F.a.i.t.h. escrita por C__


Capítulo 5
Chop Suey




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ATO 4 – CHOP SUEY

Naquela noite nada se movia mesmo o vento parecia esperar que algo acontecesse. Os fartos campos de trigo permaneciam imóveis, nenhuma caricia eólica concedida aos seus grãos. O moinho de vento não rodava, apenas rangia impaciente. No pasto, os animais apenas dormiam sob o “luar” pálido emitido pelo planeta que orbitava aquele mundinho pacato e que parecia existir em outra dimensão se formos pensar nas grandes cidades onde o tempo não para.


As ruas do pequeno centro da cidade, desertas. Eventualmente algum gato malandro ousava cruzá-las correndo, mas isso não era o suficiente para quebrar o manto do silencio. Aquele era um mundo que dormia e apenas grilos e sapos entoando sua melodia ao fundo pareciam querer realmente clamar do luar o domínio daquele pequeno vilarejo rural.

Ou não.

Passos apressados na calada da noite, podia-se ouvir claramente os chinelos simples batendo contra o chão de terra batida. Passos rápidos e leves, quase desesperados que quebraram uma esquina e foram engolfados na escuridão atroz e implacável da calada da noite preta. Assim como os fantasmas, a noite não faz reféns.


Feixes de luz, mais precisamente identificáveis como os focos circulares de lanternas, varriam cambaleantes o chão de terra batida das ruas daquela pequena cidadezinha. Os passos que se seguiam as luzes não tinham nada de leves ou desesperados: eram implacáveis, pesados e cruéis.


De uma forma quase militar, marchavam de forma rígida pela escuridão. Uma mistura apavorante de grunhido e mugido cortou o ar, desafiando a noite modorrenta:


- Por aqui, grunf!


Ofendida, a noite logo conjurou o silêncio atroz e mais uma vez as palavras foram engolidas pela escuridão. O que a noite não sabia, entretanto, é que aquele seria seu ultimo momento de triunfo sobre os tolos mortais que ousavam desafiá-la.


O céu sorria estrelado e os grilos cantavam o canto do cisne para a paz daquela noite. Mais passos afobados, ratos das trevas fugindo da luz com desespero tal. Pararam, respiração entrecortada, coração pulsante. Podia-se quase ouvir a batida do coração daquelas frágeis criaturas que, naquele momento, temiam a luz mais do que qualquer coisa. Tentavam desesperadamente calar sua respiração para que não as denunciassem, mas não poderiam calar seus corações palpitantes.


Uma nova corrida, mais uma seqüência de “ploc ploc plocs” simples contra o solo, a madeira estalando ao ser pisada mas dessa vez as luzes se viraram nesta direção. Os grilos calaram e os passos aumentaram, deixando a cautela para trás. A respiração entrecortada cortou o ar da noite, a madeira rangeu novamente mas desta vez foi uma porta que bateu logo em seguida. O som não foi alto, mas naquela noite parada era quase equivalente ao nascimento de um novo mundo.


As velas da pequena igreja se acenderam e então se pode observar no ambiente simples uma criança acompanhada por um adulto. Bem, não exatamente criança no sentido que imaginamos imediatamente da palavra. Seria mais uma visualização de alíens filhotes, com enormes olhos prateados brilhantes, fios de cabelo branco com pequenas antenas no topo da cabeça levemente alongada e pele um tanto quanto reptiliana.


Mas deixando isso de lado, voltemos ao de que as velas se acenderam e iluminaram da forma dançarina e bruxuleante que só as velas sabem fazer as crianças naquela capela simples que dispunha de alguns altares (onde estavam as velas), alguns bancos de madeira e isso era tudo. As chamas iluminavam pouco e com esforço alcançavam uma grande e pesada cruz ao fundo, mas apenas a parte inferior desta donde se podiam ver os pés de um homem pregado junto a mesma.


A criança, a que acendeu as velas, se ajoelha diante do altar e posta suas pequenas mãos polidactilias juntas. O adulto fica parado em algum ponto entre o altar e a porta, apesar da fisionomia alíen mesmo um humano poderia discernir que estava visivelmente preocupado, possivelmente com a idéia de que se elas estavam se escondendo de algo talvez acender velas não fosse a coisa mais adequada a se fazer naquele momento. Entretanto hesita em questionar essa atitude perigosa, se por medo ou respeito ou a figura na cruz ao fundo era difícil dizer.


Não era algo razoável de se fazer, mas a fé por sua própria natureza não é algo razoável de qualquer modo...


Então as portas se abriram com um estampido, um vento serelepe entrou faceiro e as chamas dançaram, mas acabaram não apagando. A criança que estava orando junto ao altar não se moveu, mas o adulto se virou imediatamente apavorado para a porta onde duas figuras nada graciosas entraram marchando e deixando um rastro de pegadas de lama.


Descrever o que são warthogs para humanos mais do que o próprio nome já diz é um tanto complicado, mas se puder, imagine se puder uma espécie de minotauro, mas com cabeça de javali e físico de segurança de boate. Warthogs são figuras humanóides que possuem presas (usualmente quebradas em alguma briga e isso será considerado um sinal de masculinidade) saindo pelos cantos da mandíbula, uma pele áspera e cruel e um focinho repulsivo. Posteriormente será dito mais sobre essa exótica espécie e o seu mundo, mas por hora o que precisa ser dito é que eles são exatamente tudo o que parecem ser.


Deram alguns passos capela adentro, a armadura de combate pesada rosnava baixinho ao se mover e este era o único som naquele instante. As chamas pareciam bastante hesitantes sobre se apagavam ou não, e enquanto isso continuava dançando fazendo com que a iluminação oscilasse tanto quanto se a cena fosse dirigida por um estudante de cinema.


Um dos warthogs ficou de guarda onde estavam, destravou e engatilhou a pesada arma que carregava, mas o outro fungou (ou grunhiu, era difícil dizer) avançou capela adentro na direção da pequena alíen que orava junto ao altar, ignorando completamente o adulto ao arremessá-lo na direção ao dos bancos de madeira. Apenas alguns sonoros passos densos depois, chegou ao fim do altar e agarrou a pequena alien pelo tronco com um único movimento de mão. A bem da verdade poderia esmagar aquele pequeno xeno-inseto se desejasse, mas algo pareceu o interessar.


A criança permanecia de mãos postas e dizia alguma coisa. O primeiro pensamento que o warthog instintivamente teve foi de que era algum tipo de bruxaria ou feitiço, mas logo a razão lhe disse que isso não podia ser, pois estas coisas não existiam. Passou a outra mão acenando em frente ao rosto da criança, mas esta não acompanhou seu movimento, ficando bastante claro que se tratava de uma criança cega. Aquilo o fez emitir um som de deboche pela compaixão dos fracos para com os inválidos e inúteis e aproximou mais a criança do seu rosto horrível para ouvir o que ela dizia. Mesmo atingida por uma lufada de hálito pestilento que faria um lírio do campo murchar, a criança alien não interrompeu o que dizia...


- ...father into your hands, I commend my spirit, Father into your hands....

- Bah, então não vai nem tentar fugir? GRUNF! Já se conformou? Sabe o que eu acho sua merdinha? O que eu acho é que tu não acredita nesse teu “suicídio justo” e que vai implorar pela sua vida miserável porque sabe que o teu deus imaginário não vai te ajudar.


O warthog largou a criança inseto alien cega com força contra o altar, o que a fez bater as costas e isso doeu um bocado mas mesmo assim ela levantou do chão com um arquejo (e nenhuma reclamação alem disso apesar de muito provavelmente ter quebrado algo) mas isso não pareceu importar agora. Apenas prostrou de joelhos e tornou a juntar as mãos.


- MAS AINDA NÃO ENTENDEU?!? – ele berrou com raiva ao dar uma senhora bofetada na cabeça da pequena alien que fez ela rolar para a esquerda.


A criança o rosto do chão e se tornou para o warthog mais uma vez, metade do seu rosto estava coberta por um fluido viscoso esverdeado ainda que ela não parecesse demonstrar nenhuma reação quanto a isso. Quando o warthog deu mais um passo furioso em sua direção, ela então falou com sua vozeia frágil:


- NÃO TEM MEDO DE MORRER GRUNF!?! – ele gritou enquanto pegava o rifle da bandoleira e apontava para a criança, emitindo outro daqueles guinchos/fungados horríveis – EU VOU TE MOSTRAR QUE O TEU DEUS NÃO EXISTE OU MELHOR AINDA: ELE SIMPLESMENTE NÃO DÁ A MINIMA!!

O que aconteceu nos instantes seguintes pareceu ter se passado em camera lenta para a pequena que se escondia sob os bancos: até então ele apontava para a arma para a criança cega, com um movimento de braço como uma espécie de Schwarzenneger mutante do inferno virou na direção dos bancos e metralhou.

Para a criança cega, cada tiro foi como uma pequena explosão, dezenas de pequenas granadas naquela capela escura (não que para ela alguma coisa não fosse escura de q. forma). Entretanto como ela logo percebeu que não foram nela os tiros (isso é algo que se percebe muito rapidamente em todos os casos), mesmo sem ver a conclusão lógica gritante é de que os tiros foram para...

- HÁ! GRUNF!!! Então... onde está o seu deus agora?

- FATHER! FATHER! FATHER! FATHER!

A criança cega correu na direção dos bancos e naturalmente tropeçou sobre eles, caindo de boca no chão. Mas um pouco a mais de sangue esverdeado em seu rosto não importava agora, enquanto ela tateava desesperada no escuro a procura do que fora baleado. Um desespero branco tomava conta de seu peito, o fim do mundo estava acontecendo diante de seus olhos mortos, ao menos o fim do seu mundinho. O que você sente quando TUDO que você possui e acredita lhe é tirado em uma única noite? Como continua a existir um ser quando o próprio conceito de esperança é estripado para fora de si?

A cor do desespero é branco.


- FATHER! FATHER! FATHER! FATHER!


O warthog parecia se divertir bastante com aquela cena, o controle da situação e o poder eram absolutos. Nada podia vencê-los, nada podia impedi-los de fazer o que bem entendessem, nada podia contra eles. Nem fantasmas, nem a federação, nem a F.A.I.T.H., nem mesmo deuses imaginários. Ele ria uma risada gostosa (para os padrões de sua espécie, claro), uma risada a muito abafada, contida e amordaçada. Mas agora tudo era diferente, agora tudo iria mudar para ele e sua raça. Finalmente, não haveria mais medo...


- Pai, porque me abandonastes? A teus olhos, em seus pensamentos, me abandonou, em seu coração, ai pai...


O pequeno inseto em lagrimas chamou sua atenção novamente, tateava completamente desnorteada no escuro enquanto berrava palavras desesperadas. Finalmente havia caído a ficha que o deus dela ou não existia ou a havia abandonado, já era hora então de acabar de acabar com aquele circo e terminar ali.


Puxou a arma contra o corpo, engatilhando o rifle e apontou na direção da pequena. Ao ouvir este som característico, suas antenas se ergueram e ela parou de tatear a procura. Sabia o que ia acontecer agora, o que aconteceria nos instantes seguintes, embora não entendia o porquê daquilo estar acontecendo afinal de contas. Onde errará? Será que não orou com fé o suficiente ou da forma correta? Não havia se comportado da forma adequada? Havia desagradado a Deus e por isso ele não as salvava ou impedia o sofrimento? Por quê? Por quê? Por que Deus ao menos não respondia, só dessa vez, só uma resposta, por quê? Perguntou mais uma vez a Deus porque ele a abandonou quando mais precisava dele.


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15 minutos antes...

- Acorde! Acorde!

Ayala abriu os olhos com dificuldade, havia chorado por algumas horas até cansar, literalmente e desacordar. Tendo em vista que suas lágrimas eram na verdade sangue, este coagulou em sua face e tornou um tanto difícil o ato de abrir os olhos. Por um momento, um breve instante antes de entender sequer que estava sendo sacudida, quis acreditar que tudo havia sido um sonho ruim, mas o fato de que ela acordara novamente como um monstro mutilado não mudou. A bem da verdade, as coisas pioraram um pouco e ela apenas desejou pura e sinceramente que todo aquele pesadelo acabasse,


Ainda estava no estagio da negação, que são mecanismos de defesas temporários do Ego contra a dor psíquica diante das experiências traumáticas. A intensidade e duração desses mecanismos de defesa dependem de como a própria pessoa que sofre e as outras pessoas ao seu redor são capazes de lidar com essa dor. Em geral, a negação não persiste por muito tempo. O próximo estágio é a raiva, e esse era o propósito da coisa toda por hora.



Estava na mesma camisa de força (que até onde ela compreendia, era tudo que vestia embora pudor fosse a ultima de suas prioridades agora), mas não estava pendurada

em uma parede e sim presa em uma prancheta de transporte, com uma mascara amordaçando seu rosto. Em outras palavras, era uma versão mutilada de Hanibal Lecter e isso é o bastante para acabar com o dia de qualquer um.

- Acorde! Pegue um escova e coloque um pouco de maquiagem, esconda essas cicatrizes para disfarçar os espantos...


Mesmo do fundo do poço desesperador psicológico que se encontrava, pode reconhecer a voz de Karin mesmo atrás do tom irônico. Ela não poderia pegar escova nenhuma mesmo que não estivesse presa ali e aquilo a fez se sentir mais miserável ainda.


Karin andava em círculos ao redor dela, como um lobo espreitando a sua presa e embora ela não pudesse ver quando a loira passava por detrás dela, ainda podia ouvir os sons pesados de seus passos. Dessa vez Karin estava com a armadura completa de soldado, carregando capacete embaixo do braço embora ainda fosse possível divisar suas curvas parecia bem menos uma cantora pop com o cabelo amarrado.


Ayala não se importou em perguntar sobre o fato de estar em alguma espécie de hangar ou coisa do tipo ou mesmo com o fato de estar presa em uma prancha vertical para transporte como um monstro extremamente perigoso. Aquela mordaça metálica mantinha sua mandíbula fechada e o confinamento de sua boca causava uma sensação desagradável de claustrofobia, apesar dela acabar de descobrir que não precisava realmente respirar a sensação desesperadora de asfixia permanecia a mesma se puderem imaginar como seria mas falaremos mais sobre essa sensação posteriormente, seja como for se sentia mais como um porco assado com uma maçã na boca e logo seria servido como o prato principal. Mas apesar disso não sentiu vontade de protestar nem vontade alguma.


Estava simplesmente derrota e miserável demais para qualquer coisa que não fosse chorar ou querer morrer. A esperança de que tudo aquilo fosse apenas um terrível pesadelo e que ela simplesmente acordaria bem em uma cama quentinha com seus braços e pernas minguava a cada instante...


Mal percebeu quando Karin parou diante de si, colocou as mãos na cintura jogando o sobretudo para longe do quadril de forma elegante e apoiando o peso em uma perna enquanto flexionava ligeiramente a outra.


Seu tom de voz não parecia nada irônico ou revoltado agora (ou mesmo uma combinação de ambos) e era a primeira vez Ayala ouviu a voz da outra desta forma. A bem da verdade soou bastante preocupada.

- Seth... aí vai você criar outra fábula...

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- Vamos embora, quero ver se pego um pouco de ensopado de frango com broto de feijão antes de dormir... – resmungou o warthog que guardava a porta

- Comovente, não? – grunhiu com ironia o warthog para o colega – Eu particularmente sempre choro quando anjos merecem morrer...


- Pai em tuas mãos eu entrego meu espírito...

– rezou baixinho a criança alíen enquanto as molas da arma que apontava para ela se espreguiçavam preguiçosamente em resposta a pressão infligida sobre o gatinho

E no instante seguinte, o céu brilhou como dia com um clarão arrebatador e ambos os warthogs estavam mortos.



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