Por algum motivo que eu não sabia explicar nem a mim mesmo de manhã quando me fazia essa pergunta ao me olhar no espelho, eu continuava indo à sala da Brigada SOS todas as tardes depois das aulas para organizar a festa temática que Haruhi queria e vê-la sorrir deslumbrada para seu novo bichinho de estimação que mudava a cor dos cabelos e dos olhos quando ela assim desejava.

                Duas semanas passaram voando e, no dia da festa, nossa sala habitual se parecia menos com o que eu tinha me acostumado a ver. Por mais transformada que estivesse, me lembrava mais uma sala normal do que eu já costumava ver. Só parecia maior do que de costume.

                Haruhi e Kaien tinham tampado a janela com cartolinas pretas e salpicado com tinta branca. Para todos os lados, grandes panos azuis escuro pendiam do teto, transformando o lugar em um labirinto escuro, só iluminado por algumas luminárias brancas que refletiam em um globo espelhado que descia do teto e luzes roxas, azuis e vermelhas. Muitos pufs de cor branca tinham sido espalhados e, ao fundo, a mesa de Haruhi havia cedido espaço para uma longa mesa de aperitivos em formatos de luas, estrelas e cometas, sanduíches com uma azeitona fincada com palito de dentes e a grande refratário de ponche azul de tutti-frutti com gelo seco que eu providenciei.

                Kaien providenciara também uma seleção de músicas que fazia Haruhi dançar animada em sua roupa vermelha de capitã espacial.

                Mikuru estava recebendo os convidados na porta com um vestido prata que Haruhi, como sempre, a forçou a vestir. Koizumi e Ayana estavam desaparecidos por trás de alguns dos panos azuis que enfeitavam a sala e Yuki estava parada, servindo o ponche na mesa. Eu estava sentado, cansado e entediado, analisando, como se tornara meu costume, o jeito bizarro de Kaien de fazer de tudo para agradar Haruhi sem parecer um cachorrinho adestrado.

                Talvez, o motivo pelo qual eu rejeitasse minha liberdade fosse a curiosidade que sempre me levou até ali. Porque era estranho ver como Haruhi mudava perto dele... Não como as garotas costumam mudar quando estão apaixonadas... Ela estava longe de conseguir ser normal... Não! Ela parecia apenas mais entusiasmada e maluca do que sempre...

                Talvez, eu quisesse entender o que tinha feito Haruhi inventar sua alma gêmea tão de repente. Afinal, se Kaien era o que ela queria, por que tinha sido a mim que ela escolheu para salvar quando destruísse o mundo? O que eu tinha feito para deixar pra trás esse papel e jogá-la nos braços do Transmorfo? E por que eu estava tão incomodado se eu não sentia nada por Haruhi?           

                Não é que eu nunca tenha sentido nada por Haruhi... Mas Haruhi era Haruhi... E ela representava tudo o que eu menos queria para mim... Afinal, eu já tinha me subjugado muito mais vezes às ideias insanas de Haruhi do que um namorado faria... Tinha cedido às vontades dela e atendido a seus pedidos com uma devoção que eu não me lembrava ter concordado a oferecer.

                Por mais atraído que eu pudesse já ter me sentido por Haruhi, eu não era apaixonado por ela. Mas eu fui o co-fundador daquela insana Brigada e nem mereci o cargo de vice-líder! Eu sabia dos segredos dela e dos outros integrantes e participava de coisas que eu tinha me forçado a aceitar que eram mentiras, mas que me assaltaram completamente desprevenido.

                Uma coisa sempre me incomodava naquele lugar: se tudo acontecia ali por vontade de Haruhi e se todos os integrantes daquela Brigada faziam tudo o que ela queria... Eu era a única exceção ou cada uma de minhas atitudes também eram regidas pelos desejos de Haruhi? Mas, se fosse desejo de Haruhi, eu não corresponderia aos sentimentos dela que me tornavam o único humano qualificado para sua Brigada e o único que ela pouparia se destruísse o mundo?  Mas, se eu não correspondia, isso seria decisão minha ou eu interpretara errado os sentimentos dela?

                E, se Haruhi criara Kaien como seu escolhido, a maneira como ele a olhava, como a fazia dançar, como puxava-a pra si e a girava, como fazia-lhe cócegas para fazê-la rir e buscava pacientemente tudo o que ela lhe pedia, tinha vindo da mente única e insana de Haruhi ou ele tinha o direito de escolher? Se fosse apenas desejo de Haruhi, seria então válido? Seria verdadeiro? Ou só mais um capricho como Yuki ser uma alien, Koizumi ser um esper, Mikuru, uma viajante do tempo, Ayana, uma bruxa e o próprio Kaien ser um transmorfo?           

                Mas, se fosse escolha dele, isso significava que eu tinha sido chutado? Significava que eu levei um fora de Haruhi?

                Por mais que tudo isso me incomodasse loucamente, eu não conseguiria ficar com ela como Kaien estava fazendo naquele momento... Não me via olhando-a admirado como ele fazia... Tudo que eu sempre fiz foi listar os defeitos dela quando me pegava olhando-a tão atentamente... Só notava como ela parecia lunática e estranha expressando suas ideias e vontades e no seu jeito de olhar e andar... Eu adorava criticá-la e deixá-la brava para lhe mostrar que eu era um instrumento do caos contra seus desejos...

                Ele, no entanto, parecia encantado com cada um dos sorrisos estranhos e diabólicos dela.

                - O que o está incomodando tanto, Kyon-kun? – Asahina-san sentou-se ao me lado, sorrindo.

                - Hã? Não tem nada me incomodando...

                - Tem certeza? – ela riu. – Porque parece que você não gosta de ver Suzumiya-san com Kaien-kun!

                - Ele só me irrita tanto quanto ela... – dei de ombros. – Além do mais, eu nunca senti nada por Haruhi, mesmo...

                - Mas, parece que você está intrigado com o relacionamento deles dois...

                - É estranho pensar que haja um relacionamento já que ela o inventou... Não vejo livre arbítrio nisso...

                Mikuru começou a gargalhar e eu a olhei confuso e ofendido.

                - Você está completamente enciumado!

                - Não é ciúmes... É irracional!

                - Não é não... Se pensar que a vontade de Suzumiya-san é o destino, então, eles seriam destinados um para o outro... E não seria uma questão de livre arbítrio... E sim, amor...

                - Amor... – revirei os olhos, desdenhoso.

                - Kyon-kun tem problema em aceitar esse ponto da história, Mikuru-chan... – Ayana se sentou do meu outro lado. – Mas, quando você não desejou ficar com Suzumiya-san no outro mundo que ela inventou para vocês dois, de alguma forma, a fez pensar que o que ela realmente queria era alguém que compartilhasse de suas ideias... Alguém que pensasse como ela... Alguém que...

                - Que ficasse com ela no outro mundo... – eu completei e Ayana assentiu. – Mas, ainda assim, foi Haruhi que decidiu isso por ele...

                - Talvez devesse falar com Kaien, então – a bruxa sugeriu entre risos. – Isso o faria entender melhor se é vontade dele próprio ou de Suzumiya-san...