio diferente do que qualquer outra pessoa jamais vai ouvir devido ao fato de que o som passa pelos ossos da face e isso modifica a forma como o ouvimos, de modo que a forma que você ouve sua própria voz é única verdadeiramente no sentido de que ninguém mais assim a ouve.

- Um fantasma que fala? Seth...

- O que... Aconteceu... Onde...

Definitivamente era a sua voz, embora diferente, não teve mais duvida quanto a isso embora permanecesse a estranha sensação de que alguém apenas dublava seus pensamentos. Mas não só isso sentia como se seu corpo todo estivesse sendo titereado por ela própria ou por alguém que lia seus pensamentos, o que seria muito estranho. E coisas estranhas não acontecem por aqui, acontecem? J.

Dormente. Ausente. Distante.

- O QUE ACONTECEU? O QUE ACONTECEU?!? EU VOU TE DIZER O QUE ACONTECEU: VOCÊ ACONTECEU AQUI, MONSTRO!

A pessoa parada a frente dela se aproximou abruptamente e explodiu com ferocidade, ela conseguiu reconhecer o tom de voz de quem iria sacar do bolso a qualquer momento uma taquara repleta de pregos e espancá-la indefinidamente. Porém seu avanço arrefeceu a média distancia o suficiente para encobrir com o corpo o sol que nascia pela janela o que auxiliou muito sua visão a ter uma boa noção de onde estava.

Monstro?

Era uma sala asséptica, sem moveis ou decorações. Apenas a praticidade gélida do metal. Um pragmatismo desprovido de alma, para soar mais chique. Havia apenas a parede junto a qual ela se encontrava, na parede oposta a enorme janela panorâmica onde um sol ousava amanhecer. Apenas uma entrada (ou uma saída, depende para onde você está indo): uma porta hidráulica, que ela reconhecia como tal após anos assistindo filmes de ficção cientifica.

Entre ela e a janela, pode examinar bem a figura feminina que vociferava como quem fosse agredi-la e percebeu que pareava em altura com ela, mas essa era definitivamente a primeira e única semelhança que havia entre as duas. A primeira impressão que teve foi de que era algum tipo de cantora pop adolescente: prova disso era a malha colada (e provavelmente dois números menor, acrescentou em pensamento) exibindo pernas plenamente desejáveis sobre todos os aspectos e ângulos apesar de magra para altura (não iria ouvir nenhum homem reclamar, eles tem uma lei idiota proibindo isso, acrescentou novamente em pensamento).

O que nossa protagonista não tinha como saber aquela altura dos acontecimentos é que na verdade aquelas calças eram parte do uniforme militar da federação, feito por um tecido extremamente leve, elástico e resistente. Embora não aprova de balas, era mais resistente que meias Vivarinas e poderia resistir até mesmo a uma facada, dependendo do ângulo, da força e da faca usada (sim, facas Ginsu continuam no topo da cadeia alimentar mesmo no futuro). Enfim, pode-se resumir como que alguém assistiu os filmes de super-heróis (ou séries super sentai japonesas se preferir) e pensou "hey, i really could use that...".

Apenas a titulo de comentário, existe realmente um motivo para o uniforme básico ser uma segunda-pele microscopicamente justa: o tecido chamado de nanoprene utiliza uma combinação de nanotecnologia com eletricidade para manter os músculos tensionados e prontos para a explosão quando vier o comando do cérebro, aumentando os reflexos e agilidade entre 10 e 15% segundo dados da inteligência militar da Federação.

Embora fosse inocente quanto às calças, pois como já foi dito a malha realmente faz parte do uniforme básico tanto como as botas de cano curto e as blindagens inerentes a estas, a camisa branca sem mangas propositalmente curta exibindo um abdome milimetricamente esculpido e cobrindo com esforço um par de seios voluptuosos para o corpo magro adolescente.

Completando o quadro de cantora pop que transmitia, a loira de olhos verdes possuía cabelos curvilíneos derramados ao longo do seu corpo até a cintura, tanto a frente quanto as costas

Era uma figura única e que certamente se destacaria em meio à multidão mesmo sem a imagem estranha que formava ao juntar o seu físico atraente com a metade de baixo do uniforme militar e o sobretudo pesado, poído e antiquado que usava.

- Quem...

- Quem sou eu? Há, eu acho que você tem o dever de saber quem e onde chutou sua bunda morta, monstro. Sabe ler, aberração? E a propósito, vc está a bordo do cruzador Leviathan da federação, sendo levada aos porões de algum laboratório escuro para ser dissecada até o fim dos tempos, eu realmente espero seu saco de ossos nojento!

Bom, certamente não marcara muitos pontos de amizade com essa daí. Mas o que vem ao caso agora é que enquanto a loira falava, exibia uma plaqueta de identificação militar, uma tag que usualmente ficaria no pescoço (que são sempre em pares para que quando o soldado morrer uma fique com o corpo para identificação e outra para ser levado a reporte aos superiores), mas que não se encontrava em pescoço nenhum já que a estrelinha fazia questão de quase esfregar na sua cara. Só de fato não esfregou no nariz dela porque havia um vidro ou uma espécie de campo de força separando as duas, ela percebeu isso claramente quando a loira lhe mostrou a tag. A “tag” possuía a seguinte inscrição:

L. Karin, SPECOP
N.J. 00850710500-A

Lady Karin, lhe veio à mente instantaneamente. Esta continuou matraqueando sobre alguma coisa, mas a visão daquela tag lhe remeteu a uma lembrança. Não exatamente uma lembrança, pois parecia mais uma memória de algo que ela viu e não necessariamente vivenciou, ou mais precisamente, parecia mais a lembrança da imagem mental que fizera de algo que alguém havia lhe contado e esta foi a sensação que lhe tomou...

Um adolescente negro e alto de cabeça raspada, vestindo trajes militares no tradicional verde-camuflagem caminhava pelo centro do alojamento entre as camas com um balde embaixo do braço onde ele parecia procurar alguma coisa. O som que fazia dava a impressão que estava com um balde repleto de tampinhas de garrafa sob o braço.

- Ok cambada, chegaram as tags novas. Cuidem bem delas que a gente manda pra mamãe de vocês junto com um dedão quando vocês passarem dessa pra uma melhor... Pega aí... Altair... xi, acho que a gente não vai mandar esse teu dedo feio não rapá, nem tua mãe ia querer essa coisa... Alvindes... Pega aí... Ayala...

Um objeto que parecia um pequeno chaveirinho metálico cruzou a sala e seu trajeto foi detido ao ser apanhado com um movimento rápido de pulso. Para sua real surpresa, quem apanhara o objeto nesta cena foi uma versão dela própria também adolescente (por volta dos 15 anos) embora já possuísse o mesmo olhar cansado e entediado que a caracterizava sempre que se via no espelho. O cabelo a esta época era moreno como agora e já possuía a cicatriz na face esquerda... Mas se ela estava na cena, pq não lhe parecia uma memória e sim como se lembrasse de algo que alguém lhe contou? Isso não fazia sentido e ficou com a clara sensação de que algo estava estranho ali. Ao menos podia presumir que seu sobrenome fosse Ayala, o que já era um grande progresso.

- Ayala? Tem descendência indígena?

- Eu não tenho descendência* nenhuma e não...

- Ta a fim de ter, gata?

- Ah vai tocar CD de flauta na esquina de alguma praça pra ver se eu estou lá...

Alem dessa estranha sensação, não menos estranho era o flashback de uma cantada em um acampamento militar juvenil misto, o que não fazia o menor sentido. E ainda tinha uma terceira coisa que igualmente não fazia sentido nenhum ali também (talvez fosse melhor começar a contar o que fazia sentido afinal, parecia que não seria uma contagem muito grande). Por que a tal da Lady Karin ficava repetidamente a insultando de monstro, mais precisamente fazendo alegorias ao fato dela estar morta? Isso realmente não fazia sentido, afinal ela não estava morta... achava...

- Morta...?

- -que você... Hey, então o monstrinho não percebeu ainda o que é? – Karin interrompeu sua linha de raciocínio com tremenda alegria - Minha nossa, não achei que seria tão divertido!

Aquela loira já a estada irritando, definitivamente.

- Por favor... – em desvantagem, e sem a opção de chutar ninguém, pois não conseguia se mover, tentou apelar para a educação

- Ok aberração, eu sempre quis fazer isso mesmo de qualqer forma. Caso não tenha percebido ainda, monstro: você está morto.

Entretanto a reação dela não foi nada do que Karin esperava em seus devaneios rancorosos. Na verdade o intencional erro de concordância de gênero a incomodou mais do que a afirmação em si. E não haveria de incomodar, naturalmente, era uma afirmação idiota demais para provocar uma reação de verdade. Como você reagiria se alguém chegasse em você lhe dissesse que você está morto ou que sua pele é azul? Pois é, exatamente isso. Talvez ela tivesse tido mais sucesso com o clássico “Luke, eu sou seu pai”

- Não estou – respondeu categoricamente. Simples assim. Não tinha tempo para esse tipo de palhaçada.

Mas o complemento de Ayala fez desabrochar um sorriso ainda maior e Karin exibiu alguns dentes perolados. Um sorriso, com o perdão do trocadilho, monstruoso na loira. Alguém havia lhe dito que papai Noel não existia, mas no instante seguinte lhe afirmaram que Russel Crowe estava na cidade procurando uma namorada, algo do tipo.

- Não está? Então pode me dizer por que seu coração não bate, porque seus ferimentos não estancam sozinhos, pq seu corpo não produz nenhum fluido ou porque seu cérebro não emite nenhuma freqüência? E esses seus dentes, certamente não são mais humanos. Acredita em mim ou quer o relatório da autopsia para confirmar?

- Autops... – sentiu seu estomago afundar, um flash borrado de memória piscou por um segundo em sua mente, o suficiente para lhe tirar o chão e a encher de dúvidas, mas aquela falta de chão seria apenas o primeiro degrau de uma escada muito, muito longa e cruel de degraus falsos em que pisaria nos instantes seguintes.

- Opa, é mesmo, não existe nenhum relatório da autopsia porque você COMEU a legista e mais 14 pessoas pelos corredores até que Seth e eu te derrubássemos.

- Comi... – de alguma forma, sabia que a loira dizia a verdade. Ou algo muito próximo da verdade.

Além disso podia sentir os buracos de bala em seu corpo assim como podia sentir as presas pontiagudas com a ponta da língua dentro do maxilar fechado e embora não se lembrasse de nada disso, tinha a sensação de que realmente fizera algo impensável e que não tinha como esconder para baixo do tapete antes que a mãe visse. Algo humilhante e constrangedor que segundo a lei de Murphy iria parar no You Tube antes que se pudesse dizer “Nova Inglaterra”.

Essa sensação somada ao fato de ter percebido que não se lembrava de absolutamente nada foram um choque do qual pessoas já se suicidaram por muito menos. Alem do seu nome e de um punhado de sensações sem sentido, não se lembrava de mais nada, constatou horrorizada. E se houvesse mesmo comido pessoas? Por algum motivo que ela não saberia explicar, essa idéia não parecia tão improvável quanto à própria sugeria. Mas este, definitivamente, não era o degrau em falso mais fundo que ela afundaria. As coisas iam piorar mais ainda nos próximos segundos, por mais improvável que pareça...

- Se não acredita em mim que você não é um maldito ghoul do inferno, um fantasma, porque não checa o seu pulso para... Opa, é mesmo, você não tem mais pulso, monstro...

De alguma forma, com um péssimo pressentimento, Ayala captou exatamente o que a loira quis dizer. Na verdade pensou duas vezes antes de olhar, não queria verificar, não tinha nada a ganhar realmente verificando. Mas apenas intimamente sabia que a outra não estava se referindo ao fato dela não ter mais uma freqüência de bombeamento do sangue compassada e sim ao fato de que ela não possuía mais pulso MESMO.

Foi só então que Ayala teve uma noção exata do cenário a sua volta e constatou que não há nada, absolutamente nada que não possa ser piorado. Mesmo você tenha batido o carro do chefe, voado pelo parabrisa e sangrando até a morte sobre uma pilha de esterco seco, as coisas sempre podem piorar (como começar a chover, por exemplo). E mesmo que você esteja morta e tenha assassinado com suas unhas e dentes, e possível mente comido 15 pessoas, sempre tem como piorar.

A sala onde estavam não era muito grande, alem da janela panorâmica (que agora dava a vista completa da estrela Minos cuja luz irradiava o pavor no rosto da morena) não havia nada ali senão um saco pendurado na parede, mais uma sacola de viagem na verdade. Sabia que havia também um vidro ou algum tipo de campo de energia ali, mas este não era visível. Olhando mais atenção, esse saco pendurado na parede era ela, Ayala, presa em uma camisa de força e suspensa junto a parede. Entretanto “ela” se resumia apenas a sua cabeça e ao tronco, pois seus braços e pernas haviam sido amputados. E isso foi mais do que ela poderia suportar.

O horror que sentiu foi indescritível, inenarrável, inexplicável. Ser uma criatura não-morta canibal é algo que a mente consegue conviver com um pouco de esforço e boa vontade (caso não seja destruída no processo). É o tipo que você pode dizer “ok, this sucks” mas tem como bater a poeira e seguir dali em diante. Agora ser mutilada desse jeito era... era... não tinha como explicar. Ela não assistia nem filmes como “O Albergue” porque não suportava esse tipo de coisa, a própria idéia já lhe era aterradora, agora isso acontecer com ela... foi realmente demais...

Karin, no entanto, parecia se deliciar com a cena enquanto explicava com um sorriso tão grande no rosto que só não se podia dizer que era um prazer sexual porque era realmente difícil encontrar alguém que a satisfizesse dessa forma.

-Você entende, não podemos permitir que um incidente como o que você causou na autopsia se repita, então tivemos que tomar providencia para que você não saia por ai matando pessoas... nada pessoal, sabe, monstro?

Mas o que sobrara de Ayala não parecia sequer ouvir a desculpa irônica do protótipo de Cora Cormann, não parecia sequer ouvir seus próprios pensamentos e o fato de que a única coisa que poderia lhe ajudar agora não tinha como acontecer (que seria acordar e descobrir que tudo fora um horrível e terrível pesadelo, ou então trocar um onde ela não acorde amputada pelo menos) não ajudava em nada, só fazia se desesperar mais ainda. Um desespero que não encontrava palavras suficientes no mundo para extravaza-lo. Uma loucura galopante e incontável, incontível.

Karin acrescentou ainda, com o prazer mais sádico e ao mesmo tempo sombrio de quem esperou muito e muito tempo para finalmente pisar nos testículos do valentão do colégio e girar o salto em cima, quem esperou quase a vida toda para dizer essas palavras:

- Agora você entende o que é que vocês monstros fazem com a vida das pessoas...

Na janela ao fundo, a estrela começava a mudar de direção. Como estrelas não mudam de direção assim, ficou claro que a Leviathan estava mudando seu curso...

*Descendência é utilizado para seus filhos,
ascendência é a expressão para se referir que
vc é originário de determinada etnia ou região.
Esse é um dos erros mais comuns
cometidos na língua portuguesa

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Sentada em uma maca da enfermaria, a garota não movia um músculo sequer. Estava enrolada em uma manta térmica, apesar de não se dar conta disso ou mesmo que não sentisse nenhum frio. Apenas alguém lhe colocou ali com aquele cobertor para que se sentisse “atendida”. Fisicamente ela estava bem, mas apenas fisicamente: estava em estado de choque e ninguém tinha tempo em particular para lhe prestar atenção. A enfermaria estava razoavelmente abarrotada para que pessoas com problemas psicológicos tivessem alguma prioridade em detrimento as pessoas com problemas “de verdade”.

A coisa mais importante a se saber sobre o ataque de um fantasma é que não ficam feridos para trás. Devido ao altíssimo grau de contagibilidade, não é um risco que é corrido sob hipótese alguma. Se existe uma coisa que as pessoas aprenderam do modo mais difícil e que os filmes de zumbis tentaram ensinar durante anos e anos, é que não se pode salvar todos. Fantasmas não deixam feridos.

Mas devido ao tumulto no setor H, pessoas haviam sido pisoteadas, caído ou se machucado de diversas formas e todos que precisavam de uma bandagem ou simplesmente queriam matar o trabalho calharam de dar uma passadinha lá. Talvez conseguir algum arranhão para impressionar as garotas.

E justamente por isso que era tão miraculoso o fato de ninguém estar prestando atenção nela, justamente no meio de tanta confusão pois afinal de contas Naya chamava atenção por onde passasse devido ao seu temperamento único, suas formas únicas ou sua raça particularmente... única.

Era extremamente difícil encontrá-la sozinha, e assédio sempre foi uma constante na vida dos isianos de modo geral tanto quanto o medo do homem invisível que mora no céu foi uma constante na vida dos humanos.

Acho que antes de prosseguir e entender porque “único” é um adjetivo que será usado tão frequentemente daqui pra frente, é necessário explicar algumas coisas sobre Naya e seu planeta natal: Isian.

Isian é um pequeno planeta, com cerca de ¾ do tamanho da Terra, localizado dentro da nebulosa NGC 6543, na constelação de Dragão, é o único planeta habitado e habitável de toda a nebulosa até onde se sabe atualmente.

\"Nebulosa

Esse pequeno mundinho possui uma história única, sendo que como já foi dito, este adjetivo que se aplicaria sobre todos seus aspectos. O Isian possui condições climáticas e atmosféricas muitíssimo similares a Reallia ou a Terra, e de fato o desenvolvimento da vida orgânica baseada em compostos carbônicos nesses três mundos se deu de forma muito similar. Se tivesse parado nesse ponto, poder-se-ia dizer que ambos os três seriam amostras de uma mesma experiência inicial, dadas as similaridades das formas orgânicas primitivas e as condições ambientais e climáticas. E o destino que aguardava esse planeta não foi diferente da Terra ou de Reallia, onde muitos estudiosos presumem que estes mesmos fatos ocorridos em planetas são distantes e ainda tão iguais não teria como ter sido um fenômeno natural. Essa é uma teoria muito controversa e ainda luta por seu lugar ao sol no mundo acadêmico galáctico.

Discussões astronômicas a parte, o fato é que assim como aconteceu com a Terra e a Reallia um meteoro mudou para sempre a cadeia evolutiva daquele mundo. Entretanto o meteoro que se abateu sobre Isian não cobriu o céu e fez os grandes animais perecerem dando lugar aos menos e mais aptos como aconteceu com a Terra, mas sim fez acontecer algo bastante... único.

Isian não possui uma estrela propriamente dita (pois uma nebulosa é uma estrela em seu estágio final de vida que começam a liberar muito do material dos quais eram compostos, grosseiramente pode-se dizer que é uma “estrela que está vazando” e cujo passo seguinte será tornar-se uma insignificante estrela anão-branca) e o planeta é um pedaço de matéria que conseguiu capturar com sua gravidade alguns dos gases constantemente emitidos pela nebulosa e com isso formar atmosfera e por conseqüência vida, orbitando ao redor do coração pulsante da nebulosa que provem todo calor e iluminação que a vida em Isian precisa através da radiação, de modo que as formas de vida em Isian possuem uma visão pobre a luz fotolítica a qual estamos acostumados, mas enxergam uma variedade de gamas como raios-X e radiação infravermelha que permite precisão impar.

Mas voltando ao meteoro, assim como aconteceu com a Terra e Reallia, eu dizia que um meteoro se abateu sobre aquele mundo carregado da radiação perniciosa da nebulosa NGC 6543 o que causou um efeito curioso: a nuvem de poeira não cobriu o céu, mas espalhou-se pelo mundo causando uma mutação radioativa única (olha essa palavra aqui de novo) em toda a galáxia conhecida: as plantas não se tornaram venenosas com essa mutação, entretanto ao ser consumidas com carboidratos, como carne, por exemplo, a vida vegetal forma uma reação química potencialmente venenosa. Isso quer dizer que em Isian não existe vida onívora de espécie alguma, o que por sua vez significa que você não vai encontrar buffet de saladas em nenhuma churrascaria lá assim como não vai encontrar porcos ou macacos, por exemplo, e conseqüentemente não vai encontrar as espécies primitivas que originaram estes animais. Inclusive existe muitas superstições e mitologias religiosas em Isian envolvendo as formas primitivas destes dois animais, já que os fosseis foram encontrados e levou muito tempo até a ciência isiana possuir uma explicação sobre porque aqueles animais simplesmente desapareceram. De certa forma, porcos são vistos como o equivalente aos gatos na Terra: em uma idade das trevas não tão distante eram absurdamente taxados como servos do demônio e coisas do tipo. Devido a convivência recente com humanos e reallianos, as supertições contra primatas entretanto perderam sua força devido a incoveniencia.

Então a vida inteligente em Isian não evoluiu a partir de primatas primitivos como aconteceu com a Terra, por exemplo, pois estes foram extintos em poucas décadas após a queda do meteoro, mas sim a partir das criaturas mais poderosas e aptas que restaram sobre a face de Isian: felinos.

E assim como nós possuímos resquícios primitivos de nossos ancestrais (apêndice, alguém?), o mesmo pode ser dito sobre os isianos. Bem mais do que nós possuímos, na verdade. Isso explica porque eles possuem orelhas e cauda felinas, alem de garras afiadas e retrateis (até certo ponto), assim como uma musculatura impar.

Por este motivo, isianos são bem vindos em todas as áreas: seus reflexos e agilidade sem iguais podem ser utilizados em todas as áreas praticamente assim como sua capacidade de enxergar tons de radiações especificas os fazem necessários desde a área militar até a medicina passando por diversos ramos de diversas indústrias. Dizia-se que antes da formação da F.A.I.T.H., o conselho da federação se utilizava uma equipe de isianos para realizar seus trabalhos sujos. Nada disso nunca foi provado, obviamente.

Mas retomando o assunto, infelizmente não são suas habilidades únicas que tornaram os isianos o centro da atenção na vida galáctica por muito tempo. Apesar de serem extremamente valorizadas, não foram as habilidades dessa espécie que a marcou para sempre. Infelizmente.

Para muitas culturas, a idéia de garotas antropomórficas abanando suas caudas para cima e para baixo e miando é um convite dos mais doentios e irrecusáveis a luxuria, de modo que desde a descoberta do verme olho-de-gato, que fez que Isian tomasse conhecimento da vida fora da galáxia e vice-versa o planeta tem tido sérios problemas trafico sexual de seus habitantes.

Por este motivo a federação tem um olho e um braço armado forte em Isian embora isso não tenha resolvido totalmente o problema. Ter uma amante isiana é símbolo de status e poder (e devido a flexibilidade e agilidade dessa espécie, de prazer único também) e muitas pessoas pagariam o que for necessário por uma escrava isiana. E de fato pagam. Muito. Atualmente uma escrava isiana vale uma pequena fortuna no mercado negro e não raramente mesmo uma grande fortuna. Esse é um problema muito sério para a federação e evitar o turismo e o trafico sexual nesse setor da galáxia tem sido um assunto em pauta freqüente na agenda do conselho, pois a questão não é apenas de policiamento já que envolve política social e desenvolvimento (pois a miséria é irmã deste tipo de crime). E não estamos falando de um país e sim de um planeta inteiro, para se ter idéia de como é difícil administrar essa questão. O fato de Isian não possuir um representante a mesa do conselho também torna a questão mais complicada.

Recentemente correm boatos de que o conselho designou um membro da F.A.I.T.H. permanentemente para Isian, algo que nunca ocorreu antes, pois a própria prerrogativa da F.A.I.T.H. é de agentes livres com acesso irrestrito. Sendo isso verdade ou não (como quase tudo que envolve a F.A.I.T.H., não é algo que é facilmente apurável) o fato é que a atividade de traficantes na área diminuiu bastante. Ou os dados estão sendo falsificados para causar um efeito psicológico, não há como saber realmente.

Mesmo nas áreas “civilizadas” da galáxia e teoricamente livres desse tipo de crime, isianas sempre são muito assediadas por onde passam e dificilmente você vai encontrar uma sozinha. E é por isso que aquela cena era tão única e tão rara, Naya estar sentada sozinha e indefesa naquela enfermaria sem ninguém prestando atenção nela era com efeito uma acontecimento raro. Era apenas uma questão matemática de tempo até um predador se dar conta disso. Não muito tempo.

Naya seria atraente mesmo que não fosse uma catgirl de olhos dourados ferinos. Baixinha e gordinha, mas de uma forma que só a tornava mais atraente e fofinha, possuía rosto de boneca, seios fartos e um quadril empinado que ostentava uma bela cauda peluda acinzentada, mesma cor de suas orelhas felinas no topo da cabeça de cabelos verdes curtos e cacheados.

Ela estava na enfermaria após o que havia acontecido na sala de autopsia em que viu sua colega, amiga e veterana ser grosseiramente estripada por um fantasma diante de seus olhos. Aquilo a havia colocado em um estado de choque e desde então ela não dissera palavra.

Após exames rotineiros, minuciosos e até certo ponto exagerados, foi constatado que ela não fora infectada. Na verdade sequer fora arranhada, por motivos que ninguém sabe explicar o fantasma simplesmente passou batido por ela e seguiu seu rastro de destruição. Tirando o choque do trauma ao ver pessoas sendo dilaceradas diante dos seus olhos, ela estava fisicamente bem. Curiosamente, ninguém parecia ter se dado conta até então da improbabilidade disso.

Como era apenas uma questão de tempo, com efeito, alguém percebeu. E como são essas coisas que só a vida faz, calhou de ser a pessoa errada. Mais efetivamente falando, provavelmente seria a pior pessoa possível para aquele momento.

Ceres Draco Mondragon era um tipo de pessoa tão estranha e esquisita que chegava a ser esquecível. Alguma coisa nele impedia que as pessoas tivessem o efeito da suspensão da descrença, de modo que por mais que você se esforce nunca vai gostar dele mais do que se fosse um personagem de um filme e quando termina (ou quando ele sai da sua vida), você apenas dá de ombros e diz “pois é... mas continuando...”. Alguém desinteressante assim.

Naquele momento não havia nada de especial que necessitasse a sua atenção. Ceres não era exatamente membro da tripulação da Leviathan e sim renomado engenheiro graduado da faculdade de tecnologia de Beta Aquarii. Não renomado a ponto de groupies pedirem autógrafos a ele na rua, mas seu nome não era de todo desconhecido no meio cientifico. Talvez fosse mais conhecido se sua personalidade ajudasse, mas se tinha uma coisa que a personalidade de Ceres nunca faria por ele, com certeza essa coisa seria ajudar.

A Leviathan estava experimentando um protótipo de camuflagem que virtualmente faria a nave imune à detecção por qualquer espécie de radar de modo que a única maneira de encontrá-la seria avistar visualmente uma nave escura na imensidão do espaço. Boa sorte com isso.

O projeto foi amplamente criticado por todos os lados, com a quantidade de créditos gastos em um único mero cruzador poderiam ser construídas três Nau-capitaneas (flagships). Entretanto o conselho abraçou o ideal visionário do Dr. Ceres e falou em uma nova era de combate espacial, um patamar completamente novo. E quem não gostaria de sair na frente em uma nova forma de pensar batalhas? Não é preciso voltar muito na história da humanidade para saber que os que não fizeram isso se arrependeram amargamente como bem mostram os combates aéreos da primeira guerra mundial e os U-boats da segunda. Quando os primeiros modelos dos tanques Panzer alemães passavam por cima da cavalaria francesa, ficou bastante claro que alguns custos de pesquisa são não só justificáveis como extremamente necessários.

Ainda sim era muito dinheiro para colocar na mão de alguém tão pouco carismático (até porque o orçamento da federação era na maior parte do tempo uma questão muito mais política do que técnica) e essa era uma questão muito controversa nos bastidores da federação, mas sinceramente isso interessava a Ceres bem pouco, pois não havia nada que podia efetivamente fazer e sua política era de simplesmente não se preocupar com as coisas fora de seu alcance. Porque deveria? Que bem lhe traria? Se não fosse aprovado pela federação, alguém iria querer. Quem, não lhe interessava desde que ele recebesse os créditos, a fama e o dinheiro. O seu trabalho consistia em fazer a coisa funcionar, onde seria usado não importava. Era um cientista, não um político e tudo que lhe cabia fazer era convencer as poucas pessoas certas e isso ele já havia feito. O conselho acreditava nele e isso era mais do que suficiente.

Enfim, para todos os efeitos, este era o motivo daquela viagem: testar a camuflagem da Leviathan em condições reais e por isso ele estava abordo, supervisão do seu projeto. Mas não precisava ser um gênio para perceber que uma simples viagem de teste não requeria um membro da F.A.I.T.H. abordo (o que significava que aquela viagem de mera não possuía nada) assim como uma parada não-programada (ou ao menos não a ele informada, o que não era estranho de q. modo) em uma zona de quarentena e um fantasma tocando terror em um dos compartimentos da nave acho que completava tudo com chave de ouro. Algo estava muito errado ali, mas enquanto não interferisse no seu trabalho não lhe interessava realmente. Mas o que o interessava afinal de contas?

Bom, Ceres se interessava por muita pouca coisa que não fosse ele mesmo ou algo de seu mundinho estranho e doentio. Não vou mentir ou ser politicamente correto e dizer que não é bem assim, porque era realmente assim mesmo: ele era uma pessoa egoísta a esse ponto.

Por este motivo, com um pirulito no canto da boca e de mãos nos bolsos do jaleco branco e cuidando para não pisar na divisa das grades que compunham o corredor da nave se dirigia a enfermaria naquele momento ocioso. Não para ajudar, não para ser prestativo, não para ser útil, mas sim na esperança de encontrar exatamente o que ele acabou encontrando. Não, minto, o que ele encontrou foi muito mais do que ele esperaria encontrar em seus sonhos mais molhados. Aparentemente às vezes coisas boas acontecem a pessoas más gratuitamente, a vida não é engraçada?

- Naya, você está bem? – ele perguntou em tom intencionalmente gentil ao sentar em um banco ao lado da maca onde a catgirl estava sentada na beiradinha, olhando para algum ponto muito distante com uma expressão perdida. Intencionalmente não ficou na linha de visão da garota, aparência não era o seu ponto forte e deve se construir uma base sólida antes de se apresentar os defeitos.

Naya não respondeu nada, apenas continuou olhando para longe e murmurou alguma afirmação. Mas o aparente desinteresse não o afetou negativamente, pelo contrário, Ceres estava bastante exultante em ter uma oportunidade de encontrar a gata sozinha, era apenas sorte demais para ser verdade. Que ela estava em estado de choque e que provavelmente havia passado pela pior experiência de sua vida, ele simplesmente não se importava. Como eu disse, esse é o tipo de pessoa que Ceres Draco Mondragon é.

- Olha, eu imagino como deve ser horrível tudo que você passou, mas se você precisar de qualquer coisa... se tiver qualquer coisa que eu puder fazer... qualquer coisa mesmo...

Ceres sentiu vontade de se estapear mentalmente. Aquele papinho furado era demasiadamente idiota para os seus padrões, comunzinho demais para pessoas comunzinhas o que ele definitivamente não se considerava. Enfim, era praticamente humilhante essa conversa mole. Mas considerou o feito acertado, porque apesar de suas habilidades, Naya não era uma criatura particularmente brilhante e ele não sentia que erraria ao subestimar a capacidade intelectual da Isiana. Não que ele não pensasse isso de quase todas as pessoas de qq forma...

- Puxa Ceres... obrigada... – ela disse voltando seus enormes olhos dourados para ele pela primeira vez. O cientista não era exatamente feio, tinha um rosto razoavelmente bonito e o conjunto barba por fazer mais óculos lhe conferiam um ar de definitiva masculinidade intelectual. Contra si havia o fato de ser gordo (130 kg para 1,80m), mas sob o jaleco branco isso não era uma questão tão relevante no momento. E considerando que Naya não estava pensando em NADA disso, era menos relevante ainda.

Apesar do pouco tempo de convivência, menos de duas semanas durou aquela missão, Ceres possuía um habilidade nata de reconhecer e classificar as personalidades das pessoas. Seu julgamento usualmente era correto superficialmente, e nunca havia ocorrido necessidade de um julgamento mais profundo. O próximo passo lógico era causar uma demanda para que ele próprio pudesse suprir as necessidades, uma artimanha antiga porem, todavia ainda deveras eficiente.

Em termos mais simples, seu plano era desestabilizar ainda mais a gata para poder consolá-la. Isso iria arranhar um coração já ferido, bastante cruel para ser feito intencionalmente, mas Ceres... bom, acho que você já deve ter pego a idéia da coisa a essa altura.

E foi o que fez...

- Puxa Naya, eu nem sei o que dizer... imagino como deve ter sido difícil pra você assistir as coisas terríveis que você deve ter presenciado... ainda mais de alguém que você se dava tão bem...

B-I-N-G-O!

As defesas da Isiana desmoronaram mais rápido que um castelo de cartas armado na entrada do refeitório de uma siderúrgica na hora do almoço. O coração dela sentiu a facada e seus olhos se encheram de lagrimas, mas não sentiu raiva do cientista por ele fazê-la pensar aquelas coisas, pelo contrário, achou nobre ele se preocupar mesmo que pensar naquilo lhe doesse muito. O que era exatamente o que ele esperava que acontecesse.

Só que ao contrário do que Ceres pensava, embora ela nem imaginasse que ele pensasse isso, Naya não era burra. Bom, certamente não conseguiria desenvolver as coisas que ele desenvolve nem que sua vida dependesse disso, mas não quer dizer que ela fosse idiota realmente.

Naya sabia o que era, como parecia e o que as pessoas pensavam dela. Nunca havia ficado completamente sozinha ou sem amigos ou mesmo sem um convite para qualquer coisa no fim de semana, mas ela sabia perfeitamente que isso tinha haver diretamente com o tamanho enorme dos seios dela e com o fato dela ter orelhas peludas e fofinhas no alto da cabeça ou então o fato de miar manhosamente a cada três palavras. Ela sabia dessas coisas, não era uma completa idiota.

Mas a doutora Kanzac fora a primeira pessoa a tratá-la diferente. Ela havia sido escolhida pessoalmente pela doutora para ser sua assistente imediata abordo da Leviathan logo após Naya ter concluído seu ano de residência em Hospital do Centro Militar de Defesa de Nova Judah. A doutora Yulia foi criticada por escolher uma aluna recém-formada como assistente para uma nave que em breve seria tão importante. Naqueles dias, o projeto do escudo de camuflagem do Dr. Ceres havia sido a recém aprovado pela assembléia antes de ser enviado ao conselho, mas a Leviathan já havia sido designada como protótipo para que fosse instalado o sistema, a proposta ainda seria levada ao conselho e se fosse aprovada, como tudo indicava e acabou sendo, em menos de um ano a Leviathan seria tão famosa que todos os olhos da galáxia estariam sobre a Leviathan e sua tripulação...

Muitas criticas e coisas realmente horríveis foram ditas sobre a doutora, inclusive que ela estava escolhendo sua aluna isiana apenas para satisfazer seus fetiches homo-zoo-eróticos, mas a doutora Yulia não deu ouvidos e manteve Naya como sua assistente. Não porque ela fosse isiana ou porque ela tivesse seios grandes, mas sim porque confiava na garota e acreditava nas habilidades e potencial dela. Ninguém nunca antes havia tratado Naya dessa forma, confiado tanto assim nela e isso significava imensamente para a garota. O sentimento de gratidão e compromisso para com a doutora era algo que ela jamais poderia esquecer ou mesmo retribuir.

E agora... agora a doutora estava morta. Ela viu aquele monstro se levantar e arrancar com os dentes o intestino grosso da única pessoa que havia lhe dado crédito e valorizado pelo que era por dentro. E para piorar, tudo havia sido culpa dela! Se ao menos tivesse apertado a amarra mais forte, talvez a doutora... a única pessoa que... talvez... ela não...

Naya não sabia mais o que fazer ou como se desesperar mais, não sabia como conviver com a culpa do que fizera, ou lhe ocorreu que talvez não merecesse mais viver...

- Não foi sua culpa.

Olhou assustada e viu que Ceres havia sentado ao seu lado e tocado o seu ombro com a delicadeza de quem tinha medo que ela fosse quebrar. Mas Naya não se importou com isso, estava totalmente surpresa e abstraída pelo que ele havia dito

- O que?

- Não foi sua culpa, Naya.

Para azar da catgirl, a capacidade de raciocínio de Ceres era proporcional a frieza de eu coração, e isso é muita coisa. Ele sabia por cima que alguma coisa havia atacado o setor H da nave, que era onde Naya e a doutora estavam realizando a autopsia no cadáver que trouxeram da parada não-programada na Terra (ou não informada a ele, como já foi dito). Este foi o único elemento diferente nas ultimas horas, de modo que a associação era óbvia.

Se Naya era assistente, então era encarregada de preparar a operação o que significa que se a coisa saiu andando da sala, era muito provável que ela se sentisse culpada e achando que poderia ter evitado tudo isso. Se ela estava pensando exatamente isso Ceres não tinha certeza, mas resolveu chutar e marcou um gol de placa.

Naya piscou os olhos, incrédula, olhando para o cientista. Como ele poderia saber o que ela estava pensando...? E como ele podia afirmar que a culpa não era dela? Queria tanto, mas tanto mesmo que ele estivesse certo, mas a verdade é que...

- A culpa não foi sua. Não importa o quanto você tenha amarrado ou deixado de amarrar, estamos falando de uma espécie nova de fantasma que passou 20 minutos levando tiro e matou mais 14 soldados treinados no caminho. Ouvi dizer que só o próprio Seth conseguiu parar essa coisa...

- Só o... Seth? – ela perguntou chocada

- Foi o que eu ouvi. Não faria diferença nem que você tivesse soldado a criatura. Alem do mais, como você iria saber? Então não se culpe,

A eloqüência do aquariano somado a segurança que ele falava como que tivesse certeza e ainda o peso que ele estava tirando dos seus ombros era algo sem preço... isso fez com que a gata suspirasse aliviada e abrisse um quase sorriso. Envergonhada de quase sorrir num momento como aquele, virou o rosto para baixo, mas não pode controlar a cauda que ondulava mais aliviada.

Ceres por sua vez, estava muito preocupado em segurar para ela o peso que ela carregava no peito, mas ele pensava isso em um sentido muito mais físico e menos metafórico. Olhando por cima da cabeça da garota-gato, sendo que ele é mais alto, se permitia observar despudoramente o decote avantajado, alvo e macio subindo e descendo com a respiração. Respirou fundo, aquela cena lhe causou um frio na barriga e uma pressão no baixo vente. Quando a viu mexendo a cauda um pouco mais animadinha, sorriu triunfante um sorriso frio por sobre a cabeça dela. Passou o braço ao redor do ombro dela, em um movimento falsamente solidário. O mais difícil já havia feito...

Naya sentiu-se intimamente protegida e um pouco mais aliviada consigo mesma. Ainda estava infinitamente triste pela perda da mentora, mas ao menos não pensaria em querer morrer tão cedo. Não se importou quando Ceres meio que a abraçou, mas não viu maldade nenhuma no ato. Era apenas adequado ao momento, ele se importava com os sentimentos dela, não?

Mas o que ela não fazia idéia é que se havia algo no mundo com o qual ele não poderia se importar menos... era com quem matou a menina Isabella, mas os sentimentos dela vinham logo em seguida...

Embora não soubesse ou sequer desconfiasse, no instante seguinte Naya acabou sendo salva pelo gongo por este round. As luzes da Leviathan piscaram por um instante e quando voltaram a sua plenitude, algumas pessoas ficaram assustadas pois esta queda de energia só acontecia quando naves são atingidas ou quando há uma queda de energia muito grande. Geradores quânticos de fase não perdem a força simplesmente porque alguém liga o chuveiro.

Naya olhou assustada ao redor sem entender o que estava acontecendo, mas Ceres olhou diretamente para a janela e ela soube que ele sabia o que estava acontecendo (ou eu poderia dizer que ela soube que ele sabia que ela não sabia).

- As estrelas... estamos virando... o escudo...

Ceres se levantou de pronto da maca e seguiu em direção a porta, para um instante depois um bip e uma mensagem o chamando a ponte confirmarem o que ele havia imaginado. Aquilo não o deixou chateado de todo, um tempo para digerir e aumentar as fantasias em sua cabecinha oca de gata era tudo que ela precisava agora, pensou a respeito de Naya. Antes de se levantar, entretanto, virou-se para a isiana e disse:

- Fique aqui, é mais seguro.

Ela imaginou que ele estava se preocupando com ela, mas ele apenas não queria ser incomodando enquanto fazia o seu trabalho.

Esse é o tipo de pessoa que Ceres é.


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