Era a segunda feira logo depois da festa temática que foi o maior sucesso da escola. Mas, não havia dúvidas de que seria um sucesso, já que Haruhi, com certeza, desejara assim...

                Eu caminhei até a sala da Brigada SOS e, qual não foi minha surpresa, quando encontrei apenas Kaien jogado em um dos pufs que ainda estavam lá da festa, tirando algumas notas de seu violão.

                - Como vai, Kyon! – ele sorriu o seu sorriso debochado e eu franzi o cenho, jogando minha pasta sobre a mesa e me sentando.

                - Bem... – respondi enfurecido.

                - Você foi embora cedo no sábado... – ele observou, parando de tocar.

                - Não quis assistir seu “showzinho” com a Haruhi até o final. Gomenasai... – ele deu risada de meu tom amargo.

                - Por acaso, você ficou com ciúmes?

                - Ciúmes? Não – eu dei de ombros, me virando para encará-lo. – Só fiquei me perguntando se não o incomoda estar nessa situação...

                - Que situação?

                - Bom, você mesmo disse que existe por vontade de Haruhi, não o incomoda que também não tenha escolha em amá-la desse jeito?       

                - Mas eu tenho direito de fazer essa escolha – Kaien deu risada. – Talvez você não tenha entendido direito o conceito de ser criado por Suzumiya Haruhi, Kyon...

                - Se ela criou você, criou também as decisões que deve tomar!

                - Não... – ele sacudiu a cabeça negativamente, ainda sorrindo. – Apenas duas coisas em mim foram decididas pela Suzumiya-chan... Sobre eu ser um Transmorfo, como ela desejou, e sobre minha missão ao entrar para a Brigada SOS e proteger o mundo da destruição iminente! Assim como os outros quatro membros especiais...

                - Mas, se essa é a sua missão, você deve fazer de tudo para agradá-la e não permitir que ela se entedie... No final, dá no mesmo... Os outros quatro membros da Brigada fazem sempre as vontades dela sem questionar...

                - Isso não é verdade... – Kaien deu risada. – Mikuru-chan realmente detesta fazer os cosplays que Suzumiya-chan inventa, mas não é porque é a missão dela que ela não impede...

                - E é por quê? – eu desdenhei. Desde o começo, eu sempre achei ridícula aquela situação entre Haruhi e Asahina-san, mas nunca entendi o motivo dela sempre se repetir.

                - É a personalidade de Mikuru-chan não lutar pelo que ela quer e apenas se acostumar às coisas, tanto boas quanto ruins que lhe acontecem... Não tem a ver com “fazer a vontade de Haruhi”... E, se você olhar bem, qual a diferença do que Suzumiya-chan faz à Mikuru-chan e o que você faz?

                - O que é que eu faço? – vociferei ofendido.

                - Você sabe que tem o poder de diminuir os exageros de Suzumiya-chan, porque ela perderia o interesse se você perdesse o interesse por Mikuru-chan... No final, você é tão culpado quanto ela...

                - Acho que é um péssimo hábito dos membros estranhos dessa brigada insana o de jogar a culpa das maluquices de Haruhi nas minhas costas!

                - Ayana-chan e Koizumi-kun estavam errados da última vez que lhe disseram isso?

                - Isso não vem ao caso... Koizumi e Ayana fazem tudo que ela quer sem impedir as consequências... – eu argumentei.

                - Como sem impedir as consequências? E o que os dois fazem com os espaços restritos que ela cria inconscientemente? Suzumiya-chan não tem ideia do que acontece... Não tem noção de que criou toda essa realidade e que tudo o que ela desejou é verdade... Nós podíamos muito bem viver adormecidos em nossas existências assim como o resto da sua espécie... É nossa opção servir à Suzumiya Haruhi, Kyon!

                - Então, quer que eu acredite que está mesmo apaixonado por Haruhi?

                - Por que eu não estaria? – Kaien riu.

                - Porque ela é louca? Por que ela pode destruir o mundo? Por que ela não sabe a definição de “limites”? Por que ela só quer as coisas impossíveis? Por que ela não é normal?

                - É interessante ver como você a vê... – ele deu risada. – Faz mais sentido porque você rejeitou o convite dela de recriar o mundo...

                - E como é que você a vê?

                - Eu a vejo como ela é... Doce e sonhadora... Encantadoramente otimista e entusiasmada... É fascinante ver o mundo pelos olhos dela, porque, para Suzumiya-chan, a realidade e a magia andam de mãos dadas e o mundo é um lugar maravilhoso! A vida seria muito melhor se as pessoas não abandonassem esse tipo de visão na infância...

                - Mas isso significa não crescer...

                - Não... Não é o que isso significa... Como Jean Rostand disse “Ser adulto é ser só”... Uma coisa é você permanecer de olhos vendados pela inocência e a ingenuidade da infância... Outra bem diferente é você decidir que quer continuar a olhar o mundo com os olhos de uma criança... Mas, por também pensarem que essas duas coisas são a mesma coisa, as pessoas abandonam na infância seus sonhos, suas fantasias, suas esperanças e aceitam sem lutar que a vida adulta deve ser triste, amarga, limitada e cinzenta! A frustração se apodera de seus pensamentos e os engole!

                - Uma pessoa que olha o mundo com os olhos de uma criança é considerada imatura pelos outros...

                - Se essa pessoa não fez essa escolha levianamente, ela sabe que nem todo mundo vai aceitar essa sua escolha de vida e terá força suficiente pra aguentar às críticas e as reprovações!

                - Uma hora, ela vai fraquejar!

                - Uma pessoa que vai atrás de seus sonhos e luta pra que eles se tornem realidade tem apenas uma fraqueza...

                - E qual é?

                - A decepção... Pessoas que acreditam que sonhos podem sim se tornar realidade, se decepcionam muito com as pessoas que não acreditam...

                - A maioria vence...

                - Essa regra não se aplica a essa situação... Porque é como colocar um... Humano sem atrativos ou habilidades para duelar contra uma bruxa... A fantasia tem muito mais força que a realidade...

                - Mas, quando a fantasia faz parte da realidade, como pode distinguir as duas? – eu estava começando a ficar muito confuso com toda aquela discussão... Do que nós estávamos falando mesmo?

                - Era aí que eu queria chegar, Kyon! Suzumiya-chan tem o dom extraordinário de fazer seus sonhos se tornarem realidade! Alguns chamam isso de vontade divina, outros, de constante aleatória... Bom, em resumo, isso quer dizer que ela pode fazer a vontade do Universo se moldar a sua própria vontade...

                - Do que você chama isso?

                - Chamo de coragem, persistência, felicidade plena... Quantas pessoas no mundo podem ter absolutamente tudo o que quiserem, não importa se pareça absurdo aos olhos dos outros?

                - Nenhuma outra...

                - Errado! – ele gargalhou. – Todas podem! Basta você acreditar que seus sonhos vão se realizar e que a sua vontade coincide com a vontade do universo e tudo está ao seu alcance! A única coisa que você não pode fazer é sentar e esperar que caia do céu!  Você tem de ir atrás e lutar por aquilo que você quer!

                - As coisas não funcionam assim no mundo real...

                - Como você pode dizer uma coisa dessas? Se você foi uma pessoa que desejou tanto conhecer um alien, um viajante do tempo e um esper que conseguiu tudo isso?!

                - Mas só porque era o que Haruhi também queria que acontecesse!

                - Exatamente! Porque sua vontade coincidiu com a vontade do universo!

                - Mas, se a vontade dela é a vontade do universo, nós retornamos ao impasse de que você não teve escolha em se apaixonar por ela...

                - Não, você não está entendendo... Uma vez, Ayana-chan lhe contou sobre o Código de Regras das Bruxas, se lembra?

                - Dos feitiços que ela não pode fazer – eu respondi, me lembrando da minha primeira conversa com Ayana quando ela entrou para a Brigada SOS.

                - O fato de existirem feitiços que ela não pode fazer, mesmo que Suzumiya-chan tenha desejado uma bruxa e o fato de que existem feitiços que Ayana-chan pode fazer em Suzumiya-chan são provas de que ela tem escolha! Ela não pode manipular as vontades das pessoas porque seu livre arbítrio deve ser preservado! É assim que funciona para Suzumiya-chan também! Ou ela poderia fazer com que todas as pessoas entrassem na Brigada SOS, com que todos os garotos se apaixonassem por ela, faria com que você aceitasse ficar no outro mundo com ela... Mas, as coisas não funcionam assim...

                - Ela inconscientemente abriu mão de controlar as vontades das pessoas?

                - Não... Tudo o que Suzumiya-chan faz é inconscientemente. Mas o livre arbítrio é como um molho de chaves que nasce pendurado no pescoço de cada um. Você tem as chaves para abrir as portas que estiverem em seu caminho ao longo da sua vida, mas nem todas você vai usar... Alguma você simplesmente abandonará pelo caminho...

                - Eu não tive escolha em entrar para  Brigada SOS... – disse, me lembrando perfeitamente de Haruhi me arrastando pela gravata até a parte mais doida de minha vida.

                - Teve sim... Foi sua escolha criar a Brigada SOS com Suzumiya-chan...

                - Minha escolha? – eu bufei.

                - Hai... Você a fez querer construir tudo isso... – Kaien disse com seu sorriso irritantemente divertido. – E você escolheu ficar... E foi sua escolha continuar fazendo parte...

                - Quer dizer que, se eu escolher, eu posso sair por aquela porta e não voltar?

                - É claro que você pode – ele riu divertidamente. Mas, por que faria essa escolha? Por que desistiria de todas as outras escolhas que o trouxeram até aqui? Por que escolheria viver em um mundo onde não existem aliens, ou viajantes do tempo, ou espers, ou bruxas, ou transmorfos? Por que trocaria tudo o que sempre sonhou pelo mundo frustrado e cinzento?

                - Então, eu não tenho escolha...

                - Você está começando a me cansar... Você tem escolha... Como teve a escolha de voltar para esse mundo quando ela lhe propôs construir um novo... Resta saber, qual porta você vai abrir...

                Eu fiquei em silêncio. Não sabia que ter o poder de escolher em minhas mãos me deixaria tão confuso.

                - Não é muito melhor pensar que as coisas que acontecem em sua vida cabem às decisões de outros? – Kaien deu risada de minha expressão confusa e eu assenti. – Suzumiya-chan não controla a vontade dos outros exatamente por esse motivo... Porque é um poder terrível... Então, ela decidiu dividi-lo e cada ser carrega, sozinho, suas decisões até o fim...

                - Então, você a ama?

                - As pessoas que são destinadas uma a outra, são ligadas por um fio vermelho... E uma vai puxando a outra até os dois se encontrarem. Foi o que aconteceu com Suzumiya-chan e eu...

                - Mas... Ayana e Koizumi disseram que você e ela são a mesma pessoa... – eu refleti confuso e o loiro de cabelo espetado a minha frente gargalhou mais uma vez, assentindo.

                - Creio que você também tenha entendido isso de maneira errada... Conseguiria imaginar uma pessoa completamente diferente de Suzumiya-chan, não apenas na maneira de se expressar, mas de ver o mundo, que conseguisse ficar com ela?

                - Não... Seria impossível...

                - É isso que significa ser “alma gêmea” de outra pessoa... É as duas pessoas se completarem... É o que Suzumiya-chan é pra mim... Então, respondendo a sua pergunta, sim, eu a amo! Eu a amo profundamente!

                Nós dois voltamos a ficar em silêncio. Tudo o que ele disse fazia muito sentido e, ao mesmo tempo, nenhum... Eu estava livre para sair da Brigada SOS, mas eu não o faria. Ele estava apaixonado por Haruhi e isso me incomodava. Nós ainda teríamos de lutar contra o mau gênio dela e eu estava ansioso.

                A porta se abriu com estrondo e eu caí da cadeira de susto, olhando feio para a líder daquela insanidade que estava fazendo minha cabeça girar.

                - Aprende a abrir essa porta que nem gente! – gritei para ela e Haruhi deu risada.

                - Gomenasai... – a garota foi saltitando para Kaien e se jogou em seu colo. – Como você foi o primeiro a sair da festa no sábado, Kyon, vai limpar a sala hoje!

                - O quê?! Eu não estava sabendo disso! – vociferei e ela gargalhou.

                Não parecia nada diferente de antes, exceto, é claro, pela presença do transmorfo roqueiro que me irritava, não porque eu amasse Haruhi ou a quisesse para mim, mas porque ele foi o primeiro desejo dela que não beneficiava nem tinha nada a ver comigo...

                - Eu não vou fazer! – gritei, me levantando.

                - Ahhh... Kyon... Mas, alguém precisava fazer...

                - Não... Não faço! – bufei. Garota abusada.

                - Da próxima vez, você está livre... – eu vacilei quando ela pronunciou aquelas palavras. Parecia, pela primeira vez, uma troca justa e normal...

                - Está bem... – cedi, me sentindo meio derrotado e vi Kaien reprimir uma risadinha. Não tinha mesmo a ver com as vontade de Haruhi o que eu fazia naquela Brigada...

                - Certo... Não quero nenhum lixo no chão, ouviu, Kyon? – ela disse autoritária, puxando o outro pelo braço para a saída e ele segurando sua cintura. – Depois eu vou verificar se você fez tudo direitinho... Se não, vai ter que fazer tudo de novo... – eu a olhei com desprezo.

                - Até amanhã, Kyon! – o sorriso debochado de Kaien foi a última coisa que vi antes deles saírem.

                Olhei para a sala vazia, os restos da festa badalada de sábado, as fotos das atividades externas da Brigada, as idas ao parque, a viagem a ilha remota... Os computadores que conseguimos vencendo o clube de computação, os jogos que eu passava as tardes jogando com Koizumi, os livros que Nagato leu, os jogo de chá e as fantasias de Asahina-san, alguns dos artefatos mágicos que Ayana deixava ali e, agora, encostado à parede, ao lado do puf onde Kaien estava sentado, estava seu violão.

                De alguma forma, eu não queria mesmo sair daquele lugar... E era engraçado pensar que tinha sido escolha minha ficar... Eu tinha realmente sido pego de surpresa...

                Porque, por mais que Haruhi me irritasse, Haruhi era Haruhi... E nós tínhamos em mente muitas coisas ainda para buscar...