F.a.i.t.h. escrita por C__


Capítulo 3
Ghost in the Shell


Notas iniciais do capítulo

Capítulo 3



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ATO 2 – GHOST IN THE SHELL

.... this is not a drill, repeat: this is not a drill. There is a ghost in the shell, evacuate imediatelly. Repeat: this is not a drill...

- Andando, andando, não parem, não parem, andando!

Por baixo do uniforme militar, por debaixo da expressão séria de quem sabia o que estava fazendo, por debaixo do militar que gesticulava para as pessoas circularem havia apenas um homem. Um homem como eu e você que a estas horas pensava nos seus dois filhos em Eredor e tinha medo.

- Eu disse andando, circulando gente não parem!

Por detrás do rígido treinamento militar que lhe conferia serenidade e liderança sobre as pessoas “comuns”, havia a duvida, o medo e a hesitação de quem não fazia idéia do que estava acontecendo e muito menos do que ia acontecer. A dúvida que só aqueles que podem perder tudo sentem na alma. A encubação do desespero.

Então ele se agarrava ao que tinha de sólido, real e concreto: suas ordens. Fora ordenado para ajudar os civis a evacuar o compartimento H da Leviathan e era isso que ele estava fazendo. Embora soubesse tanto quanto eles o que estava acontecendo e estivesse talvez tão assustado quanto eles, era uma pessoa diferenciada que tinha missão diferenciada. Ali ele não era um mero mortal que poderia ser destroçado pelo fantasma que vagava pelos corredores da Leviathan, ele não era apenas alguém como os outros. Ele era diferente, ele era especial, ele era uma referencia na multidão, uma autoridade.

.... this is not a drill, repeat: this is not a drill. There is a ghost in the shell, evacuate imediatelly. Repeat: this is not a drill...

- Senhor, senhor, o que está acontecendo?

- Não há tempo para explicações, senhora. Apenas continue andando com os outros até o próximo compartimento.

Não raramente um civil parava de caminhar para lhe perguntar o que estava acontecendo, completamente perdido e assustado. Ele sabia tanto quanto o civil, entretanto como já foi dito ali ele era uma autoridade, um bastião da ordem em micro-cosmo inundado pelo caos. E isso o fazia se sentir bem.

Ele não era mais apenas aquele garoto mirrado que sofria bullying na escola e que se alistou nas forças militares da Federação apenas para aprender a se defender. Agora ele um baluarte da esperança, um paladino da ordem. Mesmo que apenas tivesse que gesticular e ordenar as pessoas que se deslocavam como gado, mesmo apesar do medo e da possibilidade real de morrer a qualquer momento e nunca mais voltar a ver seus filhos, aquele foi o momento mais alto de sua vida até então, o momento pelo qual esperou a vida inteira, o momento do qual ele se orgulharia de contar aos amigos, filhos, vizinhos e netos sobre como permaneceu calmo. Provavelmente aumentaria a história um pouco. Depois que se aposentasse, ele seria apontado como alguém que encarou um fantasma de frente e sobreviveu. Sua vida, sua própria existência, naquele exato instante, in that very moment, se justificava.

Era um homem realizado e...

Disparos. A multidão passando por ele entrou em pânico como uma manada de gnus que fareja um predador do outro lado do rio onde bebia. Não havia mais ordem, as pessoas se empurravam, gritavam, pisoteavam os que caiam em direção a saída.

Ao fundo, o barulho de tiros aumentava proporcionalmente ao que aumentava o pânico da multidão e a cada novo som alto desmoronava um pouco do seu mundo. Não havia nada que ele ou qualquer um pudesse fazer agora para manter a ordem ou ajudar alguém, a turba era uma entidade com vida própria e fora de qualquer controle.

O som de combate se intensificou e já estava na próxima “esquina”, do corredor, fazendo com que o pânico se instaurasse por completo. Vendo seu poder diminuir progressivamente naquele micro-cosmo, fez a única coisa que seria humanamente imaginável: restaurar seu tentar poder. Cego pela sede daqueles poucos instantes de poder, pois o poder vicia mais do que um Amish que tomou Coca-Cola pela primeira vez...

Mas não, não era só isso. Não era tão simples assim.
Como certo personagem disse uma vez: “humanos são... interessantes”

Ele também queria ajudar, queria fazer a diferença e não ser só mais um na multidão. Quando lhe perguntassem o que ele fez quando ele se deparou com um fantasma, o que ele diria? Que seguiu a multidão?  Todo ser no fundo se acha especial (exceto os que não se acham claro) e pensa que quando a verdade chegar vai ter uma chance, com ele vai ser diferente do que aconteceria com um anônimo aleatório qualquer. Porque nós sempre achamos que a nossa morte não vai ser bruta e gratuita e sim cheia de propósito e melodrama.

Obviamente, as leis da física não a mínima para o que você acha que só acontece com os outros, como esse vídeo comprova:

http://www.youtube.com/watch?v=WgFj9Q8vVjo

Mas aí é que está a questão realmente interessante: até que ponto vai o altruísmo pelo próximo e em que momento começa o puro hedonismo por si mesmo? Até que ponto ele queria ajudar e até que ponto ele queria apenas ser especial? É possível traçar essa linha? Humanos são de fato... Interessantes.

Fosse como fosse, a multidão havia passado e ele estava parado na junção entre os corredores, na esquina. A frente dele, seus colegas parados em posição de tiro como se fosse fuzilá-lo, mas isso não faria sentido o que só podia significar que aquele perfilhamento para atirar não era para ele e sim... atrás dele... oh dear...

\"\"

Engoliu em seco uma ultima vez, e olhou para seus colegas. Sabia o nome de cada um deles, estavam a meses dormindo no mesmo alojamento e almoçando juntos. Sabia de suas histórias, sonhos e problemas. Eles não eram apenas soldados genéricos de um filme, cada um era um ser humano único e insubstituível, eram seres humanos como ele. Ouve um segundo de tensão silenciosa, aquele meio instante depois do seu time tomar um gol e você espera que o juiz anule ou qualquer coisa aconteça e desfaça aquela coisa horrível, mas nada acontece. Ele não queria estar ali, parado de frente para seus colegas e de costas para algo terrível. Seus colegas não queriam que ele estivesse ali, gostavam dele, era um bom sujeito e bom amigo. Mas não havia nada que ninguém podia fazer e todos sabiam o que aconteceria nos segundos seguintes não havia força ou fé nesse mundo que poderia salvar sua vida.

Dizem que quando você é decapitado seu cérebro funciona por aproximadamente 15 segundos ainda e você pode viver o horror de saber que sua cabeça foi cortada e que você vai morrer em poucos segundos. Se você só tivesse poucos segundos de vida, qual seria seu ultimo pensamento?

Virou-se, tentar fugir era inútil. Você simplesmente não “corre” de um fantasma, não a essa distancia. Estava morto e sabia disso. Fez então a única coisa que seria humanamente possível de ser realizada ou mesmo pensada naquele momento: se virar e ver o seu algoz.

Uma garota nua, ou que um dia fora uma, um pouco mais baixa do que ele pálida como o gelo aterrorizante como a morte. Entretanto seu aspecto não era atraente mesmo que seja uma regra sagrada para os homens que toda mulher por volta do peso ideal é atraente haja o que acontecer, esta não era. Possuía dentes terríveis (no sentido de malignos e não de feios) e seu peito estava aberto literalmente. O tórax havia sido aberto como um armário de cozinha e dentro pulsava alguma coisa não menos terrível. Olhando para os peitos dela (embora não no sentido que a expressão é comumente usada), não teve tempo de ver seus olhos (isso também acontece muito comumente com os homens, mas novamente não nesse tipo de situação especifica). Tudo que viu foram os dentes terríveis tomando todo seu campo de visão e então estava no chão.

- Pots ti ekam esaelp...

Embora não tenha conseguido entender ou mesmo ouvir direito o sussurro, a próxima coisa que percebeu é que estava no chão caído de costas. Curiosamente, não sentia dor alguma e para ser honesto não sentia muita coisa, além disso, senão frio... hm, então morrer não era tão ruim assim, só era frio...

De onde estava não conseguia mover nenhuma parte do corpo logo não podia escolher o que via, pois estava como um espectador de uma câmera que caíra de lado no chão. Tudo que via não era muito a não ser o próprio piso metálico do compartimento H da Leviathan, onde sua cabeça se encontrava. Via também uma poça carmim ir tomando proporções cada vez maiores, era uma poça com o seu sangue que ia se espalhando pelo deck.

Não viu quem ou o que o atingiu, mas viu um pé feminino pálido, desnudo (que outrora deveria ter sido macio e delicado, mas agora era simplesmente... terrível) passar por ele pisando no seu sangue e seguir em direção aos militares. Aquilo meio que representava alguma coisa simbolicamente, mas não conseguia pensar em nada agora, pensava apenas que estava muito frio e que gostaria de uma coberta...

Se lembrou de quando era uma criança, e de tudo que viveu até ali. Ao contrário do que imaginava seus últimos pensamentos não foram para seus filhos ou sua esposa e nem para o seu time do coração. Seus últimos pensamentos foram...

“Eu tinha 13. Era um dia da escola. Oitava classe.

Alguém me acordou no segundo andar, não recordo quem. Eu me apressei e comecei a me vestir, descia as escadas para não perder o ônibus para a escola quando ouvi a voz da minha mãe. Soou diferente, infantil. Porque eu aproximei do seu leito ouvi suas palavras, "mas eu não quero levantar, mamãe!". Olhei a minha esquerda e percebi que ela falava com a minha avó que estava parada na entrada. Minha mãe em sua cama olhava para cima.

Era a última vez onde eu a vi viva.

Eu não soube o que fazer. Eu corri pela porta da frente e me apressei para não perder o ônibus.

Por essa idade, eu já tinha visto e lido as coisas que se relacionam à morte e diziam que as pessoas às vezes regressavam à infância imediatamente antes de morrer. Eu soube que era o que estava acontecendo com a minha mãe.

Eu soube que estava morrendo.

Não recordo muito mais sobre a caminhada até a parada de ônibus, mas eu recordo de ver a ambulância passando por nós no ônibus após a minha rua. "Eu quero saber onde aquela ambulância está indo...” alguém perguntou inocentemente. Eu soube, naturalmente.

Assim eu fui à escola e esperei. Eu soube que, mais logo ou mais tarde, alguém viria até mim e diria "necessitam vê-lo na diretoria." Eu soube que eu andaria a diretoria e alguém estaria lá para me dizer que minha mãe havia falecido.

Recreio. Eu estava no playground. Um dos professores andou até mim e disse, "necessitam vê-lo na diretoria.". Depois de uma caminhada que pareceu durar horas, vi meu pai e meu tio Melvin do lado de fora da diretoria. Papai gritou debaixo de um lenço: "faleceu," disse. "sua mãe faleceu"

Eu estava anestesiado. Tinha estado anestesiado o dia inteiro. Minha mente não podia absorver a verdade toda. Eu tinha ido à escola porque era o que eu tinha sido dito para fazer, mas estava apenas andando através do mundo, porque eu sabia que estava perder a que eu mais amei --- a única pessoa no mundo que me amou.

Não tinha nenhuma idéia de onde ir depois daquilo, do que fazer senão continuar. Na verdade, ninguém mais soube o que fazer qualquer um. Nada no mundo fez o menor raio de sentido.

Levou anos para aceitar a situação e para sentir totalmente sua morte. Para gritar. Para sentir a perda extraordinária.

Eu não gritei no funeral --- nem meu pai, o bastardo que era, me havia sido apresentado uma única vez antes disso. Naturalmente, a respeito disso ele me disse que talvez eu era feliz porque estava ausente dele. O mundo revolveu sempre em torno dele, suponho.

Mas a verdade era que eu não poderia gritar porque a perda estava oprimida em demasia. Havia demasiada emoção para que um menino de treze anos de idade compreenda, ajuste-a. Eu estava ferido. Não somente minha mãe morreu, mas uma parte de mim, também.

Nos dias que se seguiram ao funeral, eu tive um sonho. Minha mãe veio-me, cercada na luz mais bonita do que eu jamais a tinha visto sempre antes. "não se preocupe, filho," disse. "eu estou bem"

Qualquer um poderia pensar que era um truque do meu subconsciente, a imaginação de um menino pequeno. Mas eu senti, e sinto ainda, que era realmente ela. Ajudou-me imensamente. Eu soube que me amava ainda, me muito ainda me mesmo após a morte.

Eu sinto uma falta terrível dela. Há muitas coisas na minha vida que eu gostaria de ter compartilhado com ela. Havia muito dos meus planos, das minhas conquistas e até dos meus erros que eu gostaria que ela testemunhasse.

Dia 08 de junho seria seu 52º aniversário.

Eu te amo, mãe.”

Havia muito pouco sangue no seu corpo aquela altura e poucas funções do seu cérebro ainda funcionavam. Os sons ao fundo eram borrões indistintos e não saberia dizer o que estava acontecendo ou quem estava vencendo. Na verdade mesmo que soubesse seu cérebro não conseguia ordenar uma simples linha de pensamento aponto de compreender que significava estar vencendo, era apenas uma vela que tentava permanecer acesa enquanto a cera estava acabando.

Entretanto um último pico de adrenalina fez com seus sentidos captassem uma ultima imagem, uma ultima cena. Um vulto saltou sobre seu corpo muito rapidamente e então ele ouviu gritos. Mas não como antes, estes eram diferentes.

Não gritos, mas sim verdadeiros urros vindos de seus colegas. Diferentes de todos os anteriores, não eram gritos de dor, de desespero ou de agonia. Era um grito de esperança. Um urro repleto de alívio, de exultação, de alma lavada, de justiça. Era o grito do gol da virada aos 47 do segundo tempo, era o grito de ter derrotado o ultimo chefe do jogo, era o grito de ir à forra com valentão do colégio. Era o som da mais densa e tenebrosa treva sendo desmantelada pela singela chama de uma vela. O que quer que houvesse passado por ele, foi o ultimo raio de sol desmoronando o ultimo muro do ultimo inferno.

Alguns instantes depois um baque pesado e a menos de um palmo de sua cabeça fora jogada outra cabeça (se com corpo anexado ou não, isso ele não conseguia ver). Era a garota pálida, havia sido atirada perto dele. Daquela distancia podia ver o quanto a pele clara dela estava esfoliada e desgastada, mas sobretudo, o quanto os olhos negros dela eram profundos, cansados e tristes. Metade do rosto dela estava afundado na poça de sangue dele, que não por acaso ela mesma causara, mas ele tinha uma boa visão da outra metade.

Só então ele percebeu que ela chorava.
Por sua face maltratada escorriam lágrimas de sangue.

- Que bom – ele sussurrou a ela, cansado, com suas ultimas forças – Ainda há esperança... still there is... faith...

Quem é ele?
Isso não é importante. Ele foi alguém cuja vida pode não ter significado nada para mim ou você e tantos outros, mas ainda sim ele fez o que pode e o que achava certo. Ele se esforçou, se empenhou, suou, sangrou e amou, e no fim pouco disso ou quase nada na verdade vez qualquer diferença. Ele foi alguém que nasceu, viveu e morreu, e que logo seu legado será consumido pelo tempo. Ele foi alguém comum.

Quem é ele? Ele é o carteiro, ele é aquele colega que você não lembra o nome, ele é a pessoa que levanta e você pega o lugar dele no ônibus. Ele é todas as pessoas que desaparecem todos os dias e que não serão lembradas pelo mundo todo. Ele é aquela pessoa que é atropelada e você diz “que barbaridade”, antes de esquecer e seguir com a sua vida. Ele é apenas mais alguém e justamente por esse motivo ele é a pessoa mais importante do mundo.

Porque o mundo pode existir sem atores, astros do rock ou jogadores de futebol. Mas não pode existir sem pessoas como ele.

Quando uma chama nasce, todo universo rejubila em alegria.
Quando uma chama se apaga, todo universo lamenta com grande pesar.

Uma vida que se perde não pode ser substituída ou continuada. É o maior crime de todos, e ao mesmo tempo sim a maior beleza que existe, pois faz de cada vida única, especial.

Quem é ele?

Ele é minha mãe.
Ele sou eu.

Agora ele está morto e sua história termina aqui.
Entretanto este não é o fim dessa história, é apenas o começo.

Life is just a dream, you know
that\'s never-ending


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