Guardians escrita por Luciane


Capítulo 1
Capítulo 1 - Guardiões




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Rio de Janeiro – Brasil

O grafite da lapiseira deslizava sobre o papel em movimentos rápidos e precisos. De tempo em tempo, os olhos castanhos desviavam-se do desenho para analisar a modelo: uma gótica que saía de uma festa. A desenhista tentava ser o mais detalhista possível, mas a perfeição era algo difícil de ser alcançado, dadas as condições do momento: estava numa rua mal iluminada, sentada numa calçada, usando os joelhos como apoio para o fino caderno de desenhos. A modelo também não ajudava muito, não parava de se mexer de um lado para o outro, perguntando a todo instante se já estava terminado.

Na vigésima vez que a pergunta foi feita, finalmente ouviu a resposta esperada:

-Taí. – Arrancou a folha do caderno e entregou.

A gótica deu uma boa olhada no desenho e franziu a testa.

-Eu não sou assim. Meu nariz não é tão grande e eu não tenho essas olheiras nem esses olhos tão abertos.

A desenhista pensou em como seria bom ter um espelho em mãos naquele momento. Dessa forma, provaria que dera uma generosa suavizada nas imperfeições que a outra jurava não ter. Porém, achou melhor guardar o comentário para si.

-Só vou pagar metade do preço. – Resmungou a gótica. Tirou do bolso algumas notas amassadas e jogou para a outra. Em seguida, foi embora, levando o desenho consigo.

Guardando a ponta da lapiseira, a desenhista resmungou:

-É... A vida é dura.

Pegou o celular no bolso de trás da calça jeans que usava e apertou a tecla de re-discagem. Segundos depois, foi atendida por uma voz masculina:

-Calma, Shermmine, eu já estou chegando.

-É Shermmie! Vê se aprende a pronunciar o meu nome, droga! Já são onze da noite, estamos perdendo um tempo precioso.

-Relaxa. Faça algo para passar o tempo.

-Acabei de desenhar uma gótica drogada em troca de dez reais.

-Dez? Que desvalorização é essa do seu serviço?

-Hunf, eu estava sem fazer nada mesmo... Vai demorar muito?

-Não. Relaxa, em cinco minutos estarei aí.

Shermmie desligou o celular e o guardou, juntamente com o dinheiro, no bolso da calça. Jogou o caderno de desenho e a lapiseira dentro de uma pequena mochila e começou a desfazer a trança de seus longos cabelos castanho-escuros, que caíam sobre o ombro direito, apenas para, instantes depois, refazê-la.

Assim que terminou, avistou o vulto de um rapaz alto vindo em sua direção. Levantou-se, começando a sacudir a poeira da roupa.

-Mas já era hora. – Resmungou, olhando para a mansão que estava atrás de si.

************

A festa acontecia já há algumas horas. No salão da mansão, jovens animados dançavam ou conversavam em pequenos grupos. Pelos cantos, sentados em cadeiras ou mesmo de pé, em pequenos círculos, estavam os mais velhos. As mulheres falavam de coisas triviais, enquanto, entre os homens o assunto era sempre o mesmo: negócios.

Todos estavam entretidos com a festa, com exceção daquela que, pela lógica, deveria ser a pessoa mais animada: a homenageada da noite, uma jovem de vinte e um anos. Vestia-se elegantemente com um longo cor de prata e seus longos e lisos cabelos loiros mantinham-se presos por um alto rabo de cavalo. No entanto, ela não parecia entusiasmada. Caminhava de um lado para o outro, isolada.

-Melhore essa cara. – Disse-lhe uma voz bem próxima ao ouvido.

Ela virou o corpo, se deparando com um homem de cinquenta anos de idade, cabelos grisalhos e olhos castanho-esverdeados.

-Isso é um suplício, pai. – Declarou a loura, baixando os olhos.

-O “suplício” é uma festa dada em seu nome. Isso me custou bem caro, então acho que seria grato de sua parte melhorar essa cara e tratar bem os seus amigos.

-Ninguém aqui é meu amigo.

Ele soltou uma risada sarcástica, comentando, com um tom maldoso:

-Talvez porque você não tenha amigos. – E se afastou, indo cumprimentar um senhor engravatado.

Anne suspirou tristemente. Percorreu os olhos pelas pessoas do ambiente... A grande maioria deles ela nunca havia visto na vida. Deu meia-volta para sair dali, no que esbarrou em alguém que vinha em sua direção.

-Tome cuidado, querida!

A jovem olhou para aquela em quem esbarrara. Tratava-se da empregada mais antiga de sua casa: uma mulher negra, de quarenta e cinco anos de idade, embora aparentasse ter menos. Tinha um rosto bonito e jovial, cujas pouquíssimas rugas eram facilmente disfarçadas com uma leve maquiagem, e um corpo de fazer inveja.

Ela sorria carinhosamente para a filha de seu patrão. No entanto, esse sorriso se desfez ao notar as lágrimas que começavam a brotar dos olhos azuis.

-O que aconteceu, querida?

-Mara... Eu quero sair daqui.

-Mas a sua festa está tão animada... Seu pai preparou tudo com tanto carinho.

-Essa festa não é minha. É apenas um pretexto para reunir os sócios dele, que de quebra trazem seus filhos insuportáveis.

-Mas faça um esforço, minha querida. Talvez acabe fazendo novos amigos.

-Eu não aguento mais. Me ajude, Mara... Por favor.

A funcionária suspirou e olhou para o patrão, que, distante delas, conversava com um grupo de convidados. Tornou a olhar para Anne e sorriu.

-Vou anunciar que você não estava se sentindo bem e foi para o seu quarto.

Anne retribuiu o sorriso e abraçou a empregada.

-Obrigada, mãe.

Mara sorriu ainda mais. Sempre se emocionava nas vezes em que “sua menina” a chamava daquela forma. Afinal, desde que a patroa falecera, há dezesseis anos, que ela praticamente criava Anne.

A loira soltou-a e subiu a escada rapidamente.

Não percebeu que, nesse momento, um casal chegava à festa.

Aliás, ela talvez fosse a única a não perceber, pois era impossível não estranhar, em meio a tanto ‘glamour’, dois jovens vestidos basicamente com calças jeans e camisetas.

O rapaz era moreno, bem bronzeado, de cabelos cacheados e curtos e olhos cor de mel. Era bem alto, principalmente se comparado com a garota ao seu lado, que media pouco mais de 1,60 cm.

-Festa legal! – Ele comentou, olhando tudo ao seu redor.

-Pois pra mim, isso tá um porre. – Respondeu Shermmie. Olhou, intrigada, para o alto da escada por onde Anne havia acabado de subir – Está sentindo o ki?

Ele fez que sim em silêncio. Shermmie olhou para os seguranças que se aproximavam e pediu:

-Distrai esses idiotas, deixa que eu cuido da garota.

E, dizendo isso, ela começou a subir a escadaria a passos rápidos. Os seguranças correram para segui-la, mas o rapaz entrou na frente deles, impedindo-os.

************

Ao entrar no quarto, Anne jogou-se sobre a cama e fechou os olhos, tentando relaxar, o que era difícil com o som altíssimo que vinha do andar de baixo.

Refletiu sobre sua vida. Sabia que estava completamente sozinha no mundo. Seu pai, para ela, era como um total estranho. Durante as poucas vezes em que se viam, ele a tratava com descaso e até grosseria. Não lembravam, nem de longe, uma relação de pai e filha.

Escutou o som de passos se aproximando e pensou que fosse a governanta. Esta talvez fosse a única pessoa que ela tinha no mundo, a única que demonstrava por ela algum carinho e preocupação.

No entanto, percebeu que não se tratava de Mara quando se sentiu agarrada pelos ombros. Aquelas mãos não eram as da governanta... Eram grandes, com unhas compridas e... Escamas? Assustada, abriu os olhos e desesperou-se ainda mais com o ser que encontrou à sua frente. Era qualquer coisa que não era humana, nem nenhum animal que ela conhecesse. Era algo grande, que mais parecia ter saído de um seriado japonês. Tinha os olhos arregalados, amarelos, e o corpo num tom bem escuro de verde, da mesma cor de seus dentes. Isso Anne percebeu quando o “bicho” abriu a boca e soltou um grunhido estranho, baixo, mas o suficiente para assustá-la ainda mais. Ela gritou em desespero, cerrando os olhos com força.

Sentiu o monstro soltar os seus ombros e, só então, criou coragem para abrir os olhos. Avistou o estranho ser já se levantando do chão e, diante dele, uma garota morena, com os cabelos presos por uma trança.

Anne não parou para perguntar quem era aquela estranha que, pelo visto, estava tentando salvá-la. Ao invés disso, levantou-se da cama num pulo e correu até um canto do quarto, observando a luta que se seguiu.

Numa cena que parecia digna de um filme no melhor estilo “Kung fu”, Shermmie saltou, desferindo uma sequência de chutes no monstro que caiu sobre o armário, soltando uma das portas que, pela fúria do impacto, partiu-se em vários pedaços ao cair no chão.

Assustada, Anne apertava as costas sobre uma parede, como se pudesse atravessar por ela e sair dali. Shermmie, no entanto, como quem estava se divertindo com a situação, riu para o monstro, numa forma de provocação que ele entendeu de imediato. Assim, ele levantou-se e partiu para cima dela. Segurando-a de jeito, conseguiu prendê-la junto a outra parede.

-E você, garota? – Gritou Shermmie – Não vai fazer nada?

Anne olhou ao redor, até ter uma idéia. Pegou um pedaço da madeira do guarda-roupa e correu em direção ao monstro, batendo em sua cabeça.

-Boa! – Vibrou Shermmie. Mas logo se desanimou ao ver o monstro, com grande facilidade, tirar a madeira das mãos de Anne e jogá-la contra ela, que novamente correu para um canto do quarto, assustada -... Péssima. Arg! Vamos acabar logo com isso!

Shermmie empurrou o monstro, que, desajeitado, caiu sobre a cama. Assim, a garota uniu os braços, com as palmas das mãos voltadas para o inimigo. Anne assustou-se ao ver uma aura dourada envolver o corpo da desconhecida e um estranho símbolo, por segundos, surgir em sua testa.

-Isso é um pesadelo... Só pode ser... – Sussurrou a loira.

Shermmie lançou um sorriso sarcástico para o monstro, antes de, com suas mãos, disparar uma rajada de fogo contra ele.

Anne gritou e cerrou os olhos. Quando tornou a abrir, tudo o que encontrou sobre sua cama foram cinzas. Viu a desconhecida se aproximar, começando a remexer no que restava da roupa de cama.

-Hm... Essa colcha de seda deve ser bem cara, né? – Colocou a mão no bolso e tirou duas notas de cinco reais, amassadas – Nem em mil desenhos para góticos eu conseguiria te pagar isso.

-Quem é você? O que tá fazendo aqui? O que é esse bicho? Por que ele tentou me atacar? – Disparou Anne, desesperada.

-Você realmente não sabe de nada?

-Do que eu deveria saber?

-Isso será mais difícil do que eu imaginava. Escuta, garota...

Ela se calou quando alguém bateu na porta do quarto. Rapidamente, puxou o lençol com o que restava do corpo do monstro e jogou-o para debaixo da cama, sentando sobre esta em seguida.

-Agora aja naturalmente e abra essa porta.

-Como eu vou explicar você aqui e essa bagunça toda?

-Diga alguma coisa, qualquer coisa, menos a verdade.

-Como se alguém fosse acreditar na verdade... – Ela caminhou até a porta e a abriu.

Um segurança a olhou, voltando em seguida os olhos para Shermmie, que, sentada na cama, sorriu e acenou para ele.

-O que está acontecendo aqui? – Indagou o segurança. – Quem é aquela?

-Er... – Anne olhou para Shermmie, pensativa. Tornou a olhar para o segurança e respondeu – Não se meta na minha intimidade! Cada um tem direito a ter suas preferências e homofobia é crime.

O segurança ficou pasmo com o que ouviu. Shermmie estapeou a própria testa diante daquela desculpa. Porém, quando o homem a olhou, ela confirmou:

-Quem diria, né? A filhinha do patrão. Meu amigo, essa loirinha é demais!

Anne fez cara de nojo, mas o segurança não percebeu. Estava perplexo demais para isso.

-Er... Vou deixá-las a sós... – E saiu, pasmo.

Após a porta se fechar, Shermmie levantou-se num pulo, irritada.

-Mas qual é a sua? Não tinha uma idéia melhor, não?

-Foi a primeira coisa que eu pensei.

-Não dava pra dizer que eu era sua amiga?

-Ele não ia acreditar. Eu nunca tive amigos.

Shermmie recuou um passo:

-Você não é lésbica, é? Olha, não que eu tenha preconceito, mas, na boa... Você não faz o meu tipo. Mulheres não fazem o meu tipo. Não se sinta ofendida. Logo você encontrará alguém que te ame, e...

-Eu não sou lésbica. Calma, tá?

-Ufa! Que medo!

-Agora será que dava pra me explicar o que foi isso que aconteceu aqui?

-Tá legal. Mas, antes de tudo, me deixa ver o seu pingente.

-O meu o quê?

-Tem um cordão no seu pescoço. Deixe-me ver o pingente dele.

Anne não entendeu o que poderia significar aquilo, mas fez o que a outra lhe pedira: puxou o cordão para fora do vestido, mostrando um pingente com o formato do símbolo do signo de Câncer. Shermmie fez o mesmo com o cordão que usava, no qual se via outro pingente dourado com o formato do símbolo de Leão. Colocou os dois próximos um ao outro. O pingente dourado brilhou, emitindo uma forte luz.

-Mas o que é isso? – Indagou Anne, assustada.

Shermmie sorriu e separou os pingentes.

-O seu ainda não brilha porque, ao que parece, sua energia ainda não despertou. Quem foi que te deu esse cordão?

-Era da minha mãe.

-Ah, ela tá por aí?

-Minha mãe morreu.

-Vixi, que mancada. Então, ela não deve ter te contado nada.

-Sobre o quê?

Shermmie abriu a boca pra responder, mas foi interrompida pelo rapaz que entrou no quarto nesse momento, gritando:

-Cadê o monstro? Deixem que dou um jeito nele!

-Imbecil... – Resmungou Shermmie – Chegou tarde. Já o transformei em cinzas.

-Você nunca me espera pra compartilhar a diversão. – Ele olhou para Anne e sorriu – Então, essa gatinha é a Guardiã de Câncer?

A mencionada começou a chorar, como uma criança em desespero.

-Ei, o que foi? – Preocupou-se o rapaz – Foi algo que eu disse?

-Tem... Tem... – Gaguejava a loira, em lágrimas. Apontou para o recém-chegado – Tem um homem no meu quarto!

-E qual o problema nisso? – Indagou o rapaz.

-Acho que ela é mesmo lésbica. – Respondeu Shermmie.

-Não soooou! – Choramingou Anne.

-É, acho que não mesmo. Ela é apenas uma patricinha fresca. Fica fria, garotinha! Esse é o Maurício, é o Guardião de Touro.

Maurício foi até a loira e beijou-lhe a mão.

-Apenas “Mau”, por favor. Ao seu dispor.

-Guardião de quê? – Indagou a loira, ainda assustada. – Podem me explicar o que está acontecendo? Quem são vocês? O que era aquele monstro?

Antes de começar a explicar, Shermmie sentou-se confortavelmente numa poltrona branca, que, depois da luta, já estava imunda.

-Esse monstro, na verdade, é um youkai. Vou te contar uma historinha que até parece da carochinha, mas é a mais pura verdade: há milhares de anos, esses seres viviam no nosso planeta, em perfeita harmonia com os humanos. Até que, como nem tudo são flores, começou a haver divergências e guerras, e houve uma divisão de “mundos”.

-Então, – Anne a interrompeu – eles são extraterrestres? Teriam algo a ver com as pirâmides do Egito, Stonehenge ou coisas do tipo?

-Não, criatura!

-Na verdade – Maurício entrou na conversa – foram encontrados indícios de que youkais teriam participado das construções no Egito Antigo. Claro, um ser humano normal nunca teria capacidade pra construir obras como aquel... Ai, Shermmine! Por que me bateu?

-Pra você calar a sua boca. – Resmungou a garota, girando o punho – Continuando, eles não são extraterrestres. Estão apenas, digamos, numa dimensão diferente. Há um lugar onde se localiza a barreira invisível entre os dois mundos. Ela não está bem fechada, por isso, de tempos em tempos o espaço dimensional começa a se romper. Isso não ocorre de um momento para o outro; no início, apenas youkais mais desenvolvidos conseguem ultrapassar para o nosso mundo e, conforme eles vão passando, a barreira vai enfraquecendo, até que se abra de vez. Até aí, está entendendo?

-Acho que sim... – Respondeu Anne, com um notório tom de dúvida na voz – Mas o que se faz quando isso ocorre?

-É aí que nós entramos... Os doze Guardiões. São humanos que têm em seu corpo uma energia originada de seu signo regente, capaz de, em conjunto, lacrar a barreira. Essa energia é passada de geração a geração. Assim como a energia do meu pai passou para mim, a sua, pelo que você disse, veio da sua falecida mãe.

-Eu não disse isso. Eu nem lembro da minha mãe, tinha cinco anos quando ela morreu.

-Mas você disse que esse pingente era dela, não é? Sua mãe era canceriana, como você, Guardiã do primeiro grau de energia da água.

-Eu não sei qual era o signo dela. Mas e se não for o mesmo?

-Sempre é. Só não me pergunte se isso é planejado antecipadamente, só vou começar a me interessar por isso quando quiser ter um filho. Enfim, antigamente, a barreira costumava levar séculos, depois de lacrada, para abrir novamente. Mas a última vez em que isso ocorreu não faz nem vinte anos. Um dos Guardiões, não sei bem qual, já havia falecido... A energia dos outros onze não foi o bastante para lacrar devidamente a barreira. Por isso que, desde então, youkais com aparência humana estão pelo nosso mundo... Na certa arquitetando um modo de abrir de vez a barreira. E estão conseguindo. Há dois dias houve uma explosão e o espaço dimensional aumentou. É por isso que monstros feiosos como esse que te atacou já estão tendo acesso.

-Foi por isso que ele quis me matar?

-Exato. Matando-se um único Guardião, acabam as chances de fecharmos de vez a barreira. Ainda mais sendo uma Guardiã jovem, que não tem filhos... Isso eliminaria de vez a força do seu signo e, com isso, a esperança de algum dia conseguirmos reverter essa situação.

Maurício suspirou:

-É, e eu nem quero pensar o que será da Terra se a barreira abrir de vez.

-Não tente – Respondeu Shermmie – Sabemos que pensar não é o seu forte.

-Quer parar de me encher?

-Se você parar de me interromper...

Anne olhava, assustada, à discussão dos dois.

-Er... Desculpe perguntar, mas... Vocês são namorados?

-Deus me livre! – Respondeu Maurício.

-Irmãos, então?

-Deus me livre duas vezes! – Gritou Shermmie – Eu preferia morrer a ter o mesmo sangue desse sujeito.

-Ela fala assim, mas no fundo ela me ama – Caçoou Maurício.

-Otário. – Resmungou Shermmie.

Anne tentou voltar ao assunto da conversa:

-Poderiam, por favor, dizer logo o que querem de mim?

Foi Shermmie quem respondeu:

-Vamos nos unir ao restante do grupo, no local onde se encontra a divisa dos mundos.

-E que lugar seria esse?

-Nihon desu!

Os olhos de Anne se arregalaram:

-Hein? ...Japão?

************

Tóquio – Japão.

As chaves foram jogadas sobre a mesa de centro.

Ao chegar em casa, Sofie sequer se preocupou em acender a luz ou tirar os sapatos. Sabia que este último era um costume japonês, mas, mesmo vivendo há dezessete anos naquele país, jamais se acostumaria com certos hábitos tão diferentes de sua criação européia.

Jogou-se no sofá, pondo-se a fitar o teto e a deixar sua mente viajar. A cabeça doía e os ombros pesavam, como se sustentassem o peso dobrado de todo o seu tempo de vida.

Apesar dos trinta e nove anos de idade, Sofie facilmente se passaria por uma jovem, no mínimo, dez anos mais nova. Tinha um corpo bonito e, em seu rosto, nem uma única ruga. Seus olhos, grandes, expressivos e bem azuis, denunciavam sua origem européia – francesa, de Paris – E seus cabelos castanho-claros e ondulados batiam cerca de um palmo abaixo dos ombros.

Porém, não era de muitas palavras ou sorrisos. Mesmo dentro de casa, era séria na maior parte do tempo.

Teve sua atenção desviada quando a porta da casa foi violentamente fechada. Olhou para lá e encontrou uma garota de dezessete anos, japonesa, com o corpo cheio de ferimentos.

-Hikari... – Gaguejou, levantando-se.

-Tadaima, okaasan... – Sussurrou a garota, antes de cair no chão.

Sofie correu, desesperada, até ela.

************

Sentada no sofá, ainda meio tonta, Hikari encarava a mãe, que, diante dela, olhava atentamente seus ferimentos do rosto.

Apesar de aparentar ser japonesa pura, Hikari Gautier era mestiça. Da mãe, podia-se dizer que herdara apenas a beleza, mas de uma forma bem distinta. Tinha os cabelos tingidos de dourado, num corte desfiado pouco abaixo dos ombros e olhos castanho-avermelhados e puxados.

Sofie abaixou-se diante da filha e afastou os cabelos que caiam sobre o ferimento. Hikari, de imediato, virou a cabeça para o lado. Irritada, a mãe segurou-lhe o rosto com uma das mãos.

-O que é que você tem nessa sua cabeça?

Hikari fez bico, abaixou os olhos, mas não respondeu.

Ainda furiosa, Sofie levantou-se e foi até o banheiro, voltando instantes depois com uma caixa de primeiros socorros:

-Sabe que a barreira foi aberta e fica andando sozinha por aí. Sua energia ainda não despertou. O que você quer, morrer?

-Grande merda... AI! – Ela gritou quando a mãe, nada delicadamente, empurrou um pedaço de algodão embebido em um líquido qualquer sobre o seu ferimento – Mãe, tá me machucando!

-É pra machucar mesmo! Eu disse que não queria que você saísse sozinha à noite. Mas você nunca me escuta.

-Não estava sozinha. Fui com meus amigos.

-E o que eles podiam fazer para te proteger? Aliás, graças a você, eles ainda foram colocados em risco.

-Como se em casa eu estivesse protegida. Você nem estava aqui.

Sofie encarou a filha por uns momentos e se levantou, indo deixar a caixa de curativos sobre a mesa de centro da sala.

-Eu estava fazendo alguns contatos. Shermmie me ligou, disse que encontraram a Guardiã de Câncer. Vão trazê-la para cá.

-É mesmo? Que bom!

-Mas por muito pouco não perdemos a de Áries.

-É só o que eu sou pra você? Uma Guardiã?

-Hoje você reservou a noite para me irritar?

Hikari olhou para a mãe e, por um momento, sentiu-se arrependida das próprias palavras. Poderia duvidar de qualquer coisa no mundo, mas nunca do amor de sua mãe. Apesar de não fazer o tipo ultra-carinhosa, Sofie era uma boa mãe, ao seu modo.

-Desculpa.

Sem responder, Sofie entrou num quarto – o único da pequena casa onde moravam – e deitou-se em uma das duas camas, a que ficava ao lado direito, encostada à parede e próxima a uma janela. Sua filha a seguiu, intrigada.

-Mãe, eu já pedi desculpas.

-Tudo bem – Respondeu a mulher, olhando para o teto. – Esqueça isso.

Hikari sentou-se na outra cama.

-Pelo que eu me lembro das suas histórias, há quase vinte anos vocês não conseguiram lacrar corretamente a barreira, porque faltava um Guardião: o do signo de Câncer. Você disse que ele tinha morrido.

Sofie continuou calada. Hikari prosseguiu:

-Então, antes de morrer ele deixou uma filha. Você sabia disso?

-Não.

-Estranho ele não ter contado isso aos demais. Aff, vai ver era desses “pegadores” e nem sabia que tinha engravidado uma mulher. Mas, se fosse isso, como é que o pingente teria ido parar com essa filha?

-Isso não fazia o tipo dele. – Havia certo rancor na voz de Sofie, mas sua filha pareceu não perceber.

-Então, os Guardiões de Touro, Câncer e Leão estão vindo do Brasil para cá. Sniper, de Escorpião virá da Inglaterra. Tem o carinha chinês, de Capricórnio, que também está vindo pra cá... E aqui temos eu, de Áries, e o Toshihiko, de Sagitário. Ficam faltando ainda cinco.

-Não se preocupe, vamos encontrá-los.

-É com essa voz animadora que fala pra eu não me preocupar?

Finalmente, Sofie encarou a filha, olhando-a seriamente por quase um minuto, tempo este em que Hikari simplesmente sustentava o olhar, perguntando a si mesma o que se passava pela cabeça de sua mãe nas vezes em que fazia isso, o que era bastante frequente.

Por fim, Sofie sorriu e disse:

-Comprei aquele chocolate que você gosta. Está na minha bolsa. Por que não pega pra gente e aproveita pra me contar como foi a festa?

Hikari retribuiu o sorriso e se levantou, indo fazer o que a mãe pedira.

************

Rio de Janeiro – Brasil.

Sentada no espaçoso sofá da sala, Anne olhou para o relógio em seu pulso que, no momento, marcava duas horas da tarde. Suspirou, pensativa. Estava caindo de sono, devido à noite mal dormida. No entanto, mesmo que deitasse em sua cama, sabia que não conseguiria dormir. Era muita coisa em sua mente, todas aquelas estranhas revelações que tivera na noite anterior... Tudo aquilo mais lhe parecia um pesadelo.

Segurou o pingente de seu colar e pôs-se a fitá-lo, enquanto a mente vagava por todas aquelas informações, sem conseguir chegar a conclusão alguma.

Mara, que passava pela sala nesse instante, parou, curiosa, diante da cena.

-Querida, tudo bem? Anne?

-Hã? – Anne a olhou – Falou comigo?

-Está tudo bem com você, querida?

Anne ia responder, mas as vozes vindas do hall cortaram totalmente a conversa. Tratava-se de Maurício e Shermmie, que eram bloqueados por um segurança.

-Esperem, eu disse que não podem entrar!

-Vai se ferrar. – Resmungou Shermmie.

Maurício tentou consertar a situação:

-Nós só queremos dar uma palavrinha com a Anne.

-A senhorita Anne não tem o costume de receber visitas durante a semana. – Respondeu o segurança.

-Ela não costuma receber visitas nunca. – Resmungou Shermmie, mais uma vez.

-Somos amigos dela. – Informou Maurício.

-A senhorita Anne não costuma se relacionar com pessoas da classe de vocês.

-Quer dizer o que com isso? – Perguntou Maurício, confuso.

-Ele tá chamando a gente de pobre, idiota. – Simplificou Shermmie. – Escuta, cara, nós temos um assunto importante pra tratar com a madame aí. Dá pra sair da nossa frente ou quer resolver isso no braço?

O segurança teve vontade de rir diante de tal ameaça, mas, antes que sequer tomasse fôlego para isso, ouviu a voz da patroa a gritar-lhe da sala:

-Deixe-os entrar. – E olhou para a governanta – Mara, deixe-nos a sós, por favor.

Mara estranhou aquele pedido, mas saiu. No entanto, não foi muito longe: parou no corredor, escondida, de modo que poderia ouvir a conversa.

Shermmie e Maurício finalmente entraram.

-Chatinhos esses seus seguranças, hein? – Comentou a morena. – Quantos têm nessa casa? Uns cem?

Anne não respondeu. Ao invés disso, pediu:

-Podemos ir direto ao assunto?

Shermmie fez que sim, mas impôs uma condição:

-Vamos pra um lugar mais reservado? Não sei, tenho a ligeira impressão de que as paredes por aqui têm ouvidos.

Anne concordou e os guiou para seu quarto.

Em seu esconderijo, Mara bufou.

************

Fechando a porta, Shermmie sentou-se na ponta da cama. Reparou como tudo já estava limpo e organizado, não sobrando qualquer indício da luta que ali ocorrera na noite anterior. Em sua mente, fez uma nota do quanto era bom ser rico... As pessoas que limparam aquilo, com certeza, não fizeram qualquer pergunta sobre o que teria acontecido.

Anne sentou-se na poltrona, no canto do quarto. Maurício permaneceu de pé.

-Então, – Começou Shermmie a dizer – já me comuniquei com o pessoal do Japão e está tudo certo. Vamos para lá essa noite.

-Isso é loucura. – Falou Anne, assustada – Como acham que podemos ir para outro país assim, de um minuto para o outro?

-Fique tranquila, garota. Não esquente com passagens ou vistos. Digamos que temos nossos conhecidos nos lugares mais inusitados. Arrume suas coisas, sem medo. Nós vamos hoje à noite. – Terminando de dizer isso, Shermmie se levantou – É só o que viemos comunicar.

Já se preparavam para sair, quando ouviram Anne anunciar:

-Eu não vou.

Shermmie voltou-se para ela, incrédula:

-Como é?

-Eu não vou. – Reforçou Anne – Acha que é simples assim, eu largar toda a minha vida por aqui pra entrar de cabeça numa guerra contra seres estranhos?

-Que vida? Você não trabalha, não estuda, não tem família, nem namorado, nem amigo, nem um cachorrinho de estimação você tem. Tá com pena de deixar o quê?

Anne abaixou a cabeça. Maurício chamou a atenção da amiga:

-Shermmine, tá pegando pesando.

-É Shermmie! E só estou falando a verdade. Qual é a tua, garota? Ainda não entendeu direito a situação? Acha que teríamos vindo atrás de você se isso não fosse fundamental para conseguirmos fechar a barreira? A humanidade está em jogo. É algo sério demais pra você ficar dando ataques de patricinha mimada.

Anne levantou-se de súbito e, pela primeira vez, elevou o tom de voz:

-E por que eu deveria me importar com a humanidade? Não tenho nem família, nem namorado, nem amigo, nem mesmo um cachorro de estimação... O mundo que se exploda!

Sentindo que uma lágrima lhe escapava do olho, Anne passou a mão trêmula sobre o rosto, secando-o. Em seguida deixou-se cair novamente sentada na poltrona, virando o rosto para o lado, evitando, assim, encarar aqueles dois.

Incrivelmente, Shermmie ficou momentaneamente sem resposta. Maurício foi até a loira e abaixou-se no chão ao seu lado.

-Desculpa, loirinha... Sei que não é da minha conta, mas... Já que se sente tão sozinha nessa casa, por que continua morando aqui?

Anne ainda levou alguns segundos para responder, com outra pergunta:

-E pra onde eu iria?

-Não sei, mas... Sei lá, porque não arruma um emprego ou faz uma faculdade?

-Eu terminei meu Ensino Médio ano passado.

-Como é? – Assombrou-se Shermmie – Com vinte anos? Além de tudo é burra!

-Shermmine! – Maurício chamou-lhe a atenção novamente.

Anne olhou para a outra garota e explicou:

-Não é nada disso. Quando criança eu tinha problemas na fala Fiz tratamento intensivo com uma fonoaudióloga, dos quatro aos oito anos, e só então pude começar a estudar. Por isso me atrasei.

-Por isso que não fez amizades no colégio? – Indagou Maurício.

-Não frequentei colégio. Sempre estudei em casa, com professores particulares.

-Tem que ser uma medrosa fracote – Esbravejou Shermmie – É uma prisioneira de sua própria casa. Mas tudo bem, já que você não tem nada a defender, dá licença, mas nós temos família e amigos, então daremos nosso jeito. Com ou sem você. Vambora, Mau! – Virou-se, caminhando em direção à porta.

Maurício ainda fitou a loira por um momento, antes de levantar-se e seguir a amiga.

Os dois já saíam do quarto quando Anne levantou o rosto e os chamou:

-Esperem! – Ela respirou fundo, quando eles a olharam – Eu... Eu... Eu vou com vocês.

Maurício sorriu. Shermmie continuou séria.

-Passamos aqui hoje à noite, pra te buscar. Esteja pronta. – E saiu.

Maurício continuou sorrindo e mostrou o polegar para Anne, antes de também sair, fechando a porta.

Uma vez sozinha, Anne desabou em lágrimas.


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Notas finais do capítulo

Capítulo postado e ilustrado em: http://livro-guardians.blogspot.com/2010/09/capitulo-um-guardioes.html



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