Guardians escrita por Luciane


Capítulo 2
Capítulo 2 - Arianas




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Rio de Janeiro, Brasil.

23 horas e 30 minutos.

-Eu quero levar uma vida moderninha... Deixar minha menininhaaaa sair sozinhaaa...

Olhando torto para o rapaz ao seu lado, Shermmie se perguntou se poderia haver no mundo qualquer pessoa que conseguisse cantar pior.

Maurício, entretanto, ignorava totalmente tanto os pensamentos quanto o olhar da sua amiga e, com os fones do ‘mp3-player’ nos ouvidos, continuava a cantarolar:

-... Mas eu me mordo de ciúmeeee... Mas eu me mordo de ciúmeeee...

Shermmie bufou e continuou a olhar para o casarão, até, finalmente, avistar o que eles tanto esperavam: Anne, um pouco atrapalhada, saía por uma janela lateral, carregando, como podia, três enormes malas.

-Dá pra acreditar numa cena dessas? – Resmungou Shermmie.

Maurício tirou um dos fones e olhou para a amiga:

-Disse alguma coisa?

-Olha pra aquilo! – Ela apontou para Anne e Maurício seguiu os olhos nessa direção – Consegue aceitar que uma criatura dessas possa ser uma Guardiã?

-Nem todos têm a nossa “sorte”, de ter um tirano opressor como treinador desde criança.

-Essa daí, nem com o melhor treinamento vira guerreira. Pra isso precisaria morrer e nascer de novo. ...Saca só, ela tá procurando pela gente.

-Até aí tudo bem, né Shermmine? Ela não tem a obrigação de enxergar duas pessoas escondidas dentro da casinha de um cachorro. – Ele olhou para trás deles, onde um grande pastor alemão estava amarrado pelas patas e pelo focinho, e sorriu. – Er... Foi mal aí, amiguinho. Já, já a gente te solta, tá?

Shermmie saiu da casinha do cão e acenou para Anne:

-Aqui, sua tapada!

Ao avistá-la, a loira se aproximou, arrastando as malas pelo chão:

-Como vocês conseguiram entrar aqui? – Ela olhou para o estado em que se encontrava o cachorro – Er... Esse cão é bravo.

-Que nada! – Brincou Maurício, dando dois tapinhas na cabeça do animal, que o encarava com profunda raiva – É um bom garoto. Qual o nome dele?

-Eu não sei. – Respondeu Anne, ainda perplexa.

-Como não sabe o nome do cachorro da sua casa?

-Não é um bicho de estimação, é da equipe de segurança. Aliás, onde estão os seguranças?

-Dormindo. – Respondeu Shermmie, tranquilamente – Fiz um acordo com o Mau: ele cuidava do cachorro e eu dos seguranças. Foi moleza. Agora me responde, garota, tá achando que vai pra onde? Pra um cruzeiro de férias? Me diz, pra que tantas malas?

-Você não me deu uma previsão de quanto tempo ficaríamos fora, então trouxe o básico pra pelo menos um mês.

-Tem roupa aí pra dez pessoas se vestirem por um ano.

-Deixa isso pra lá, Shermmine – Pediu Mau, saindo de dentro da casinha e trazendo consigo duas mochilas, entregando uma delas à amiga – Melhor irmos logo, senão perdemos o vôo.

A garota concordou:

-É, e não queremos que isso aconteça. Vamos logo encarar nossas vinte e tantas horas de viagem.

Dizendo isso, virou-se e seguiu em direção ao portão de saída da mansão. Maurício ajudou Anne, pegando duas de suas malas, e seguiu a amiga.

A loira olhou por um momento para a sua casa. Suspirou, e já ia seguir os outros dois quando olhou, perplexa, para o cachorro que se sacudia, tentando se soltar.

-Er... Desculpe, “cachorrinho”... Espero que alguém apareça pra te libertar.

Pegou uma mala no chão e correu atrás de Shermmie e Maurício.

************

Tóquio, Japão.

11 horas e 40 minutos.

Sofie acordou com o toque do celular. Ainda sonolenta, tateou embaixo do travesseiro à procura do aparelho. Atendeu, ainda com os olhos fechados.

-Sim?!

Ela logo reconheceu a voz masculina do outro lado da linha.

-Bom dia. Está tudo bem com a Hikari? Ontem você saiu daqui dizendo que estava preocupada com ela.

-Saiu pra uma festa e foi atacada na rua, mas está bem.

-Ela se machucou?

-Um pouco. Apesar de estar sem energia, ela luta bem.

-Você a treinou bem. Recebi notícias da Europa. Como sabe, a Guardiã atual de Gêmeos é da Itália e a de Libra é irlandesa, mas ambas vivem há alguns anos em Madri. Virão para cá em alguns dias.

-Idades?

-Vinte e um e vinte e dois anos.

-Ótimo. Não quero crianças lutando. Sabe que vocês contam com um Guardião a menos, será difícil.

-Daremos um jeito. A propósito, sobre aquilo que Shermmie te disse ontem...

-Depois falamos sobre isso.

-Tudo bem. Nos vemos à noite?

-Talvez.

-Certo. Então... Tchau.

-Tchau.

Desligando a ligação, Sofie levantou-se da cama, saiu do quarto e atravessou a cozinha até passar pela porta de acesso à garagem. Foi seguindo os gritos que ouvia de sua filha, que treinava dando socos contra uma pilastra de madeira maciça.

-Hikari, tenha postura.

Ouvindo a voz da mãe, Hikari parou o que fazia e a olhou, vendo-a sentar-se num banco de madeira, em um canto da garagem. Foi até ela.

-Só pra variar, dormiu mais do que a cama, não é?

-Só pra variar, você já começa o dia me fazendo mal-criações.

Hikari balançou os ombros. Sofie pegou uma pequena toalha que estava ao seu lado, no banco, e jogou-a para a filha, que a agarrou.

-Já falei, Hikari, precisa melhorar a sua postura. Do jeito que é impulsiva pra socar, logo estará com problemas de coluna.

-Isso é o que menos importa. O negócio é matar youkais, né?

-De preferência, sem se matar junto.

A garota não respondeu. Sentou-se ao lado da mãe e, após um momento de silêncio, olhou-a e indagou:

-Vai me contar a verdade agora? Ontem à noite, você estava com o Toshihiko, né?

-Isso te incomoda?

Hikari riu.

-O quê? O fato de a minha mãe transar com um cara que tem idade pra ser meu irmão? De forma alguma.

-Ele é dez anos mais velho que você, Hikari. E não tem idade para ser meu filho.

-Tem certeza? Doze anos é uma diferença considerável. Mas eu não estou te julgando, mãe. A vida é sua, faça dela o que bem entender.

-Fique fria, não pretendo me casar com ele.

-Não gosta dele?

-Gosto. Mas não para assumir qualquer compromisso. Somos amigos, apenas.

-Hm... Eu não tenho o costume de transar com os meus amigos.

-Foi por isso que perdeu o sono?

-Quem disse que eu perdi o sono?

-Fomos dormir mais de quatro da manhã. Você não costuma dormir menos de oito horas numa noite, nem acordar e vir direto para o treinamento. Não acredito que perdeu o sono pensando sobre minha relação com o Toshihiko, nem que ficou tão assustada com o youkai que te atacou. Certo que você nunca tinha estado cara a cara com um, mas já estava preparada para essa situação. – Ela olhou para a filha – Diga, o que está se passando na sua cabeça pra te fazer perder o sono?

-Você não vai entender.

-Não mesmo, se você não me contar.

Hikari ficou muda, pensativa. Respirou fundo e virou o rosto, encarando a mãe. Ainda levou alguns segundos, parecendo criar coragem, antes de confessar:

-O que me incomoda é não saber quem é o meu pai.

Sofie pareceu incomodar-se com a resposta, tanto que tornou a virar o rosto para frente, pondo-se a fitar o chão.

-Por que de tempos em tempos você se encuca com isso, do nada?

-Vou “encucar” pelo resto da vida, até que você me dê uma resposta.

-Não há resposta a ser dada, Hikari.

A garota se levantou, irritada.

-Como não, mãe? É difícil dizer alguma coisa? Qualquer coisa? Eu só quero uma resposta, você não precisa entrar em detalhes. Não sou mais criança, vou entender seja lá qual for essa resposta. Até se você disser que fez uma inseminação artificial, ou que eu nem sua filha sou, você me encontrou numa lata de lixo, assim que chegou ao Japão, e me pegou pra criar.

-Por Deus, Hikari. “Lata de lixo”?

-Então o que aconteceu, mãe? Por acaso meu pai era um grande amor da sua vida, que foi embora quando eu nasci e te deixou numa pior? Era um canalha qualquer? Foi só sexo sem compromisso e você não soube onde encontrá-lo quando descobriu estar grávida... Ou não quis encontrá-lo, ou o encontrou e ele nem quis saber? Ou vai ver que você nem sabe quem ele é.

-Hikari, você está me ofendendo.

-Não, mãe. Estou apenas dizendo que vou aceitar a resposta que você me der. Ele está vivo, está morto... Você nem precisa me dar um nome, é só me explicar como tudo aconteceu e por que eu não o conheci. Você não pode ter engravidado do vento.

Finalmente, Sofie encarou a filha e disse, num tom alto de voz:

-Chega, Hikari. Eu já disse que não quero que você fique insistindo nisso. Eu não tenho nada para te contar.

Hikari sustentou o olhar da mãe por um momento, antes de, irritada, começar a andar em direção à porta que ligava a garagem à cozinha.

-Vou sair.

-Aonde vai? – Quis saber Sofie.

-Não te interessa. Eu odeio você! – Foi a resposta da garota, que saiu, batendo a porta.

Sofie suspirou.

-Ela tem o meu gênio... E isso irrita.

************

Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro, Brasil.

0 hora e 20 minutos.

-Vôos atrasados... Ninguém merece!

-Shermmine, senta e relaxa!

-Se errar meu nome mais uma vez, vai levar um murro na cara!

Em geral, Maurício retrucaria e daria prosseguimento à briga. Entretanto, ao notar que sua amiga, de fato, estava MUITO nervosa, optou por ficar quieto.

Ele estava sentado numa cadeira, ao lado de Anne, enquanto Shermmie, impaciente, andava de um lado para o outro diante dos dois.

-Ela é sempre assim? – Perguntou Anne, com a voz baixa.

Maurício a olhou, sorriu e respondeu:

-Só quando está acordada.

-Ah... – Ela abaixou os olhos, tristemente.

Maurício percebeu isso e deixou de sorrir.

-Ânimo aí, loirinha. Pensa que estamos indo viajar, vamos conhecer o Japão! ...Digo, eu vou conhecer o Japão, né? Você com certeza já deve conhecer. Aposto que já rodou o mundo inteiro.

-Não. Eu nunca saí do Brasil.

O rapaz franziu a testa, intrigado.

-Sério? Com a grana que você tem? Por quê? É medo de avião?

-Acho que nunca estive em um avião. ...Digo, tenho lembranças vagas de ter andado uma vez, quando era muito pequena, acho que pouco antes de minha mãe morrer. Mas não lembro muito bem.

-Se tem tanto dinheiro, por que nunca viajou?

-Não sei.

-...Hm... Eu andei de avião uma vezinha só na vida, quando meus pais me despacharam pro Rio.

Anne o olhou, curiosa.

-“Despacharam”?

-É. Sabe, eu sou de Goiás, minha família está toda lá. Meu pai era Guardião, antes de mim, mas tem muitos problemas de saúde, decorrente da última vez em que lacraram a barreira.

-Isso causa problemas à saúde? – Assustou-se a loira.

Mau riu e a tranquilizou:

-Não em regra geral. É que eles estavam em onze, faltava um dos Guardiões. Alguns não suportaram e morreram, esgotaram a energia do corpo tentando lacrar a barreira... Mas não teremos esse problema. Até onde eu saiba, todos os doze atuais estão vivos, e bem vivos! ...Mas então, por causa desses problemas, meu velho não pôde me treinar. Por isso me despacharam pro Rio, para ser treinado pelo Guardião mais próximo, o pai da Shermmine.

-É Shermmie! – Corrigiu a morena, ainda andando de um lado para o outro.

Anne e Maurício piscaram, perplexos. O rapaz comentou:

-Êta ouvido tuberculoso essa daí tem.

-Então... Vocês foram treinados? – Perguntou Anne.

-É, pelo pai dela. Ele foi um bom mestre.

-Fala sério. – Disse Shermmie, parando de andar e virando-se para os dois - Meu pai é um tirano opressor, isso sim. Você, garotinha, tinha que ter tido um treinamento com o nosso, iria ver o que é bom pra tosse. Se tornaria uma garota como eu: forte, totalmente independente, sem frescuras ou super-proteção.

Nisso, um celular tocou. Shermmie o tirou do bolso e, quando viu o número no visor, fez careta, antes de atender, desanimada:

-Fala, mãe! ...Tô, mãe, eu tô bem. – Virou-se de costas para os dois e andou alguns passos, passando a falar com a voz mais baixa – Eu tô levando um casaco no avião, sim, mãe. ...Não, mãe, eu não vou me resfriar. ... Não, mãe, não quero que você venha ao aeroporto. ...É, eu tenho certeza, mãe! ...Mãe! ...Mãe, não insiste! ...Mãe, pára de me tratar que nem um bebê, que coisa! ...Tá, tá, eu também. ...Como “também o quê”? ...Mãe, não vai me fazer ficar falando isso, tem gente olhando... Tá, mãe... ‘etemo’... Como não entendeu? ...Tá, ‘Euteamo’, tá legal? ...Tá, sei que sou seu leãozinho lindo... Sei que sou sua princesa... Tá, mãe, eu vou me cuidar... Tá, chega, tchau! – Ela desligou a ligação. Quando se virou, deparou-se com Anne e Maurício a olhando. A garota, perplexa; o rapaz, com um sorriso zombeteiro nos lábios. – Quié?

-Coisinha mais fofinha da mamãe! – Zombou Maurício.

-Quer morrer? – Indagou Shermmie, fuzilando-o com o olhar.

-E quem iria me matar? A super-garota independente, sem frescuras ou super-proteção?

-Tá falando do que, moleque? Daqui a pouco sua mãe tá ligando também.

-Eu sei disso, mas não fico tirando onda com os outros.

-Eu sou uma guerreira de verdade. Mas também sou amada pela minha família.

Ao ouvir isso, Anne baixou de novo o olhar, tristemente. Maurício percebeu isso e se levantou, indo para perto de Shermmie e falando, ao seu ouvido:

-Dá pra dar uma trégua? Pára de pegar pesado com a menina.

-Ela tem que aprender a ser menos mimadinha.

-Mas você não precisa ser cruel. ...Vou comprar algo pra gente beber. – E saiu de perto das duas, indo até uma lojinha.

Assim que ele saiu, Shermmie voltou os olhos para Anne e viu que ela, de fato, havia sentido aquela última provocação.

-Será que peguei pesado demais?

************

Tóquio, Japão.

12 horas e 40 minutos.

Mal a maçaneta da porta do apartamento se moveu e Hikari já foi empurrando e adentrando a sala.

-Hikari... O que está fazendo aqui?

A garota olhou para o rapaz que fizera a pergunta. Ele permanecia parado próximo à porta, olhando abismado para aquela que havia, praticamente, invadido a sua casa.

Era um japonês, de vinte e sete anos de idade. Tinha os cabelos lisos e negros, com uma franja que caía sobre os olhos da mesma cor. Era um tipo que facilmente arrancava suspiros femininos por onde quer que passasse, ainda mais da forma com que estava vestido, apenas com uma samba-canção.

-Isso é jeito de se vestir? – Indagou a garota.

-Eu estou na minha casa. – Respondeu Hayato Toshihiko.

Ela bufou, apontando severamente o dedo indicador para ele e fazendo cara de nojo.

-E aposto que nem tomou um banho depois que transou com a minha mãe, não é? ...Não chega perto de mim, isso é nojento!

-Hikari! Se não quer respeitar a minha casa tudo bem, mas pelo menos não se refira desse jeito a sua mãe.

-E por que você a defende, hein? Que droga, parece até um cachorrinho dela. – Ela deixou-se cair sentada num sofá e abaixou a cabeça.

Hayato fechou a porta e se aproximou, sentando-se na mesinha de centro, bem diante do sofá onde Hikari estava.

-Qual o problema com a sua mãe dessa vez?

-Todos. Pra começar, eu só tenho dezessete anos e já sou uma encalhada. Ela tem quase quarenta e tem caso com um garotão gostoso.

-Você realmente não está bem, Hikari. Não é de seu feitio me elogiar.

-Você é um idiota, mas não posso negar que é bonito. – Ela o olhou nos olhos – Não percebe que ela está usando você? Jura que não se importa com isso?

Ele respondeu seriamente, e com firmeza:

-Eu amo a sua mãe, Kari.

-Mas ela não ama você. Sabe disso, né?

-Sei. E não me importo.

Ela fez bico.

-Tudo bem se você quer bancar o idiota. Eu não tenho nada a ver com isso. – Ela fez uma pausa, parecendo começar a pensar em tudo o que tinha feito e dito – Aff... Quem me ouve falando isso pode até pensar que estou apaixonada por você.

Hayato sorriu, carinhosamente.

-Eu sei que não é isso, Kari. Conta, qual foi o motivo da briga dessa vez?

-O de sempre. Ela se recusa a me contar qualquer coisa sobre o meu pai.

-Kari... Sua mãe sabe o que é melhor pra você. Se ela não quer te falar nada, é porque acha que é uma forma de te proteger.

-Deixa disso! Ela nem gosta de mim. Pra ela, eu só importo por ser uma Guardiã.

-Sabe que não é isso.

Hikari pareceu pensar por um minuto, antes de concordar:

-Tá legal, eu sei que minha mãe me ama. Mas convenhamos que é uma forma bem estranha de amar, contando mentiras.

-Ela não te conta mentiras. Apenas te omite fatos, é diferente.

-No fim é tudo a mesma coisa.

-De qualquer maneira, não acha que está sendo muito dura com ela? Ela é sua mãe e você não parece estar respeitando-a como tal.

-Você me conhece, Toshihiko. Sabe que quando estou nervosa, eu ajo e falo sem pensar, e quando eu vou ver... Já foi. ...Desculpe por ter vindo te incomodar. Eu sempre corro pra cá nesses casos, né? Desde que eu era pequena.

-Pequena você ainda é.

Fazendo-se de irritada, ela bateu com a palma da mão contra a testa do rapaz.

-Ah, vai à merda!

Os dois riram juntos.

-Eu te levo em casa. No caminho, conversamos mais.

-Tá. Mas, antes disso... Vista uma roupa, por favor.

Sorrindo, ele se levantou e foi para o quarto. Seguindo-o com os olhos, Hikari também sorriu. Não poderia negar que, por vezes, sentia-se incomodada com o fato de sua mãe ter um caso com um homem tão mais jovem, mas sabia que, no fim das contas, os dois até que combinavam bastante.

Na maior parte do tempo, Toshihiko fazia um tipo calado, sério. Apesar de ser um sujeito bonito, parecia não ter muita noção da própria beleza. Não a usava como arma para conquistas, até porque já havia sete anos que não tinha olhos para qualquer mulher que não Sofie. Os dois não eram namorados, nem possuíam qualquer tipo de compromisso. Nutriam uma amizade e uma cumplicidade muito fortes um com o outro e, no caso do rapaz, também uma paixão não correspondida. Mesmo o nível de intimidade a que os dois haviam chegado não atrapalhava em nada a amizade, ao contrário, parecia apenas fortalecê-la. Para Sofie, ele supria desejos carnais e, até mesmo, parte da carência afetiva. Para Hayato, a francesa era muito mais que isso... Era uma paixão platônica. Os dois se gostavam e se respeitavam, cada um ao seu modo.

Para Hikari, no entanto, Hayato era uma espécie de irmão mais velho, o cara com quem ela, desde os onze anos de idade, conversava sobre absolutamente tudo. Um irmão, não um pai, de forma alguma... E isso a fazia achar ainda mais estranho saber o tipo de relacionamento íntimo entre ele e Sofie.

-Toshihiko! – Ela gritou.

-Fala! – Respondeu ele, do quarto.

Ela fez careta, antes de pedir:

-Tome um banho, tá? Eu sei o que você e minha mãe fizeram... Embora nem queira imaginar COMO fizeram.

-Pode deixar.

Ela escutou um leve riso seguindo a reposta. Com isso, ela também riu.

Terminando de tomar banho e se vestir, Hayato saiu do apartamento, acompanhado por Hikari. Ele queria fazer o caminho para a casa dela, mas a adolescente, percebendo essa intenção, sempre dava um jeito de desviar o trajeto, entrando em uma ou outra rua.

Iam conversando, com a garota contando em detalhes a briga que tivera com a mãe pela manhã:

-...E foi isso. Eu tô sempre insistindo no assunto, mas ela parece que se incomoda com isso.

-Se a incomoda, por que você insiste?

-Não fale como se fosse uma besteira qualquer, Toshihiko. Estamos falando do meu pai.

-Um pai que você nem conheceu não deveria ser motivo pra você brigar com sua mãe.

-Não conheci por culpa dela. Eu nem sei se ele sabe da minha existência, Toshihiko. Vai ver ele está em qualquer lugar, sem nem saber que teve uma filha. Acho que ficaria feliz em me conhecer.

Hayato parou de andar e olhou seriamente para a garota.

-Está fazendo de novo, Kari.

-Fazendo o quê?

-Fantasiando. Dá um tempo nessa sua cabecinha fértil.

-Você agora falou igual a minha mãe. Ela que diz isso, que eu sou muito sonhadora, que crio fantasias demais. ...Acho que ela é que é muito séria, fixada na realidade. Parece que ela não lembra do passado nem planeja o futuro... Ela só se prende no agora.

-Na minha opinião, ela tem toda a razão em ser assim.

-Qual é, Toshihiko! Pessoas sem sonhos são amarguradas demais. Minha mãe chega a extremos. Sabia que ela não gosta de olhar fotografias antigas? Conhece alguém que não goste de fotos? Nem dela, nem de ninguém. Ela deve ser a única mãe do mundo que não tem fotos da única filha, quando bebê.

-Ela não gosta de se prender a lembranças. É o jeito dela.

-Até no que diz respeito à filha? ...Sabe que... Às vezes acho que sou adotada.

Toshihiko riu:

-Está fantasiando de novo. O fato de você ter herdado a energia de Áries já deveria lhe servir como prova da maternidade dela. E, mesmo que não servisse, a semelhança na personalidade das duas é evidente.

-É... Tem razão. ...Tá, eu sou filha dela, mas com quem? Tudo o que sei do meu pai é que ele é japonês... Mas vamos combinar que isso não me ajuda em muita coisa.

-Hikari... Esquece isso, tá? ...Olha, tem uma sorveteria ali. Não quer tomar um sorvete?

-Pode ser. Compra lá pra gente, eu espero aqui.

Hayato sorriu e atravessou a rua. Hikari o seguiu com os olhos, pensativa.

-Ele sabe de alguma coisa... - Murmurou.

Mas logo os olhos dela se desviaram para um rapaz, que aparentava ter vinte e poucos anos e passava em frente à sorveteria nesse momento.

-Uau... Que gatinho.

Para sua surpresa, ele veio diretamente em sua direção. Intrigada, ela ainda olhou ao redor, para constatar se não havia por perto mais nenhuma pessoa. O que aquele sujeito queria com ela? Olhou melhor para ele, tentando reconhecê-lo, mas tinha certeza de que nunca o havia visto na vida. Certeza, porque, um cara como aquele, ela jamais esqueceria.

Ele parou diante dela, ainda sério.

-Er... Oi? – Disse Hikari, confusa e sem graça.

-Venha comigo. – Foi tudo o que o estranho disse, num tom de arrogância que irritou a garota, quando ela imaginou quais seriam as intenções dele.

-Qual é, meu? Eu nem te conheço. Acha que tá falando com quem? Vá procurar uma mulher da vida!

Ele, no entanto, em um passo rápido juntou seu corpo ao dela. Hikari ia empurrá-lo, mas sentiu a ponta de uma lâmina encostar-se à sua barriga.

-Eu disse pra vir comigo. E bem quietinha, sem escândalos.

Ela começou a suar frio.

************

Pé ante pé, Sofie desceu as escadas para o empoeirado porão da casa. Ao terminar, mexeu no interruptor, constatando assim que a lâmpada estava queimada. Não era de se admirar, levando em conta o tempo em que ninguém ia ali.

Enquanto andava, esbarrou numa caixa sobre uma estante, derrubando-a. Abaixou-se para juntar as coisas que haviam se espalhado pelo chão e, entre estas, encontrou algumas fotos, já amareladas. Levantou-se, colocando as fotografias sob o foco da luz que entrava pela porta. Passou levemente os dedos sobre uma delas.

Nisso, uma voz infantil invadiu-lhe a mente e pareceu ecoar em seus ouvidos:

-Mamãe... Mamãe! Estou com medo, muito medo.

Ela sacudiu a cabeça, tentando livrar-se daquelas lembranças. Colocou as fotografias de volta na caixa e a guardou novamente na estante, dessa vez mais escondida. Então, tornou a fixar-se no que procurava.

************

Assim que colocou os pés do lado de fora da sorveteria, Toshihiko parou. Fechou os olhos por um momento, sentindo uma estranha sensação. Não demorou a identificar aquilo como sendo o “youki” de um monstro. Tornando a abrir os olhos, assustou-se ao ver que Hikari não estava no local onde ele a deixara.

Não pensou duas vezes antes de largar os sorvetes no chão e correr, seguindo a fonte de energia youkai.

************

Hikari viu-se guiada até um depósito abandonado. Em sua mente, já começava a traçar estratégias para se livrar daquele sujeito. Afinal, se fora treinada desde criança para enfrentar youkais dos mais perigosos, não seria um maníaco humano que a faria se desesperar.

Só não contava em, ao pararem no local, deparar-se com mais três sujeitos mal-encarados. Refez seus planejamentos... Sim, com um pouco de sorte, ela conseguiria se livrar dos quatro e fugir dali.

Um deles se aproximou e ela o observou atentamente. Ele tocou levemente seu pingente e ameaçou puxá-lo. Porém, nesse momento Hikari agiu: deu um forte chute, que atingiu as “zonas baixas” do desconhecido. Na sequência, ainda com movimentos rápidos, levou uma das mãos para trás do próprio corpo, segurando a mão do sujeito que a ameaçava com uma faca. Sem largá-la, desferiu chutes nos demais homens, que vieram de pronto para atacá-la.

-Pare. – Ordenou a voz baixa e rouca atrás de si.

Hikari viu-se obrigada a obedecer quando sentiu uma lâmina encostar-se novamente em suas costas. Hesitante, olhou para a mão que ainda segurava e seu sangue gelou com o que viu: não se tratava de uma faca, as lâminas eram as próprias mãos do “homem”.

-Youkai... – Sussurrou ela, atônita.

Tornou a olhar para os outros três. Um era gordo, bem alto e careca, no perfil do que se poderia chamar de “armário”. Outro também era bastante alto, mas era magro. O terceiro deles devia ter metade da altura dos outros dois, tinha os cabelos baixos e bem loiros, quase brancos, e olhos de um verde vivo. Hikari sempre soube que existia um número inestimável de youkais de aparência humana com trânsito livre entre os dois mundos, mas nunca imaginou que algum dia fosse se deparar com um deles. Achava que eles eram “superiores” e não faziam trabalhos pequenos como tentar matar Guardiões... Mas, nesse momento, percebeu que estivera enganada.

O som de passos apressados invadiu o local. Todos se voltaram para a entrada do depósito e avistaram um homem chegar correndo. Quando se aproximou mais, Hikari o reconheceu e gritou:

-Toshihiko, cuidado! São youkai... AI! – Ela gritou quando o que a segurava a puxou com força para junto de si e encostou uma lâmina no seu pescoço.

Hayato parou de correr quando viu que a ameaçavam.

Os outros três se colocaram entre os dois Guardiões, encarando Hayato.

-Soltem a garota. Vamos resolver isso entre homens.

Hikari bufou, irritada:

-"Homens"? Alôow, entendeu a parte em que eu disse que eles eram “youkais” ou quer que eu repita?

-Acabem com ele. – Ordenou o que ainda segurava Hikari, com a mesma voz rouca de antes.

Os três obedeceram e correram em direção a Hayato.

Hikari só pôde observar a luta. Estranhou o fato de todos aqueles três usarem apenas a força física para lutar. Não pareciam possuir nenhum tipo de poder, o que fazia Hayato levar uma visível vantagem.

Numa voadora, ele derrubou um deles. Uma cotovelada, seguida por uma leve rajada de energia foi o bastante para nocautear outro. Cuidava do terceiro quando Hikari sentiu-se sendo solta. Virou-se rapidamente de frente para o youkai, encarando-o.

-Hikari Gautier, - Disse ele, com a voz rouca de sempre – a Guardiã de Áries.

-Vejo que sou bem conhecida no submundo.

-Você nem imagina o quanto, irmãzinha.

Hikari fez cara de nojo:

-Eu não tenho irmão youkai.

Pela primeira vez, o monstro esboçou um sorriso. Era algo irônico, sarcástico, um riso que irritou Hikari profundamente.

-Tá rindo do que, imbecil? – Rosnou a garota – O que quer de mim, afinal? Precisa pensar tanto pra matar?

Ele pareceu furioso com a provocação. Deu um passo à frente, indo, com velocidade, com a lâmina em direção ao pescoço da adolescente.

No momento do ataque, Hikari foi rápida em pular para trás. No entanto, não conseguiu evitar que a lâmina passasse de raspão pelo seu pescoço, abrindo um corte. Sentindo dor, a garota levou a mão ao ferimento. Assim, pôde sentir uma quantidade grande de sangue escorrer por entre os dedos. Um pouco tonta, subiu os olhos para ver aquele que a atacara, mesmo sem saber o que poderia fazer para se defender, naquelas condições, de um segundo ataque. Entretanto, nesse momento, Hikari avistou o oponente ser atingido por uma esfera de energia negra. O youkai urrou de dor antes de se desintegrar totalmente.

Hikari caiu de joelhos no chão, fraca. Viu um vulto aproximar-se lentamente e só conseguiu visualizá-lo quando este parou diante dela: era um chinês, de longos cabelos negros e olhos da mesma cor, que a fitavam de forma séria.

Ela pensou em dizer algo, mas não conseguiu... Desmaiou.


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Notas finais do capítulo

Capítulo postado e ilustrado em: http://livro-guardians.blogspot.com/2010/09/capitulo-dois-arianas.html



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